O Ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, propôs em 15 de dezembro último dar repercussão geral a um caso dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que chegou ao STF por meio do recurso do Ministério Público Federal em processo que considerou anistiado o tenente-coronel Licio Maciel. Esse militar é um dos listados pela Comissão Nacional da Verdade entre os 377 agentes de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
O portal do Supremo Tribunal Federal está desatualizado no momento em que escrevo, porém o Migalhas publicou a importante decisão.
O Ministro cita as Convenções da ONU e da OEA sobre desaparecimento forçado, bem como a 1a. Convenção de Genebra e considera que o crime em questão é permanente e não foi atingido pela Lei de Anistia (mesmo se considerarmos que ela se presta a perdoar crimes de lesa-humanidade), pois o crime de ocultação de cadáver continua a ser praticado enquanto persiste o desaparecimento; transcrevo este trecho:
[...] existe o crime enquanto não cessar a permanência, o que reforça a certeza de que a Lei da Anistia não atingiu, nem poderia atingir, os fatos posteriores à sua vigência.
A Lei da Anistia é válida para os fatos pretéritos, entretanto não alcança aqueles crimes em execução depois da sua aplicação. Não há ultratividade para a Lei da Anistia, pois isso constituiria uma espécie de “abolitio criminis” prospectiva, inexistente no Direito pátrio.
A decisão, que expressamente ocorre em obediência às normas de justiça de transição, recebeu destaque em boa parte da imprensa, com razão, tendo em vista o atraso do STF, de quase uma década e meia, em julgar os recursos interpostos contra a lamentável decisão na ADPF 153, que o Conselho Federal da OAB propôs a respeito da Lei de Anistia de 1979, bem como a nova ADPF que o Psol propôs contra aquela lei. A decisão infausta ocorreu em abril de 2010, quando o STF considerou, contra o texto expresso da norma, contra a Constituição de 1988 (que prevê a anistia só para as vítimas dos atos de exceção) e o Direito Internacional aplicável que os crimes de lesa-humanidade da ditadura teriam sido anistiados.
Mais tarde, no mesmo ano de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em denúncia feita pela Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (uma organização da sociedade civil), determinou que aquela lei era inaplicável para esses crimes.
Dos debates e movimentações políticas gerados por essa decisão internacional, vieram as leis de criação da Comissão Nacional da Verdade e de Acesso à Informação em 2011.
Enquanto o STF não julga em definitivo a ADPF 153, o restante do Judiciário, em regra, vem indeferindo as denúncias criminais do Ministério Público Federal que têm aqueles crimes como objeto. Neste caso, um dos réus, o tenente-coronel Sebastião Curió, também listado pela CNV como responsável por desaparecimentos na Guerrilha do Araguaia, não pode mais ser condenado porque faleceu (não sem antes ser recebido e homenageado pelo militar que ocupou a presidência da república antes de Lula e hoje é investigado por golpe de Estado).
A notável lentidão do STF anda de mãos dadas com o ciclo da vida e da morte, tendo em vista que o falecimento dos réus, nestes casos de crimes cometidos há décadas, também livra-os da responsabilidade penal.
Escrevo esta nota porque li algumas notícias que deixaram de lado que Dino está aplicando a jurisprudência da própria Suprema Corte, em posição comum com o Ministério Público Federal. Até encontrei comentários de que o Ministro estaria inovando no tribunal com entendimentos esdrúxulos. No entanto, incorrem em erro esses que pensam assim.
Para esclarecer, cito meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, escrito em 2023, antes da decisão mencionada de Flávio Dino. O livro trata, entre outros assuntos, do imbróglio do (não) julgamento da Lei de Anistia, inclusive dos
[...] casos de crime permanente de sequestro durante a ditadura militar, em casos em que a Lei de Anistia não era aplicável. Nesse crime, o equivalente no Brasil ao desaparecimento forçado, a vítima desaparece e não é encontrada, o que impede o início da contagem da prescrição criminal, segundo decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal na extradição pedida pela Argentina do tenente-coronel uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, em razão de desaparecimentos forçados no âmbito da operação Condor.
Nessa extradição, o próprio procurador-geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, considerou, em fevereiro de 2008, que o crime permanente de sequestro não estava prescrito: [...]
Dino não está rasgando, pois, a jurisprudência do STF. Apesar disso, alguns querem desqualificá-lo por causa de seu passado. Sabe-se que ele deixou a magistratura, na qual ingressou por concurso público, para entrar no sistema político, o que fez também com sucesso: venceu eleições para deputado federal, governador de Estado e para Senador e foi Ministro do terceiro governo de Lula; na maior parte desse tempo ele pertenceu ao PCdoB, depois migrou para o PSB.
Flávio Dino atuou politicamente no campo da esquerda, porém não sujou a toga, quando foi juiz de carreira, para trocar decisões judiciais por cargos políticos. De volta à magistratura, e agora no tribunal mais alto do país, Flávio Dino neste caso está apenas a aplicar o Direito de forma tecnicamente correta.
Dito isso, é verdade que, em geral, é a esquerda que, no Brasil, deseja cumprir o Direito aplicável aos crimes de lesa-humanidade e reconhecê-los como insuscetíveis de anistia.
No entanto, o que deveria ser objeto de dúvida e constrangimento não é essa postura da esquerda, mas o fato de boa parte da direita (inclusive seus porta-vozes na imprensa) não se conformar com a eficácia das normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, preferindo a elas o louvor aos crimes de lesa-humanidade, incompatível com a democracia.
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