I
É preciso ser muito idiota
ou muito poeta
para afirmar que a poesia é o amor;
(a poesia, evidentemente, é o amor
e o ódio também o é;
quando combinamos os dois
o prato ainda não resulta na poesia)
é preciso ser muito louco
ou muito poeta
para aconselhar alguém a escrever poesia;
(é óbvio que a loucura escreve
tanto quanto a poesia,
mas se juntamos as duas
não temos ainda o poeta)
mencionar estrelas no poema é o cúmulo,
nem os astrólogos o fazem,
ocupados que estão com a indústria do entretenimento
e as eleições nas grandes potências;
(sabe-se desde as cavernas
(sabe-se desde as cavernas
que tanto as sombras quanto os versos
vêm da nostalgia das estrelas)
II
Talvez escrever poesia seja apenas perder a gata
e ganhar as garras
o cio
o salto
sobre a presa mínima
III
A poeta morreu antes do fim do ano,
deixou a Física antes do fim do curso,
esqueceu os planos ao sair à rua,
queimou os projetos antes de pegar os fósforos,
não sabia qual era a frente
onde trocaria de lugar com o carro e os bois,
não chegou a terminar a viagem
e a troca de lugares
e porque recusou tanto o fim
podemos nela recomeçar.
IV
Ao verso final
IV
Ao verso final
da obra reunida
chama-se morte;
pode-se dizer
o mesmo
do inicial.
Ao verso final
da obra reunida
chama-se golpe,
aquele que acerta
o plexo solar
e dobra o corpo
em mil estrelas;
diga o mesmo
sobre as estrelas.
V
Se tivesse sido um homem
que desinteressante teria sido.
É o que se diz quando se vê um homem poeta:
quão mais interessante seria
se fosse uma mulher.
VI
os livros, ou seja, a carne,
VI
os livros, ou seja, a carne,
o osso e mais algo
que abraça ou fere
como os poemas;
os livros, ou seja, terra,
ares e águas e mais outra coisa
para meios de transporte
como os poemas;
os livros, ou seja, o abraço,
a ferida e o transporte
que juntos
não compõem aquilo
que os poemas
tampouco logram.
VII
que os poemas
tampouco logram.
VII
Sabemos que morreu uma poeta
porque os jornalistas não sabem o que dizer
e os influencers não dizem nada,
embora especialistas em tanto dizer
sobre o que ignoram por completo.
Sabemos que morreu uma poeta
porque pararam de lhe perguntar
suas influências, seus amores,
desistiram de saber o conceito
e a finalidade da poesia,
embora ela inteira se manifeste
na morte da poeta,
compartilhando entre nós
o ser e o não-ser.
VIII
Tenho dois gatos: o Breu e a Brilho. O preto puxa o papel higiênico e o desfaz em tiras antes de saltar para as alturas do box; a frajola observa tudo ao lado do tapete do banheiro.
Breu nas alturas, Brilho ao rés do chão.
Aprende-se muito sobre poética quando se vive com gatos.
IX
Às vezes você escrevia como as crianças.
Quem não gosta de poesia não tem desculpa alguma.
X
A poeta morre,
editores que nunca a publicaram
desdenham do cadáver
que jamais verão.
Lembro do orgulho de Vitor,
dizer que foi o primeiro editor da poeta.
Também foi o meu,
mas essa é a única coisa em comum
que tive com a poeta
além do fato
de que estamos sempre a terminar.
XI
Declamações nas aulas de português, ou
lições caladas sobre Portugal,
essenciais para aprender
que para os fascistas somos cães de rua
e aos habitantes da rua
eles enforcam.
XII
Quando os poetas não se internam
ou saem da internação, o que fazem?
Derrubam asilos? Arrombam
suas portas? Abrem o poema
para o leitor entrar se quiser
talvez ele não tenha outro refúgio
para pensar ou espreguiçar-se ou cantar
e para ouvir os cães do lado de fora
e poder chamá-los para dentro se quiser
e saírem juntos quando lhe apetecerem
e morderem juntos
se atacados
depois de terem entrado no poema.
Há os poetas que constroem os asilos,
mas esses não entram
em minhas categorias poéticas.
XIII
Ignoro se gostam mais da sua obra em Portugal, em Angola, em Moçambique, no Brasil ou alhures.
O lugar onde apreciam sua obra certamente torna-se alhures.
XIV
Por outro lado, nunca sabemos quando nascem poetas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário