Sempre faço uma retrospectiva anual neste blogue: o exercício de memória do passado recente permite compreender melhor o presente. De alguns tempos para cá, sempre espero que os doze meses terminem, que é o que faz sentido, ao contrário do que estipula a temporalidade jornalística. Imaginem que no jornalismo cultural há até veículos que pedem que se escolha em outubro as melhores produções do ano!
Ademais, em certo sentido, nunca sabemos quando um ano realmente termina. Alguns ferem a cronologia e demoram mais para terminar, o que deve ser a razão pela qual o governo Lula não mencionou no primeiro de abril passado os sessenta anos do golpe de 1964.
Sempre mudo o critério da retrospectiva. Em 2017, quando ainda fazia essas coisas no último dia do ano, resolvi escolher textos interessantes dos blogues que seguia. Entre eles, dois caíram.
Os blogues perderam audiência para as redes de fotos e as de vídeos que duram alguns segundos. No entanto, de 2023 para cá, vejo pessoas que afirmam desejar ler textos na internet, e não ver esses flashes que não convidam exatamente à reflexão. Notei também que blogues novos foram criados, o que é um movimento interessante.
Eu mantive este porque ele serve como um grande rascunhão de textos. Resolvi, então adotar o procedimento que muitos seguem: simplesmente listar as doze entradas mais lidas no blogue durante 2024, a começar da que teve mais visualizações. Eu não tinha a ideia de quais eram, surpreendi-me porque algumas são antigas, chegando a 2010. Imagino, portanto, que o interessante desta lista seja indicar temas que alguns leitores em português na internet acharam sensíveis.
Não que O palco e o mundo tenha sido muito lido: ele teve 45 mil e oitocentas visualizações no ano, o que não é muito para um blogue; ademais, pelo menos metade desse público deve ter chegado aqui por acaso e não por causa dos textos. No entanto, mesmo reduzindo a, talvez, dez por cento das visualizações, trata-se certamente de mais gente do que leu meus livros no mesmo período.
Curiosamente, os dois primeiros textos têm relação com música. Sou tenor e canto na Associação Coral de São Paulo, porém não tenho formação alguma nessa área, em que sou apenas um amador anônimo, apesar de participar de produções profissionais. Imagino que o assunto dos textos tenha sido o que chamou a atenção das pessoas ao ponto de lerem até mesmo algo que escrevi.
Dmitri Hvorostovsky (1962-2017), o cantor do mundo, a voz da Rússia e da Itália (22 de novembro de 2017). O texto conta minha experiência, apesar de limitada, com o célebre cantor russo, que morreu depois de uma batalha contra o câncer quando ainda estava senhor de sua voz e a carreira continuava a se desenvolver nos grandes palcos do mundo.
Tive a sorte de vê-lo duas vezes. Reproduzi no texto o programa de seu concerto no Rio de Janeiro (vazio de público, para a vergonha dos cariocas), falei de algumas gravações e lembrei da última vez que o vi, no ano em que descobriu a doença.
Escrevi um texto bem simples; o fato de ele ser lido mostra como Hvorostovsky continua a ser ouvido e amado graças às gravações e à memória que deixou no público. Imagino que continue criando memórias, pois leio nos comentários sobre as pessoas que o descobriram depois que morreu. De certa forma, um grande artista não morre.
30 dias de canções: O céu, o mar, a umbanda (31 de janeiro de 2017). Ousei, no início de 2017, produzir trechos para essa série, que outros blogues adotaram. Modifiquei algumas entradas, que não faziam sentido para mim, porém mantive a estrutura dos trinta dias. Comecei dia 28 de janeiro e só consegui encerrá-la no 25 de março, pois não consegui (nem imaginei que o faria) escrever um texto por dia. Em 2024, no entanto, publiquei aqui menos de trinta textos em um ano!
Na série, escolhi música de Guiraut de Borneilh a Tiganá Santana, passando por Beth Amin e Schumann. Também selecionei um ponto de Ogum que me foi ensinado por minha madrasta (por sinal, ela morreu há pouco mais de um mês; talvez tivesse gostado de saber disto).
"Se o céu é lindo" foi o tema do despretensioso texto que, sete anos depois, continua sendo lido, não sei por que razão. Talvez isso aconteça por causa da continuidade dos ataques racistas de terroristas cristãos às religiões afro-brasileiras, bem como dos chamados narcocrentes: lembro aqui do famigerado Complexo de Israel, no Rio de Janeiro, região em que os traficantes evangélicos expulsaram os terreiros, o que é outro dos crimes (além da venda de drogas) que são cometidos sistematicamente naquele Estado, tendo em vista a inoperância das forças de segurança e do Judiciário.
Desarquivando o Brasil CCVI: Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros militares (25 de novembro de 2024). Trata-se do mais lido entre os textos que escrevi neste ano, provavelmente por causa da urgência do tema: a descoberta do plano militar de assassinato de pelo menos Lula, Alckmin, Alexandre de Morais em 2022.
Nele, lembrei dos trechos de meu livro mais novo, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Quis contrastar o texto com a aparente leveza ou até leviandade de certos meios de comunicação no tratamento do assunto, que diz respeito diretamente à continuidade da democracia no Brasil. O mais curioso foi ver bolsonaristas reagindo assumindo tudo ou quase tudo do que foi investigado pela Polícia Federal e alegando, mesmo assim, perseguição política: a impunidade é seu lar e, por isso, estranham quando algo diferente ameaça surgir no horizonte.
Angélica Freitas e o tamanho da insurgência (10 de outubro de 2012). Aqui, além de reproduzir um texto que publiquei em 2007 sobre a estreia em livro da autor, Rilke Shake, em um extinto jornal impresso de crítica literária, o K., escrevi minhas impressões sobre Um útero é do tamanho de um punho, que comprei e li antes do lançamento em São Paulo.
Publiquei-o em 2012 justamente para fazer propaganda da poeta, que (devo dizer aqui, por causa da maledicência desse meio) não é minha amiga pessoal. Simplesmente entendi que o livro era importante. Destaquei nele o caráter de contestação à ordem patriarcal, bem como a insurgência do feminino. Cheguei na época a discutir com uma professora de literatura que afirmou que ele não era poético porque "um útero é realmente do tamanho de um punho". Ai.
Creio que ainda é a melhor obra de Angélica Freitas. Poucos anos depois, vi uma jovem com veleidades críticas escrever que nunca viu os homens destacaram essas mesmas qualidades desse livro. É triste que os jovens tantas vezes usem na internet sua própria ignorância (nunca viram nem leram nem ouviram...) como argumento de autoridade. A poeta é muito maior do que isso.
Desarquivando o Brasil CXCVII: "O intento golpista e, portanto, criminoso": minutas de golpes e atos institucionais (21 de fevereiro de 2024). Escrevi este sobre as minutas de golpe encontradas pela Polícia Federal com Anderson Torres. Resolvi elaborar um paralelo, do tipo que costumo fazer neste blogue na série Desarquivando o Brasil, com os antigos atos institucionais da ditadura militar.
O golpe, felizmente mal sucedido, era retrô também nesse aspecto. Ademais, sua base teórica era péssima (foi um caso de inteligência militar como deux mots qui hurlent de se trouver ensemble), precário até mesmo para os juristas que o inspiraram, conforme destaquei.
Desarquivando o Brasil CCIII: Onde está o relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (16 de setembro de 2024). Eu estava há muito tempo para escrever esse texto. O que finalmente me moveu foi ter lido um livro cheio de equívocos que venceu a primeira edição do Jabuti Acadêmico; entre os erros, estavam afirmações sobre o relatório mencionado.
A Comissão "Rubens Paiva", criada pelo Legislativo estadual por iniciativa de Adriano Diogo, foi interessante já pelo fato de ela ter surgido antes da Nacional e, com isso, ter despertado a fundação das outras: estaduais, municipais, sindicais, universitárias, a Camponesa etc.
Era uma pena que a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo não estivesse tratando bem do relatório, que jamais foi impresso e só existe on-line. Não sei se o meu texto teve alguma influência nisto, mas algumas semanas depois, não tive mais problema para acessá-lo.
Alberto Pimenta e o Discurso sobre o filho-da-puta de volta, em tempos muito apropriados, ao Brasil (16 de dezembro de 2020). O maior poeta vivo da língua portuguesa, Alberto Pimenta, é uma das principais razões por que as pessoas vêm parar neste blogue. Quatro anos depois, o texto de 2020 sobre a publicação na Serrote do célebre Discurso, que é seu livro mais traduzido, foi o mais lido dos vários que já escrevi sobre ele.
Evidentemente, além da genialidade de Pimenta, o assunto de que ele trata é sempre atual, o que deve ter chamado a atenção de quem leu o meu texto.
Subterrâneo do anjo e aniversário do Walter Benjamin (15 de julho de 2024). Este foi uma surpresa porque é um poema meu, ainda não recolhido em livro, publicado em um periódico de poesia, Ouriço, que o pediu. Eu o li com Fabio Weintraub no lançamento paulista da revista. Achei que a reação foi meio gélida, com exceção de Matheus Guménin, que foi a pessoa que estava lá e disse que gostou do poema. Acho que o problema foi tê-lo escrito com um tema (poesia e história), que foi alterado depois, o que me deixou meio fora do lugar naquele contexto. No blogue, porém, algumas pessoas talvez o tenham lido porque nele viro Walter Benjamin de pernas para o ar, o que não é tão comum.
Desarquivando o Brasil LXVII: Polícia e direito de manifestação (23 de agosto de 2013). Aqui tratei de alguma falas minhas no ano difícil de 2013, com destaque para a que fiz em uma iniciativa de esquerda de que morreu logo depois. Luka França também lá estava para tratar do caso Carandiru.
O vídeo caiu, mas os textos que apontei estão aqui: https://web.archive.org/web/20130811025608/http://vandaleando.laboratorio.us/. Como sempre, fiz o exercício de comparar o presente e o passado, dessa vez desde os anos 1950.
Por que esse texto continua a ser lido, mais do que outros bem mais recentes? Imagino que a persistência do problema, com os casos diários de arbitrariedade policial, seja a razão.
Impressões europeias: a sombra do continente (21 de setembro de 2010). Trata-se de 355 caracteres (com espaços) e uma foto, que eu tirei, de xenofobia e racismo no Aeroporto de Madri. Zapatero e Sarkozy ainda estavam no poder.
Ele cala: a poesia de Nuno Ramos (20 de setembro de 2010). É o mais antigo dos textos, publicado na véspera do anterior. Trata-se de um dos artigos que escrevi sobre a obra literária de Nuno Ramos; este saiu na extinta revista Rodapé, que não foi publicada na internet.
Desarquivando o Brasil CCIV: Ciclo no SESC-SP de pesquisas acadêmicas e jornalísticas sobre a ditadura (16 de setembro de 2024). Eu não iria ficar, como o governo federal (já que habito em São Paulo, digo o mesmo do estadual e do municipal), calado sobre os sessenta anos do golpe de 1964. Uma das ocasiões em que falei em público sobre a triste efeméride foi nesse ciclo do Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP, para o qual fui chamado em razão de meu livro de 2023, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura.
Também no livro não me calei sobre a problemática da ditadura, por sinal. Para quem ainda não o leu, aqui está a introdução: https://www.editorapatua.com.br/ilicito-absoluto-a-familia-almeida-teles-o-coronel-c-a-brilhante-ustra-e-a-tortura-ensaios-de-padua-fernandes/p
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