O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Desarquivando o Brasil CCVIII: Carlos Nicolau Danielli, os óbitos retificados e o desmonte de farsas da ditadura

O Jornal Nacional da Rede Globo divulgou reportagem em sete de janeiro de 2025 sobre a emissão de certidões de óbito retificadas para os mortos e desaparecidos políticos citados no relatório da Comissão Nacional da Verdade. As alterações substituem as versões falsas que a ditadura militar quis impingir para eximir-se da culpa dessas mortes.
O relatório, lembramos, foi entregue à presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2014. Dez anos após, em dezembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução ordenando aos cartórios alterarem as certidões para que nela constasse como causa mortis a ação violenta do regime ditatorial, em vez das versões anódinas e/ou erradas feitas na época da ditadura.

Art. 2º Para fins do disposto no art. 80 da Lei nº 6.015/1973, as lavraturas e retificações dos assentos de óbitos de que trata o art. 1º serão baseadas nas informações constantes do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, sistematizadas na declaração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
§ 1º Em atendimento ao disposto no item 8º, do art. 80 da Lei nº 6.015/1973, deverá constar como atestante a CEMDP e, como causa da morte, o seguinte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.”
A primeira certidão entregue por causa dessa determinação do CNJ foi a de Carlos Nicolau Danielli, em sete de janeiro, em São Paulo. O cartório avisou Criméia Almeida, em nome da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, já que não tinha o contato com a família do morto. Ela e sua irmã, Amelinha Teles, falaram com a família, que mora no Estado do Rio de Janeiro, e foram receber em nome dos familiares a certidão.
Amelinha me avisou e fui para o cartório assim como Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que tratou do caso de Danielli; vejam aqui a audiência pública de 2013: https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/videos/casos-carlos-nicolau-danielli-e-luiz-ghilardini-parte-1-25-de-abril-de-2013
Abaixo, foto minha de Amelinha (de preto) e Criméia (de azul), abraçadas, recebendo o documento.



Carlos Nicolau Danielli foi um dirigente do PCdoB torturado e assassinado no fim de 1972 pelo DOI-Codi de São Paulo, que era chefiado por Carlos Alberto Brilhante Brilhante Ustra. Amelinha, Criméia e César Augusto Teles (marido de Amelinha, já falecido) foram presos na mesma época e testemunharam o crime.
O laudo necroscópico havia sido assinado pelos médicos legistas Isaac Abramovitch e Paulo de Queiroz Rocha. Na certidão original, a causa mortis era "anemia aguda traumática", sem, evidentemente, menção alguma à origem violenta da morte, que agora está expressa. Essa alteração é uma demanda histórica dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, que desejam ver a verdade reconhecida oficialmente:




Trata-se, com efeito, de uma medida importante de direito à verdade no âmbito da justiça de transição, que é citada expressamente nos consideranda da resolução, que menciona a "Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito à verdade e à memória, especialmente em contextos de justiça de transição (e.g., caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, sentença de 25.11.2000)". A menção ao Direito Internacional e à Corte da OEA aparece justamente no primeiro dos consideranda, o que também rompe com a tradição isolacionista da cultura jurídica brasileira em relação ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.
O programa da Globo, que pode ser visto on-line, bem incluiu outros casos de mortos políticos, como Luiz Eduardo da Rocha Merlino e Vladimir Herzog, cujos familiares haviam conseguido a mesma retificação por meio de processo judicial. O recurso à via judicial não é mais necessário, o que facilita muito para os familiares.
Gostaria, nesta nota, de lembrar alguns aspectos da história que não estão na reportagem. No meu livro, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A, Brilhante Ustra e a tortura, conto a história um pouco da história de Danielli porque Amelinha, César e Criméia, também sequestrados pelo DOI-Codi, foram testemunhas do assassinato e sempre denunciaram o crime (cliquem aqui e verão um panfleto que a Comissão "Rubens Paiva" recuperou com uma denúncia realizada ainda durante o governo do general Figueiredo).
Um aspecto cruel da história foi o de que a operação para capturá-los tornou-se exemplo em apostila de Brilhante Ustra para um curso do SNI. Conto no livro:




Hoje provavelmente diriam que foi um "case de sucesso" dos crimes de lesa-humanidade do período. 
Danielli somente pôde ser enterrado pela família no Rio de Janeiro em 1981. Amelinha Teles auxiliou na exumação e translado do corpo. Em audiência de 13 de setembro de 2013 da Comissão da Verdade "Rubens Paiva", ela contou esta história absurda, porém, real: na certidão de óbito, Danielli era chamado de terrorista:

Eu me lembro que eu fui, numa dessas minhas tarefas na vida, eu fui fazer a exumação e o traslado dos restos mortais do Carlos Nicolau Danielli que era um dirigente do Partido Comunista do Brasil. E eu fui ali no cartório do Jardim América buscar o atestado de óbito porque, para fazer o traslado eu tinha que ter o atestado de óbito.
Quando eu peguei o atestado de óbito estava escrito assim, profissão, “dois pontos terrorista". Aí eu falei com o moço do cartório, eu falei assim, não! Isso aí não dá para eu levar, profissão terrorista. O senhor já viu ter carteira de trabalho assinado profissão terrorista? Ele olhou para mim e falou assim, “é, nunca vi, não”. Eu falei, então tira isso aí! Ele falou, “mas o que eu ponho?” Eu falei você põe o que você quiser, mas não dá para por isso aí.
Você sabe que na hora o funcionário, não foi nem, o funcionário falou “eu vou corrigir isso aqui”. Pegou, pôs um monte de “x” assim, pode olhar, o atestado de óbito tem profissão “xxxx”. Ele falou, “vou tirar mesmo”.
Quer dizer, é tão simples agora colocar, até deixa lá "anemia aguda". O Carlos Danielli ele, como ele foi assassinado sob torturas e teve hemorragia interna, então lógico que deu anemia aguda, não é? Ele perdeu todo o sangue, não é? E aí, então, põe "anemia aguda" por causa da tortura no DOI-CODI senão, quer dizer, só completar, ele pode ter tido sim anemia aguda.
Agora, em 2025, a anemia aguda foi substituída pelo que a causou.
Não são apenas as certidões dos 434 mortos e desaparecidos listados pela CNV que deverão ser retificadas. A resolução mencionada prevê que familiares de outras vítimas poderão requerer o mesmo, bem como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania:
Art. 4º Nos casos de óbitos que não constem do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, poderão os familiares das vítimas, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos ou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania requerer a lavratura ou a retificação dos assentos de óbitos aos cartórios competentes, cabendo recurso administrativo da decisão perante as Corregedorias locais, sem prejuízo de eventual revisão do Conselho Nacional de Justiça.
Há muitos outros além daqueles 434; na lista de mortos e desaparecidos políticos da Comissão "Rubens Paiva" há outros nomes. Criméia Almeida, em parte do depoimento que a Globo não levou ao ar, lembrou do genocídio dos indígenas. Na verdade, ainda há muito para pesquisar em relação às vítimas da repressão.
Danielli era considerado perigoso para o regime porque articulava o contato dos guerrilheiros do Araguaia com o PCdoB nas cidades e, ademais, fazia as denúncias contra a ditadura circularem no exterior. Essa última questão também é destacada nos documentos confidenciais dos órgãos de repressão e vigilância. No Brasil, em razão da censura, o governo controlava os meios de comunicação. Volto a citar aquele meu livro:


A Anistia Internacional não era uma entidade do "comunismo internacional", ao contrário do que aparece em vários documentos quejandos. Ela era incômoda, porém, porque a divulgação da verdade dos crimes do regime era considerada, ela mesma, um crime na ditadura.  Essa é uma das razões pelas quais o direito à verdade é fundamental para a justiça de transição. Quem leu o livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui, e/ou viu o filme de Walter Salles deve lembrar que Eunice Paiva ficou feliz ao receber a certidão do óbito de Rubens Paiva, e ela mesma reconheceu que era uma alegria estranha, mas real. Vi o mesmo ocorrer com Criméia e Amelinha.
Trata-se da alegria de ver a luta pela verdade triunfando no final. No caso de Danielli, depois de 52 anos de seu assassinato, 9 depois do falecimento (por doença) de seu algoz, C. A. Brilhante Ustra, jamais punido porque a ação do Ministério Público Federal foi barrada pelo Judiciário brasileiro (vejam nesta ligação) e apenas 3 após o fim do governo daquele militar, Jair Bolsonaro, que homenageou Ustra diversas vezes e agora está sendo investigado por tentativa de golpe de Estado, que começaria com assassinatos pelo menos do presidente e do vice-presidente eleitos (Lula e Alckmin), de um ministro do Supremo Tribunal Federal (Alexandre de Moraes) e de uma quarta pessoa ainda não identificada.
Provavelmente o golpe teria gerado mais vítimas, como Rubens Paiva e Carlos Nicolau Danielli o foram.

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