O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Alberto Pimenta e o Discurso sobre o filho-da-puta de volta, em tempos muito apropriados, ao Brasil

Foi editado novamente no Brasil o Discurso sobre o filho-da-puta, de Alberto Pimenta. Desta vez ele saiu na revista Serrote, número 35/36, publicação do Instituto Moreira Salles.
O livro, como se sabe, é uma das obras mais originais do século passado, e a mais traduzida do autor. Não acho inapropriado classificá-lo de ensaio, tendo em vista o caráter livre e imaginativo que o gênero pode assumir. Após o "plano geral da obra", que já se anuncia genial, abre-se com um poema, a "balada ditirâmbica do pequeno e do grande filho-da-puta":

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

A repetição obsessiva da expressão acaba por normalizar o "palavrão" e realizar o seu significado profundo: demonstrar que esta espécime de ser humano está em todos os lugares, todas as dimensões da vida social, e mesmo entre os leitores deste livro. O gênio de Pimenta na caracterização dos diferentes tipos de filhos-da-puta e de sua atuação nunca foi demasiadamente louvado.
Em homenagem ao momento político do Brasil e aos cheques alimentadores de seus grandes representantes, lembro deste trecho:

que o filho-da-puta especializado em fazer faz um acordo público, é difícil saber se é um acordo público que traz préstimos particulares ou se é um acordo particular feito de prestações públicas, e o mesmo acontece sempre que ele, o filho-da-puta, faz todas as coisas que o filho-da-puta faz, as obras públicas feitas por motivos particulares, os programas de ensino público decretados com intenções particulares, as guerras públicas movidas para obter vantagens particulares, os jornais públicos cujo préstimo é relatar sobretudo os prestígios particulares, os estabelecimentos públicos para ocupações particulares, a assistência pública para lucros particulares, em suma, os negócios públicos feitos para fins particulares e os negócios particulares feitos com meios públicos, e basta.

Há filhos-da-puta especializados em fazer e há aqueles que se dedicam a não deixar fazer; estes habitam, por exemplo, "a secretaria, toda a secretaria da mais baixa à mais alta, não é, como se supõe, o lugar onde se faz, mas o lugar onde não se faz, onde se sonega, onde se põe por baixo do monte o papel que devia estar em cima". Eles cometem esses atos e omissões porque, entre outras razões,

o desejo do filho-da-puta é que ninguém estivesse nunca no meio do novo, do belo, do agradável, porque isso dá satisfação a quem lá está; que ninguém fizesse nunca nada de novo, de belo, de agradável, que isso vem alterar a ordem das coisas, e o filho-da-puta só se sente à vontade quando as coisas estão na ordem e ele à frente delas.

O ódio ao belo e o amor à ordem, sabemos bem que tipo de artista isso dá, e que prêmios e atenções ele recebe.
A Serrote omite que o Discurso teve uma edição no Brasil posterior à portuguesa de 2000. Em 2003, a Achiamé o relançou, duas décadas após a edição de 1983 da Codecri.


Talvez a revista pudesse ter informado que o livro foi levado ao teatro em Portugal neste infausto ano de 2020 (por essa razão, menos infausto), com direção de Fernando Mora Ramos, música de Miguel Azguime e o "quarteto de cordas vocais" Cibele Maçãs, Fábio Costa, Marta Taveira e Nuno Machado. Talvez não, visto que, em razão dos atrasos causados pela pandemia, o espetáculo teve a estreia adiada. Os tempos estão bem difíceis também para os trabalhadores do teatro e da música, para não falar da ópera.
Falando neste assunto, o que faria o filho-da-puta diante deste problema mundial de saúde pública? Imagino, em exercício abstrato de suposição, que o filho-da-puta especializado em não deixar fazer impediria que a população se vacinasse ou mesmo se prevenisse corretamente.
Alcançaria sucesso nesse empreendimento genocida? Ignoro. Precisaria muito da cooperação de seus semelhantes, muitos deles especializados em matar e, outros, em se deixar matar. Quem sabe alcançaria a marca de duzentos mil mortos em doze meses? De tanta omissão e impedimentos, lograria realizar uma ação inaudita. Como escreve Alberto Pimenta sobre o filho-da-puta, "o homem é nosso alvo".

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