O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Desarquivando o Brasil CXC: Um discurso de Hebe de Bonafini

A Mãe da Praça de Maio Hebe de Bonafini, que morreu em 20 de novembro de 2022 com 93 anos, sobreviveu a seus três filhos, que a última ditadura na Argentina lhe tirou, mas também a companheiras como Azucena Villaflor de Vicenti, sequestrada e morta pela repressão em 1977.

Ela esteve no Brasil algumas vezes, antes e depois do fim das ditaduras na Argentina e no Brasil. Este documento das Mães da Praça de Maio está no acervo da polícia política de São Paulo, o DEOPS/SP, atualmente no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nele vemos a assinatura de Hebe de Bonafini, no quarto ano da organização. Ele seria lido em São Paulo na comemoração do Primeiro de Maio de 1981:



No Brasil, estávamos no fim prolongado fim da ditadura militar, sob o General Figueiredo. O fim das gestões encabeçadas por militares não significou, contudo, que o Estado brasileiro tivesse terminado de vigiar os movimentos sociais. Esta continuidade da ditadura lembra-nos que, afinal, um governo como o de Jair Bolsonaro não foi gestado somente desde 2014.

Data do curto governo Collor este outro documento. Entre 21 e 23 de junho de 1991, aconteceu em São Paulo o III Encontro Latino-Americano e do Caribe pela Solidariedade, Soberania, Autodeterminação e Vida de Nossos Povos. Bonafini representou as Mães da Praça de Maio. Em documento confidencial da Secretaria de Assuntos Especiais da Presidência, hoje no acervo do Arquivo Nacional, temos um relatório do Encontro com o que me pareceu ser uma cópia traduzida do discurso dela. Como sempre, cliquem sobre a imagem para ampliá-la:




Não me recordo de ter visto este discurso publicado, ao menos em português, por isso o faço aqui. Acho notável a perspectiva latino-americana, "A América Latina deve se unir", que engloba o Brasil, o que não é tão comum assim quando tratamos da América de fala hispânica.
Mais interessante ainda é esta observação, que transcrevo:

Estamos numa batalha muito pura, esta batalha significa resistir e combater. Se não formos capazes de enfrentar estes 500 anos com muita força, repudiando e protestando todos os massacres, dos negros e dos índios e aos que eles chamaram de subversivos e terroristas, que com a mesma força que assassinaram os negros e os índios, assassinaram nossos filhos acusando-os de terroristas.
Os homens dessa terra, os que querem um mundo melhor, estamos aqui e em todos os lugares para dizer-lhes, 500 anos de nepotismo vamos enfrentar com força.

Já vi certos acadêmicos insistirem em procurar ou estabelecer uma oposição entre os militantes de movimentos no campo da justiça de transição e os de outros movimentos sociais. Na minha experiência, têm-me antes impressionado as convergências entre aqueles que lutam contra a ditadura e contra outras violências, atuais e pretéritas. É o caso, no Brasil, das ações da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Faço notar que, para a extrema-direita bolsonarista, estas questões estão intrinsecamente ligadas, para ela todos aqueles movimentos devem ser combatidos em nome de uma teleologia reacionária do progresso e/ou do cristianismo. 
Bonafini falou no contexto dos 500 anos da invasão dos espanhóis no continente, mencionando o genocídio indígena e negro, inserindo o genocídio da última ditadura argentina dentro dessa lógica do Estado colonial. Para fazer frente à extrema-direita, essa perspectiva e as alianças entre esses diferentes movimentos não devem ser perdidas.

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