O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Dia dos Finados, ou como o bolsonarismo queria a política

Eu ouvia no Dia dos Finados a Rádio Cultura, o programa Conexão Europa, que transmite concertos que foram gravados ao vivo para União Europeia de Rádio e TV (EBU). O programa incluiu o concerto para piano n. 24 de Mozart com Lars Vogt como solista. Foi uma apresentação de 2021. Na nota biográfica sobre o músico, foi omitido que ele está morto.

Provavelmente os responsáveis na Rádio não sabiam. Haveria, no entanto, alguma uma justiça poética em tocar um morto no 2 de novembro em um programa dedicado a músicos contemporâneos (refiro-me aos intérpretes, não aos compositores)? Creio que não, pois os mortos devem ser nomeados: esta é que é uma forma de fazer-lhes justiça.

Pensei, em seguida, na tentativa de prorrogação da campanha eleitoral de 2022: os zumbis que fecham estradas sem saber a razão, apenas atendendo a um comando do grupo, em um mundo paralelo em que os mortos ainda operam. De certa forma, estão mortos, especialmente quando desejam o falecimento do candidato vitorioso, como o fez ontem um ex-motorista, que ainda dirige ocasionalmente para o derrotado.

Não estaria também seu Líder (traduzo do alemão) morto em algum sentido? Parte de seus idólatras vê, na visível diminuição da vitalidade, um sinal de que não seria ele mesmo nos últimos vídeos, em que pede para que desbloqueiem as estradas. Enganam-se, claro, porque não reconhecem mais no Líder (traduzo do alemão) o próprio desejo.

A morte, contudo, tem sua atualidade e sua efetividade. Esses bloqueios e outras manifestações contra o resultado das eleições, contra a democracia, são cerimônias da morte, como é da essência do fascismo. Esses mortos, não os homenageamos, mas combatemos.

Falando de vida e de combate, no dia 29 de outubro, tive ensaio (o Coral da Cidade de São Paulo apresentaria o Dixit Dominus do Haendel, regido por Luciano Camargo, na segunda-feira) justamente no horário em que Lula falou na Paulista. Saindo do ensaio, ainda pude descer a Consolação com os manifestantes.



O entusiasmo era grande. Havia um grande otimismo em relação à vitória de Lula, pois o adversário nunca chegara a ultrapassá-lo em pesquisas sérias. Os episódios dos políticos bolsonaristas armados com fuzis, pistolas e bombas (algo normalizado para a direita, que tem o desplante de chamar um movimento social como o MST de... terrorista) certamente não conquistariam indecisos.


O dia da eleição, nas minhas redondezas em São Paulo, também foi feliz. As pessoas estavam celebrando nos bares e restaurantes já antes de acabar o horário de votação. Neste vídeo, flagrei o momento em que a rua comemorava que Lula estava matematicamente eleito:



Não sei se saberemos um dia a dimensão (se regional, nacional ou maior ainda) dos esquemas de persuasão alternativa de votos no governo, como este que Caco Barcellos flagrou. Imagino que somente Lula, o maior presidente da história brasileira, teria sido capaz de enfrentar algo desta natureza e enormidade, fruto da leniência estrutural das instituições com a direita no país.

Contra esse tipo de leniência, era importante dar visibilidade à oposição. Fiz o pouco que pude. Durante a campanha, todo dia eu saía com adesivos e/ou broches, andando a pé no Centro de São Paulo, ou pegando ônibus e metrô.




Não tive realmente incidentes por causa disso. Antes do primeiro turno, andava com meu esposo, um cara olhou-nos e disse "demônios". Antes do segundo, um jovem alto que parecia estar em situação de rua e alcoolizado acordou outro jovem que estava dormindo na rua, na minha frente, passou por mim, olhou e disse: "Sou Bolsonaro, seu cu", no mais puro estilo do filho vereador do candidato derrotado. Eu o olhei nos olhos. E seguiu adiante.

Certo dia, almoçava em um restaurante e um homem estava a dizer que Lula nunca poderia ter sido presidente porque tinha se aposentado por causa da mutilação do dedo, "um advogado" lhe contou. Sem ignorância, não há bolsonarismo. Ouvi aquilo e ri, dizendo que Lula provou que o dedo mindinho não era necessário para governar o país.

Os adesivos suscitaram muitas conversas e pedidos de adesivos (passei a andar com extras para dar). Panfletagem, porém, só fiz para a Vivian Mendes, da UP, que conseguiu mais de duzentos e oitenta mil votos sem aparecer no horário eleitoral.

Aqui também temos uma questão importante: faz parte do ódio classista, tão forte no Brasil, o deboche dos trabalhadores manuais mutilados. Esse deboche integra o catálogo de insultos contra Lula, mas na verdade é mais amplo e indica o ódio aos trabalhadores. Como se sabe, a ditadura militar (com seu soi-disant "milagre") não gerou uma enorme concentração de renda, prejudicando os trabalhadores; ela também alçou o Brasil a campeão mundial de acidentes do trabalho. Nesse campo também, a ditadura foi assassina.

Lula vem dessa época. Os zumbis que tentam dar sobrevida ao derrotado parecem ter sido transplantados diretamente desse tempo, em seu culto da morte, não apenas os militares que escolheram o derrotado como sua faceta mais pública, e tem, como instituição, milhares de esqueletos mal ocultados, entre eles os milhares de indígenas mortos e desaparecidos (8.350 para apenas dez etnias, segundo a Comissão Nacional da Verdade). Esses também não foram nomeados.

Lembrando do Mozart: aquele concerto é um dos raros deste compositor em tonalidade menor e tem uma força que se pode chamar de trágica. No entanto, também ele é uma afirmação da vida e da criação.

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