O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Desarquivando o Brasil CLXXIII: Araguaia e massacre em tempos de pandemia

Em 2016, o então deputado federal que hoje ocupa a presidência da república selou o caráter ilegítimo do processo de soi-disant impeachment da presidenta Dilma Rousseff dedicando seu voto a um criminoso, que fora declarado torturador pelo Judiciário brasileiro. A decisão tinha sido confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Agora, em dezembro de 2020, para manter acesa a chama golpista e misógina de seus admiradores e/ou cúmplices, voltou a atacar Rousseff, o que gerou seu protesto em 28 de dezembro, "Índole de torturador", que destaca a dimensão coletiva da ofensa: "Bolsonaro não insulta apenas a mim, mas a milhares de vítimas da ditadura militar, torturadas e mortas, assim como aos seus parentes, muitos dos quais sequer tiveram o direito de enterrar seus entes queridos."
Insulta e rebaixa o país inteiro, evidentemente. No dia seguinte, 29, vinte e três ex-presas políticas, entre elas Amelinha Teles e Crimeia Schmidt de Almeida, publicaram sua carta de apoio a Dilma Rousseff. Destaco este trecho:
O Estado foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010, pelos crimes de tortura e desaparecimento forçado de militantes políticos que ousaram defender as liberdades políticas e a democracia durante a ditadura militar (1964-1985).
Nós mulheres, ex-presas políticas, que nos rebelamos e resistimos  contra o autoritarismo da Ditadura Civil Militar que impuseram à sociedade brasileira naquele período, vimos repudiar estes atos e demandar que as instituições democráticas do Estado Brasileiro tomem as providências cabíveis.
Não permitiremos  que nosso país mergulhe de novo no fascismo e no obscurantismo.
Em defesa da democracia, das liberdades políticas e pelo fim da tortura e dos desaparecimentos forçados! 
A carta chama a atenção para a condenação em caso movido pelos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, um exemplo de ativismo judicial dos movimentos sociais. Neste ano, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros, sobre a Guerrilha do Araguaia, completou dez anos. No entanto, ela continua largamente descumprida pelo Estado brasileiro, que não investigou nem responsabilizou os agentes dos atos da repressão, tampouco encontrou os restos mortais dos desaparecidos, com pouquíssimas exceções.
As militantes também chamam atenção para a continuidade dos crimes de tortura e desaparecimento forçado. Trata-se de um dado crucial, pois eles continuam a ser praticados por agentes do Estado ou por seus colaboradores e parceiros (como as milícias urbanas ou rurais que compartilham a "gestão" de territórios no país), e parecem necessários para a manutenção de uma sociedade tão desigual quanto a brasileira.
Creio que algumas das razões para a invocação persistente, em chave negacionista, da ditadura militar pelos poderes instituídos decorrem dessa necessidade operacional da gestão policial do Estado, e da exigência ideológica do culto à morte ou ao extermínio. Falei disso em agosto deste ano com apoio em Hannah Arendt em uma "live" que o Centro de Estudos Hannah Arendt da USP apagou.
Esse negacionismo apoia-se, como se viu na época da ditadura militar, em uma visão conspiracional, paranoica da realidade, que alimenta ideologicamente a extrema-direita. Citei naquele momento Leônidas Xausa por intermédio do livro Universidade e repressão: os expurgos na UFRGS, que a L&PM e a ADUFRGS lançaram em 1979:


A farsa da extrema-direita de hoje acentua-se no fato de buscar os mesmos bodes expiatórios daquela dos anos 1950 e 1960, os comunistas, hoje, como antes, amalgamados a outros grupos indesejáveis de natureza diversa, como feministas, negros, ecologistas, indígenas, LGBT etc. O impulso de negação da realidade fundamental para este processo, neste ano de 2020, chegou aos requintes de produção milionária e estocagem de remédios não eficazes pelas Forças Armadas para uma pandemia que, alegadamente, não existe ("gripezinha") e que, embora inexistente, teria sido criada por um país oriental para a dominação mundial pelos... comunistas.
Em mais de uma vez, inclusive em dezembro, Bolsonaro homenageou ou mencionou Ustra, judicialmente declarado torturador. Como se sabe, ele morreu em 2015, antes de ver um fã tornar-se presidente da república. Em maio de 2020, o chefe de governo reuniu-se e elogiou outro agente de graves violações de direitos humanos da ditadura militar, Sebastião Curió. Criminoso confesso, confirmou à imprensa em 2009 a execução extrajudicial de 41 pessoas durante a Guerrilha do Araguaia, época em que era major. Depois, ele fez carreira com a exploração de Serra Pelada e do trabalho dos garimpeiros, com a correspondente devastação ambiental. Em coluna publicada em 2020, "Fogo no Pantanal e na Amazônia mostram a verdadeira política econômica de Bolsonaro", Celso Rocha de Barros bem viu na devastação uma das convergências entre Curió e Bolsonaro.
O Ministério Público Federal tentou processá-lo em 2012, mas a ação não foi acolhida por causa da interpretação que o Supremo Tribunal Federal impôs à Lei de Anistia. Destaco dois trechos:







A violência foi infligida não só aos guerrilheiros, mas à população local, inclusive os povos indígenas. Como as operações violaram até mesmo o próprio direito da ditadura (para não falar das normas internacionais sobre combatentes, também descumpridas), o efeito da impunidade somente seria atingido com a extensão inconstitucional da anistia aos agentes graves violações de direitos humanos. 
Essa extensão indevida foi realizada pelo Judiciário brasileiro em 2010, em julgamento cujos recursos dormem atualmente nas gavetas do Ministro Luiz Fux. A Constituição de 1988, no Ato da Disposições Constitucionais Transitórias, havia expressamente limitado a anistia às vítimas da ditadura.
Como virou moda, ao menos desde aquela ocasião, ignorar o texto constitucional para decidir (a Lava-[a-]Jato confirmaria esse método), cito-o aqui:
Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
A falta de responsabilização de Curió e outros, pois, repousa na negação judicial da Constituição da transição democrática, bem como do Direito Internacional dos Direitos Humanos. No entanto, como a imprescritibilidade da responsabilidade do Estado nesses casos foi reconhecida até mesmo pelo Judiciário brasileiro (Recurso Especial nº 1.815.870 - RJ), por causa desses agentes da repressão, o Estado é obrigado a pagar indenizações.
O PSOL informou a Corte Interamericana de Direitos Humanos do elogio ao Curió, tendo em vista que ele implica violação da sentença do caso Gomes Lund. Na Justiça Federal, foi proposto ao menos um processo. Alguns jornais ignoraram o nome das propositoras da ação: Laura Petit da Silva, Tatiana Merlino, Angela Mendes de Almeida, Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha), Criméia Schmidt de Almeida e Suzana Lisboa (algumas delas, signatárias da carta de apoio a Dilma Rousseff). O pedido foi acolhido em dezembro de 2020.
Causando surpresa em ninguém, a Advocacia-Geral da União resolveu recorrer, afirmando que há "intepretações divergentes" sobre os fatos históricos. Sim, sempre há, mas nenhuma legítima. O Estado brasileiro foi condenado pelo seu próprio Judiciário e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por causa dos crimes que cometeu no Araguaia. É improvável a boa-fé do condenado que faz o elogio público de seus próprios malfeitos, nunca cumpriu a sentença nacional nem a internacional e já produziu, em tempos muito melhores, um documento oficial, com provas, de que Curió foi um dos agentes de graves violações de direitos humanos. Trata-se do relatório da Comissão Nacional da Verdade.
A Advocacia-Geral da União tem assumido o papel histórico de defender os crimes do Estado brasileiro. Dessa forma, em 2003, no governo Lula, apelou contra a sentença que condenou para não ter que entregar as informações das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia. O acórdão da Corte Interamericana destacou esse fato:
206. Igualmente, na mesma sentença, a Juíza ressaltou que não cabe negar a importância histórica dos fatos do caso e que “tempos como aqueles, de […] violação sistemática de direitos fundamentais, não devem ser esquecidos ou ignorados”.314 Indicou que “a informação prestada pela [União] é o que permitirá o acesso dos [a]utores aos restos mortais de seus familiares” e que, “se o aparato estatal agir de maneira que violações de direitos humanos fiquem impunes e não se restabeleça a vítima (na medida do possível) na plenitude de seus direitos, o Estado viola suas obrigações convencionais no plano internacional”.315 Ressaltou que os fatos citados na Ação Ordinária constituem “gravíssimas violações de direitos humanos” e, aplicando jurisprudência deste Tribunal, determinou que a verdade sobre o ocorrido deveria ser relatada aos familiares de maneira pormenorizada, já que era seu direito saber o que realmente ocorreu.316 Como consequência do anterior, a Juíza Federal de Primeira Instância solicitou à União que suspendesse o sigilo e entregasse todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas com a Guerrilha.317
207. Em 27 de agosto de 2003, o Estado Federal, por meio da Advocacia-Geral da União, interpôs uma apelação contra a referida decisão, na qual, inter alia, questionou o levantamento do sigilo dessas informações e reiterou que o pedido dos autores estava sendo atendido mediante a Lei nº 9.140/1995.318 Informou também que a Comissão Especial, no marco de aplicação da referida lei, “requisitou e recolheu documentos e informações provenientes das Forças Armadas e de outros órgãos públicos, além de ter realizado missões na Região do Araguaia para levantamento de informações e busca de restos mortais das pessoas desaparecidas”.319
Registre-se que a brilhante magistrada que falou dos fatos que não devem ser esquecidos ou ignorados chama-se Solange Salgado. Em 2009 o recurso protelatório do Estado brasileiro foi negado. No ano seguinte, viria a condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A defesa dos crimes de lesa-humanidade e o descumprimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como da Constituição da transição democrática, elegeram em 2018 governos feitos a sua imagem e semelhança, com seus reiterados elogios ao crime e ao massacre. 
O massacre, por sua vez, torna-se dimensão institucional da resposta à pandemia, que não termina em 2020. Essa resposta gerou denúncias ao Tribunal Penal Internacional. 
A propósito, a Procuradoria do TPI aceitou em dezembro de 2020 investigar o governo brasileiro por incitação ao genocídio contra os povos indígenas. Veremos se essa denúncia seguirá o mesmo caminho da que os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos ofereceram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

"Um ano de vírus,/ dois anos de verme"

I

Um ano de vírus,
dois anos de verme,
todo o corpo
ocupado
como um planeta
sob asteroides.

Um ano de vírus,
dois anos de verme,
um universo
programado
para a implosão
das estrelas.

Um ano de vírus,
dois anos de verme,
os asteroides
trazem a
queda,
não minérios,

a explosão
não gera luz,
mas poeira,
é o que 
resta
das estrelas.

Após um ano
de vírus, o dobro
do verme,
que tempo
resta 
ao corpo,

que corpo
é este mudado
em tempo
medido
em verme
e febre,

no universo
cronometrado
pela poeira,
a imitação
que as estrelas
fazem do vírus?


II

Nenhum universo
na febre medida pelo verme,
apenas colisões do capital
com o sistema imunológico.

Mas o verme vê a febre
e nega o termômetro,
o colapso climático
e até o rubro das chamas

enquanto Roma arde
durante o concerto do vírus
feito só de gemidos
de agonizantes.


III

Morrem completamente isolados.
Com saudade não dos familiares, mas dos ares,
o oposto dos asteroides
que se inflamam
ao atingirem a atmosfera.


IV

Multidões ainda
levantam os gritos e espirros aos céus
orando para o verme,
que infecte todas as camadas geológicas
e logo não se distinga mais
entre a moléstia e a terra,
entre o solo e a devastação,
multidões oram 
por sacrifícios humanos
enquanto são abatidas,
ainda são multidões
essas que gradativamente
caem durante os urros e sussurros
aos asteroides
para que o vírus
torne tudo em pó
e assim todos eles
confundam-se
às estrelas
mortas, porém
vão caindo, e o voo 
das moscas que cobrem seus ossos
será tudo
que conhecerão do firmamento.


V

Um ano de vírus;
para o verme,
um começo de parceria,
quem sabe
uma fábrica de máscaras furadas para pandemias,
uma empresa de festas para febres coletivas,
um armazém do exército para remédios inúteis,
um serviço de disparo de mensagens 
de otimismo, deus e civismo,
mensagens sobre a vileza dos mortos
que caíram inertes
só para desmenti-las.

Verme e vírus
inventam um país
à imagem do empreendedorismo.
Também no sabor blue berry.


VI

O plantão durou dois anos.
Porém levamos mais tempo para descartar o material contaminado no lixo hospitalar.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Mundo-Vertigem, antologia da ficção fantástica brasileira por Luiz Bras





Luiz Bras me chamou para participar desta antologia de literatura fantástica brasileira contemporânea, Mundo-Vertigem, por causa do conto "Grito adentro", de Cidadania da bomba.
Fiquei muito surpreso, pois sempre achei este gênero muito além das minhas forças. Concordei, no entanto, não apenas pela oportunidade de estar com ele e os outros autores, mas por pensar que o fantástico é também uma forma de ver o mundo e a literatura, e que, inobstante a situação cotidiana retratada na história, se poderia ver aquele conto, que escrevi em quinze minutos em uma oficina de literatura de Fabio Weintraub, dessa forma.
Acrescento ainda que, se eu tivesse tanto pudor com o que está além de mim, não poderia escrever. Pois a literatura exige um esforço de ultrapassar-se.
Depois de quase um ano de pandemia no mundo, e de dois anos da volta como farsa dos militares ao poder no Brasil, o que ainda pode ser considerado fantástico na literatura? Talvez a mais previsível "normalidade" seja o fantasma que poderia nos causar vertigens com suas alturas inacessíveis do rés do chão.
Segue abaixo o release da obra, já disponível para compra:




Mundo-vertigem

Alink Editora

Luiz Bras (organização)

14 x 21 cm

232 páginas

R$ 37


A coletânea Mundo-vertigem: ficção fantástica brasileira reúne trinta e seis talentos de nossa literatura contemporânea, todos fascinados pelas facetas mais insólitas da existência. Os contos aqui reunidos comprovam que essa nova geração de ficcionistas continua mantendo em altíssimo nível nossa ficção fantástica (às vezes chamada de realismo mágico), gênero impulsionado no século vinte, entre nós, pelos mestres do extraordinário: Murilo Rubião, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles, Victor Giudice, Maria Helena Bandeira, Jamil Snege e outros.


Autores:

Adrienne Myrtes + Alex Xavier + Amilcar Bettega + André Czarnobai + Antonieta Fernandes + Braulio Tavares + Carla Figueiredo Vieira + Carlos Emílio Corrêa Lima + Danielle Martins Cardoso + Eduardo Sabino + Fábio Fernandes + Helen Fadul + HelO Bello Barros + Isabor Quintiere + Ivan Carlos Regina + Ivan Nery Cardoso + João Paulo Parisio + Manoel Herzog + Márcia Barbieri + Marne Lúcio Guedes + Nathalie Lourenço + Nelson de Oliveira + Pádua Fernandes + Patricia Galelli + Rafael Sperling + Regina Junqueira + Rodrigo Garcia Lopes + Romy Schinzare + Rosana Rios + Santiago Santos + Sidney Rocha + Silvia Camossa + Sofia Soft + Tereza Yamashita + Veronica Stigger + Wilson Alves-Bezerra



Alink Editora

alinkeditora@gmail.com

www.alinkeditora.com.br


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Cida Moreira fala no Entreartes


Espero poder entrevistar em 17 de dezembro de 2020 com o professor Marcos Lemos a cantora e atriz Cida Moreira, às 18 horas. O evento é iniciativa do "Entreartes: conversas sobre a literatura brasileira", organizado por Lemos e Simone Rossinetti Rufinoni e ligado ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da USP. Já foram realizadas entrevistas com Zeca Baleiro, Milton Hatoum e Bia Lessa, disponíveis no canal do programa. Nesta ligação, a conversa poderá ser acompanhada ao vivo.
Claro que fiquei muito feliz com o convite. Não falarei disso no momento, mas me lembro da primeira vez que a vi: foi na tevê, no chamado "Festival dos festivais", em que ela defendia "Novos rumos", de Rossini Ferreira e Ana Ivo, uma música de clima brasileiro e antigo (um choro), que não logrou premiação, mas de que gostei muito e foi uma das poucas desse momento que ficou em minha memória. No entanto, só a vi apresentar-se ao vivo depois de mudar-me para São Paulo, neste século.
Era 1985, e ela já tinha muita experiência artística, pois cantava e tocava piano desde a infância e, desde a década de 1970, se envolvera em diversos projetos teatrais importantes, entre eles "A ópera do malandro", além de "Ornitorrinco canta Brecht e Weill". Sua carreira impressionante inclui ainda o cinema e, no campo musical, abrange compositores tão diversos quanto Ligeti e Lamartine Babo, Janis Joplin e modinhas imperiais, Arrigo Barnabé e Custódio Mesquita, Amy Winehouse e Eduardo Dussek, Tom Waits e Hanns Eisler, entre outros. Sua identificação com Kurt Weill e Chico Buarque é muito celebrada.
Na coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, recomendo um volume dedicado a esta artista, escrito por Thiago Sogayar Bechara. Na conversa do Entreartes, buscaremos ouvir esta grande intérprete de Brecht sobre literatura brasileira.


Alberto Pimenta e o Discurso sobre o filho-da-puta de volta, em tempos muito apropriados, ao Brasil

Foi editado novamente no Brasil o Discurso sobre o filho-da-puta, de Alberto Pimenta. Desta vez ele saiu na revista Serrote, número 35/36, publicação do Instituto Moreira Salles.
O livro, como se sabe, é uma das obras mais originais do século passado, e a mais traduzida do autor. Não acho inapropriado classificá-lo de ensaio, tendo em vista o caráter livre e imaginativo que o gênero pode assumir. Após o "plano geral da obra", que já se anuncia genial, abre-se com um poema, a "balada ditirâmbica do pequeno e do grande filho-da-puta":

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

A repetição obsessiva da expressão acaba por normalizar o "palavrão" e realizar o seu significado profundo: demonstrar que esta espécime de ser humano está em todos os lugares, todas as dimensões da vida social, e mesmo entre os leitores deste livro. O gênio de Pimenta na caracterização dos diferentes tipos de filhos-da-puta e de sua atuação nunca foi demasiadamente louvado.
Em homenagem ao momento político do Brasil e aos cheques alimentadores de seus grandes representantes, lembro deste trecho:

que o filho-da-puta especializado em fazer faz um acordo público, é difícil saber se é um acordo público que traz préstimos particulares ou se é um acordo particular feito de prestações públicas, e o mesmo acontece sempre que ele, o filho-da-puta, faz todas as coisas que o filho-da-puta faz, as obras públicas feitas por motivos particulares, os programas de ensino público decretados com intenções particulares, as guerras públicas movidas para obter vantagens particulares, os jornais públicos cujo préstimo é relatar sobretudo os prestígios particulares, os estabelecimentos públicos para ocupações particulares, a assistência pública para lucros particulares, em suma, os negócios públicos feitos para fins particulares e os negócios particulares feitos com meios públicos, e basta.

Há filhos-da-puta especializados em fazer e há aqueles que se dedicam a não deixar fazer; estes habitam, por exemplo, "a secretaria, toda a secretaria da mais baixa à mais alta, não é, como se supõe, o lugar onde se faz, mas o lugar onde não se faz, onde se sonega, onde se põe por baixo do monte o papel que devia estar em cima". Eles cometem esses atos e omissões porque, entre outras razões,

o desejo do filho-da-puta é que ninguém estivesse nunca no meio do novo, do belo, do agradável, porque isso dá satisfação a quem lá está; que ninguém fizesse nunca nada de novo, de belo, de agradável, que isso vem alterar a ordem das coisas, e o filho-da-puta só se sente à vontade quando as coisas estão na ordem e ele à frente delas.

O ódio ao belo e o amor à ordem, sabemos bem que tipo de artista isso dá, e que prêmios e atenções ele recebe.
A Serrote omite que o Discurso teve uma edição no Brasil posterior à portuguesa de 2000. Em 2003, a Achiamé o relançou, duas décadas após a edição de 1983 da Codecri.


Talvez a revista pudesse ter informado que o livro foi levado ao teatro em Portugal neste infausto ano de 2020 (por essa razão, menos infausto), com direção de Fernando Mora Ramos, música de Miguel Azguime e o "quarteto de cordas vocais" Cibele Maçãs, Fábio Costa, Marta Taveira e Nuno Machado. Talvez não, visto que, em razão dos atrasos causados pela pandemia, o espetáculo teve a estreia adiada. Os tempos estão bem difíceis também para os trabalhadores do teatro e da música, para não falar da ópera.
Falando neste assunto, o que faria o filho-da-puta diante deste problema mundial de saúde pública? Imagino, em exercício abstrato de suposição, que o filho-da-puta especializado em não deixar fazer impediria que a população se vacinasse ou mesmo se prevenisse corretamente.
Alcançaria sucesso nesse empreendimento genocida? Ignoro. Precisaria muito da cooperação de seus semelhantes, muitos deles especializados em matar e, outros, em se deixar matar. Quem sabe alcançaria a marca de duzentos mil mortos em doze meses? De tanta omissão e impedimentos, lograria realizar uma ação inaudita. Como escreve Alberto Pimenta sobre o filho-da-puta, "o homem é nosso alvo".

sábado, 12 de dezembro de 2020

Desarquivando o Brasil CLXXII: Roda de conversa 52 anos do AI-5




A professora Luciana Coronel organiza e será a mediadora desta Roda de Conversa sobre o Ato Institucional n. 5, uma das aberrações jurídicas mais lembradas da ditadura militar, porém não tão bem compreendida, apesar ou por causa de ser tão invocada hoje pela extrema-direita e por apoiadores do 
atual governo federal.
Participarei dela com Amelinha Teles, um nome que se confunde com a História do Brasil desde os anos 1960, e o historiador Paulo César Gomes.
Membros do governo federal e seus apoiadores minimizaram o caráter nefasto do AI-5, a começar do chefe do governo ("Não queremos negociar nada", diz Bolsonaro em manifestação que pedia AI-5; Participação em ato pró-AI-5 isola Bolsonaro ainda mais e cresce oposição ao governo) ao cometer crime de responsabilidade participando de protesto em abril deste ano que pedia o fechamento do Congresso Nacional.
Ele participou daquela bazófia, em plena pandemia, sem máscara (e tossindo), desmascarando, para todos aqueles que já perceberam há muito tempo, o evidentíssimo desapreço à democracia.
Em junho de 2020, foi encontrado pela polícia o braço direito do senador pelo Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro e signatário de cheques à primeira-dama: Fabrício Queiroz.
Ele estava escondido das autoridades na casa de ex-advogado de Jair Bolsonaro e do mencionado senador filho do ocupante da presidência da república. Nela, estava um cartaz do AI-5 perto de bonecos do mafioso Tony Montana, do Scarface.
Curiosa visão. O que significaria essa curiosa estética de combinar criminalidade política e criminalidade comum? E numa casa habitada por homens próximos de grandes autoridades da república?
Ignoro. Talvez pensar no que foi o AI-5 e por que ele continua sendo invocado pela direita brasileira sugira algumas pistas.
Além dos endereços indicados acima, o evento da página Narrativas da ditadura brasileira poderá ser acompanhado por meio desta ligação: https://www.youtube.com/watch?v=X1_7gmrCSK4

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Pré-lançamento da coletânea "Jumento com faixa: deboches e antiodes ao fascismo"



Neste sábado, dia 12 de dezembro de 2020, às 20 horas (fuso de Brasília), haverá um evento ao vivo de pré-lançamento de uma obra coletiva, de título muito sugestivo, na qual estou incluído. O poeta Zeh Gustavo, de quem tive a chance de apresentar o livro Pedagogia do suprimido, convidou-me a participar de uma coletânea de poesia com o título enigmático Jumento com faixa: deboches e antiodes ao fascismo, a ser publicada pela editora Viés. Do que trataria o livro? Não ousei indagar naquele momento.
Aceitei o convite, claro, mas perplexo, considerando, de um lado, que numerosos acadêmicos demonstraram que não há fascismo hoje, e sim o mero funcionamento normal das instituições vigentes; e, de outro, que os referenciais filosóficos mais contemporâneos combatem o especismo e que devemos, claro, imaginar que um jumento possa efetivamente ser escolhido (ou até mesmo eleito, por seus pares ou não) para receber faixas, inclusive presidenciais.
No entanto, incapaz de escrever sobre algo tão alheio à realidade brasileira, na qual: a) as instituições em geral não funcionam para os fins a que foram destinadas, e sim para outros; b) vivemos a ameaça de extinção de espécies e biomas, tendo em vista a eficácia das políticas públicas de devastação; resolvi enfim rever, revisar um poema que rascunhei neste blogue e não entendi bem sobre o que era, ou se chegava realmente a possuir algum assunto, ou se o assunto era somente alguma forma espúria de despossessão.
A partir desse material já esboçado, consegui atender à encomenda, ou talvez não tenha logrado fazê-lo, porém, se foi esse o caso, os organizadores (além de Zeh Gustavo, temos Rafael Maieiro) fingiram não notar meu fracasso.
Sei que os outros escritores presentes, que pertencem a diversas gerações, chamarão muito a atenção dos leitores. Eles são Alberto Sobrinho, Alexandre Guarnieri, Amanda Vital, Amora Pêra, André Vallias, Áurea Alves, Bruno Borja, Diego Barboza, Divanize Carbonieri, Eduardo Sinquevisque, Filipe Manzoni, Guilherme Zarvos, Henrique Rodrigues, Ítalo Lima, José Brandão, José Henrique Calazans, Katyuscia Carvalho, Letícia Becker Savastano, Luis Maffei, Manoel Herzog, Manuela Oiticica, Marcelo Reis de Mello, Maria Célia Barbosa Reis da Silva, Mariana Blanc, Mauro Iasi, Nuno Rau, Pedro Rocha, Rubermária Sperandio, Sandro Félix e Thamires Andrade.
O evento ocorrerá na conta de instagram @zeh.gustavo. O lançamento ficará para 2021. Esperemos que haja 2021 para nós.


P.S.: A ligação para pré-venda: https://www.livrariafantasticadoborges.com.br/pre-venda-jumento

sábado, 28 de novembro de 2020

Os movimentos de moradia e o voto em Boulos e Erundina

Vi recentemente o jornalista Raphael Prado relembrar um vídeo, de que ele escreveu o roteiro para o Uol,  com o perfil de Ivanete, do Movimento Sem-Teto do Centro: https://twitter.com/rapha_prado/status/1329045147603132418

Ele rememorou o perfil por causa de comentário do governador do Estado de São Paulo contra os movimentos dos sem-teto, em observação aparentemente eleitoreira, em razão da candidatura de Guilherme Boulos, que concorre à prefeitura de São Paulo contra o antigo vice de Doria (ele abandonou o Executivo municipal para assumir o governo do Estado), Bruno Covas.
A observação era ainda mais absurda porque Doria invadiu terra pública em Campos do Jordão e foi condenado por isso em 2016.
O vídeo, embora esclarecedor, por ser breve não aborda certas questões que emergiram de forma distorcida (foram muitas) na campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo. Esta campanha opôs um partido historicamente hostil à população em situação de rua, aos trabalhadores ambulantes, aos catadores de papel, e descumpridor das normas de direito urbano, a um líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Trata-se de duas concepções tão antagônicas de cidade, de um lado a excludente e elitista, do urbanismo de e para o capital, e de uma visão do que se chama de justiça social, a partir das classes populares, que a discussão política foi polarizada entre os dois candidatos que chegaram ao segundo turno, entre aqueles que preferem que São Paulo permaneça como está (uma opção pela insustentabilidade e pela miséria vigiada) e os que apostam que ela pode se democratizar.
Claro que a candidatura de Boulos é a que detém o horizonte da utopia, enquanto a outra é a do "não foi bom, eu sei, mas vou insistir". Percalços relativos ao tamanho do partido, Psol, à continuidade política e institucional do outro partido no Estado de São Paulo, e até mesmo de saúde pública (Boulos contraiu coronavírus no fim da campanha), e a conjuntura política ainda favorável aos novos fascismos são alguns dos fatores que fizeram deste nome do MTST uma surpresa em 2020.
Quando vim morar em São Paulo, uma das primeiras coisas que fiz foi tentar ajudar na rede de apoio à Ocupação Prestes Maia, em sua primeira versão, já com Ivanete. Eu cheguei em 2005. O Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC, que não está mais lá, e sim outro movimento, o Movimento por Moradia na Luta por Justiça - MMLJ, de que essa militante participa agora) teve que enfrentar José Serra e, depois que ele largou a prefeitura para assumir o governo do Estado (na tradição tucana de abandonar a chefia do executivo municipal, visto como trampolim para outros cargos, ou simples objeto de negociação política), Gilberto Kassab (que, ironicamente, acabaria nomeado ministro das cidades por Dilma Rousseff).
O primeiro dado que tem sido distorcido nos debates suscitados pela campanha é que não existe um só movimento de luta por moradia. Só em São Paulo, tendo em vista a dimensão da cidade e o notável défice habitacional, há vários. No Prestes Maia, que ficou conhecido no início do século como a maior ocupação da América Latina, nunca esteve o MTST, que é ligado a Boulos. Algumas pessoas, seja por má-fé, seja por loucura ou até mesmo ignorância referem-se aos sem-teto como se fossem uma coisa só, um só movimento, e essa absurdo às vezes ganha proporções nacionais.
Outra distorção é afirmar que o "movimento dos sem-teto", que não é um só, é na verdade o Movimento dos Sem Terra (MST), de camponeses, fazendo uma identificação rasteira, ignorando os atores sociais em jogo, mas também as diferenças grandes entre as moradias urbanas e as rurais, bem como as diferentes formas de produção econômica em espaços tão diversos. Trata-se de outro movimento e não, o Boulos não o lidera.
Esse tipo de confusão, embora flagrantemente absurdo, não deriva de uma suposta atroz estupidez coletiva: ele é produzido socialmente por preconceitos classistas e pelos financiadores dos meios de comunicação, que são em regra veículos de desinformação e incitadores de criminalização dos movimentos sociais.
No entanto, há algo em comum entre esses movimentos: eles, ao contrário dos empresários invasores de terras públicas (alguns deles até se lançam com sucesso na política), reivindicam o cumprimento da Constituição da República, em especial no tocante ao princípio da função social da propriedade e ao direito à moradia. No caso dos movimentos por moradia urbana, destacam-se os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, a lei federal que os regulamentou, o Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) e esta lei municipal, o Plano Diretor.
Essas normas jurídicas estão entre as mais violadas pelos poderes públicos (Judiciário, Executivo e Legislativo, cada um tem seu papel distinto em negar efetividade ao direito brasileiro nas previsões relativas à justiça social) e pelas grandes empresas. Os diversos vídeos que a campanha do Boulos produziu são realmente instrutivos: o MTST ocupa imóveis vazios, com dívidas, que descumprem as exigências constitucionais e legais, para que as instituições ou os regularizem para habitação social ou atenda a população em situação de rua de outra maneira.
Esses movimentos de moradia urbana, portanto, produzem cidade em espaços que, muitas vezes, estavam abandonados. Aqui temos um paradoxo: diante da falta de cumprimento do Direito pelos órgãos públicos, as ações de ocupação pelos movimentos sociais possuem um sentido legalista. Como vi os integrantes do MSTC afirmando, eles saem da lei para fazer cumprir a lei. Isso somente se faz necessário porque as instituições, na prática, violam o estado de direito, o que é o caso do Brasil.
Em 2008, publiquei um artigo que apresentei em um grande evento, a Jornada em Defesa da Moradia Digna, "O pluralismo paradoxal e os movimentos sociais: democracia participativa e o Estatuto da Cidade", em que tentei analisar o problema. Não gosto do início do texto, apressado demais para as questões de ordem sociológica envolvidas. Creio que ele serve, porém, em relação ao que digo sobre o Estatuto da Cidade e na resistência do Estado em fazer cumprir sua própria lei, na medida em que ela serviria para beneficiar os mais pobres, e na necessidade dos movimentos sociais usarem a retórica jurídica e as previsões legais contra o próprio Estado.
Viu-se, nesta época de campanha, agentes de desinformação pública publicando coisas como "veja, este Boulos é um terrorista, quer parcelamento e edificação compulsórios, desapropriação de imóveis"! De fato, essas previsões estão no plano de governo de Boulos e Erundina. Porém, muito longe de configurarem instrumentos de terror, elas estão na Constituição da República (artigo 182) e no Estatuto da Cidade... A desapropriação, por sinal, foi criada na história do direito para garantia do direito à propriedade privada: antes dela, o que os poderes públicos faziam era o confisco. Quando Erundina foi prefeita, o Estatuto da Cidade ainda não existia, o que fez, por exemplo, sua tentativa de instituir o IPTU progressivo malograr. Agora, esses instrumentos podem ser usados pelo Executivo municipal, e a próxima administração virá no momento de rever o Plano Diretor.
A pandemia, creio, reforçou a percepção da importância dessas questões urbanísticas, como o próprio Boulos declarou em entrevista dada a Henrique Frota, João Bazolli, André Arruda em época em que ele ainda não tinha sido escolhido candidato à prefeitura, publicada neste ano pela revista InSURgência, do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais:

Essas eleições  municipais  vão ser muito nacionalizadas, polarizadas com bolsonarismo e antibolsonarismo. É inevitável. Agora eu acho que justamente pela pandemia, o tema da moradia, e o tema do direito à cidade estarão no centro da agenda nacional. Vou te dizer por que: porque nunca o tema sobre condições de moradia para o povo esteve tão em voga quanto num período em que o mundo todo diz: “fique em casa”. Essa foi a palavra de ordem dos últimos três meses no mundo, quatro meses no mundo. Aí vem a segunda questão: “que casa?”. Como que você vai dizer “fique em casa” para alguém em situação de rua? Como é que você vai dizer “fique em casa” para o cara que mora num barraco de 3x4 com outras 4 pessoas? Como é que se vai dizer para ele se isolar nestas circunstâncias? “Lave a mão toda hora!” Como é que se vai dizer pra lavar a mão em um bairro que não chega água, e onde o saneamento básico é precário?

A dignidade de ter um teto é um valor constitucional. Entende-se que, neste período de crise, ela ocupe um papel central na discussão política, e é típico de um país tão desigual que sua importância seja negada pelos poderosos. Os conservadores desceram ao nível lamentável de ter que enlamear a Constituição cidadã de seu próprio país para poderem fazer campanha política... E desinformar o público.
Nesse ponto e em outros, vê-se que esses conservadores são contrários à cidadania, ao contrário da chapa de Guilherme Boulos e Luiza Erundina, e essa é uma das razões por que votarei nela. 

Anos depois, tentei prosseguir naquela reflexão de que 

Os movimentos não reivindicam uma outra ordem jurídica, e sim a efetividade da ordem oficial, enquanto as autoridades públicas, no Judiciário  e  no  Executivo  decidem  e  agem  de  forma  a  violar  o  direito estatal. De baixo para cima, é preciso violar o Direito para tentar que ele  seja  cumprido –as  ocupações  (e  isso  as  distinguiria,  segundo  os movimentos sociais, de simples invasões) seriam o instrumento, embora formalmente ilícito, de dar efetividade ao Direito: a própria legalidade precisa ser construída de forma ilegal. De cima para baixo, temos, ao contrário, a recusa à efetividade do direito constitucional, bem como a violação pura e simples da legislação infraconstitucional e  de  tratados  internacionais  sobre  direitos  sociais  pelas  autoridades públicas –a  produção  legal  da  ilegalidade [...]

Foi uma conferência transformada (reduzida, na verdade) em artigo, "Lugares do direito à cidade e a Filosofia do Direito", em que tentei enfrentar o problema no âmbito desta noção importante do direito à cidade, campo em que as fronteiras do legal e do ilegal são mais claramente cinzentas, ao ponto de os poderes públicos lançarem mão do que chamei de "produção legal da ilegalidade" para negar efetividade ao direito à moradia e à função social da propriedade. Nesse ponto, vê-se o protagonismo dos movimentos sociais na criação do direito, que é uma atividade essencialmente política.
Na época da primeira Ocupação Prestes Maia, eu elaborei para o movimento uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ela acabou não sendo necessária, pois o MSTC chegou a um acordo, com ajuda do governo federal, para que os moradores fossem atendidos. Como a fundamentação jurídica que usei (creio que forma nova) poderia ser invocada em casos semelhantes, quis dar-lhe a forma de artigo, "Ocupações urbanas e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: o caso Prestes Maia no Brasil", que consegui publicar em uma revista importante, a mais antiga na área de teoria do direito na América Latina, na... Colômbia. Nele, busquei mostrar como o direito à moradia também encontra fundamento no Direito Internacional, e mostrar o desprezo à cidadania que era ostentado pelas autoridades da época, entre eles o secretário municipal de habitação, que disse não ligar para os sem-teto, pois "Tem um monte de sem, eu por exemplo, estou sem carro, que roubaram o meu, estou sem relógio rolex que eu não posso comprar".

É horar de fazer com que os políticos desse tipo fiquem sem mandato. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Morte, banimento e sorriso da grande cantora

I


morreu a grande cantora
seu maior momento
eu o vi
na boate BaiserGlitter
uma jovem travesti
às sete da manhã
invadiu o palco
já estava sendo varrido
invadiu-o para dublar a canção
imitava a tintura da grande cantora
copiava os cílios da grande cantora
era a própria grande cantora no gesto com o polegar
virado para o céu
dizendo talvez
sim

não sei se a jovem travesti
estava a ensaiar
ou se ela já tinha desistido
da noite da performance da boate ou
da grande cantora
lembro que comecei a chorar alto
pois a canção jamais foi ouvida
na voz da grande cantora
mas na de outra

a travesti se enganava com o repertório
ou julgava que tudo que o seu corpo encarnasse
poderia ser entregue em sacrifício
à grande cantora


II

pegava as notas por baixo
a tonalidade nem sempre estável
o nariz a principal caixa de ressonância
a troca do legato pela simples fala
o gosto duvidoso em tudo salvo no cabelo
não era realmente grande
a grande cantora

mas exatamente por isso
o público podia guardá-la no bolso
e quando nele enfiava as mãos
elas saíam quentes


III

rasteiro e limitado
o repertório da grande cantora
só canções de amor
como pretender
que no país de genocidas racistas
misóginos homofóbicos transfóbicos
com militares e banqueiros trocando afagos
enquanto leiloam a terra sob bênções pastorais
como pretender
que neste centro de torturas promovido a Estado
só se cantem canções de amor?

ou talvez por isto ela fosse amada
ter oferecido ao Estado
a trilha sonora mais adequada à devastação


IV

a algumas polegadas da realidade
a grande cantora
na assembleia oficial
entra para cantar
o hino nacional

estivera alguns metros
acima da realidade
todos notariam o desarranjo
perceberiam a loucura
de chamar esta terra de país
e de ela ter um hino
embora cale a voz de quase todos

estivera a grande cantora
metros abaixo da realidade
seguiria a partitura estritamente
e o exílio da imaginação
reiteraria o país

a grande cantora
estava porém apenas algumas polegadas
acima da realidade
a subversão ocorreria milímetro a milímetro
até a derrocada dos palácios

a apresentação começa
a grande cantora
oferece a própria cabeça
em vez do hino


V

a grande cantora tivera prosseguido
se as luzes não fossem apagadas
se o microfone não cortado
e a memória não fosse uma terra de exílio

se o hino não tivesse ficado suspenso
na irresolução tonal
no ritornello aleatório
na letra soluçada pela amnésia

a grande cantora teria chegado ao final
e mostrado ao país
já todo à imagem do hino estropiado
como sair da crise

mas ninguém aceitou
a cabeça da grande cantora
ofertada no sorriso da bandeja


VI

ainda não lemos o testamento
da grande cantora
já roubado das gavetas por palhaços e borboletas

investigação criminal
para descobrir o testamento da grande cantora
nos circos foram revistadas
as cáries dos leões
a maquiagem das bilheteiras
a queda dos acrobatas

rumores de que no testamento da grande cantora
estão os mapas originais da terra
as provas do roubo originário
que chamamos de país

caso de segurança nacional
o testamento da grande cantora
família e Estado procuram-no
para queimá-lo


VII

meus pais tiveram um elepê
da grande cantora
em plena ditadura

ela sobreviveu aos discos
morreu na era das listas de reprodução automática

imbecis ouvem listas
para tratar a música
como ruído de fundo

o fundo das listas
ou os ruídos do mercado
nas jaulas da moda

a grande cantora
nasceu na época do elepê
a censura necessitava
de órgãos do Estado

(o disco de meus pais
nunca o tive
debandado
toca em algum lugar minha ausência)

a grande cantora morreu
quando as listas do capital
tornaram a censura
na própria escuta

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Poesia e memória: A combustão de Clarice Lispector e as folhas reencontradas de Leonardo Gandolfi

Todo ano é de Clarice Lispector, mas 2020 é o centenário de nascimento da escritora. Com os percalços e desafios mundiais deste ano atípico, talvez alguns eventos da comemoração tenham sido adiados ou prejudicados. Mais importantes que os eventos, no entanto, são os textos que nascem em diálogo com a escritora. Entre eles, o que achei de mais impressionante foi um poema, "Robinson Crusoé e seus amigos", de Leonardo Gandolfi, publicado em março de 2020 pela revista Piauí
A poética é bem típica do autor. Com versos livres e brancos, em geral curtos, o tom é de rememoração em voz baixa, com o universo das relações privadas em foco. A ausência de pontuação e a falta de indicação explícita das vozes reforçam esse efeito de que algo forte vem mansamente à tona da recordação. Há duas vozes que falam no poema: a do eu lírico e a de Clarice Lispector.
A primeira parte do poema narra como a mãe vai trabalhar com Clarice Lispector; ouvimos apenas a voz da escritora, mas não a da mãe. Na segunda parte, conta-se a doença da mãe, "o aneurisma/ que a tiraria de cena" e a deixou em coma. Na terceira, fala-se da coleção de folhas secas que a mãe criou. Na quarta, temos Robinson Crusoé e seus pertences. Na quinta, a ação de ninar da filha ajuda a conceber este poema. Na sexta, volta-se ao passado: a mãe arruma os livros de Clarice Lispector, ambas são fumantes e a escritora fala sobre fumar e dormir. Como se sabe, por conta desse hábito, ela sofreria um acidente grave; sobreviveria, mas com boa parte do corpo queimado.
A divisão parece desconcertante, mas o encadeamento é muito bem achado. Alberto Pucheu destacou a "estranheza do vínculo de muitos títulos com seus respectivos poemas" na obra deste poeta (em Do tempo de Drummond ao (nosso) de Leonardo Gandolfi, livro de Pucheu publicado pela Azougue em 2014). Com efeito, o título deste poema também surpreende; mas Robinson Crusoé, embora não tenha sido, evidentemente, criado por Lispector, está completamente no seu lugar: ele também sofreu um grave acidente. Quais são os seus "amigos" aqui? Para a mãe do narrador, Rita, o naufrágio foi o aneurisma e o coma. Para Lispector, o incêndio que sofreu, e a que o poema alude na última estrofe:

não é fumar enquanto se espera 
o sono chegar 
mas sim fumar e dormir 
de uma só vez 
nem que para isso 
eu entre em combustão

Este fim do poema, além da ressonância biográfica, explicita uma poética e um método de criação: ouvir simultaneamente o inconsciente e o fogo, até, no limite, queimar-se. Alguns criadores são desta categoria, a dos que se imolam a criar.
O eu lírico, que desastre terá sofrido? Certamente o da mãe. Ele diz que lia livros para ela em coma: "Prestes a perdê-la/ usei o carimbo/ para colocar seu nome/ na folha de rosto/ dos livros que lia para ela/ durante o coma". Perdidos já o carimbo e esses livros, restou o exemplar de Robinson Crusoé, que se tornou o título e, digamos, a vida exemplar para as que aqui comparecem.
Se esses livros quase todos se perderam, restou parcialmente uma coleção deixada pela mãe:

Entre as coisas
que minha mãe deixou
está uma série de folhas secas
que ela recolhia
de jardins e parques
quando viajava

Em cada uma das folhas
estão anotados
com tinta azul de caneta
lugar e dia
em que foram recolhidas

Sem saber o que fazer, ele guardou as poucas remanescentes entre livros. Como não se recorda de onde estão exatamente, "às vezes/ sou pego de surpresa/ quando ao abrir um livro/ encontro folhas secas/ com a letra dela". Estas folhas escritas encontradas ao acaso no meio de livros, também não representam a literatura, ou ao menos a iluminação que ela pode intermitentemente oferecer? Na seção seguinte, lemos que

Não lembro quem
mas alguém disse
que à noite
todos os poemas são cinza

Se a literatura é o que restou da combustão, a resposta deve ser positiva, com a ressalva de que quem escreveu estes versos da mãe foi o filho. E o filho apenas percebeu como criar este poema enquanto ninava a neta, isto é, a filha dele, que tem o nome lispectoriano de Rosa (lembro especialmente do genial "A imitação da Rosa", apesar do autor de Sagarana):

Se estou aqui
é só para esperar
a próxima vez
em que você vai chorar
a próxima vez
em que você vai sorrir

Enquanto nem uma coisa
nem outra acontece
presto atenção
nos menores detalhes
a minha mão
junto da sua

Aqui, o próprio pai encarrega-se dos cuidados com a filha. Neste ponto, devemos relembrar os versos iniciais do poema: a oportunidade da mãe de trabalhar com Clarice Lispector aparece porque "Minha avó/ trabalha na casa de uma das irmãs/ de Clarice Lispector". Desde o começo, temos a memória familiar posta diante de nós. Mas também a questão do trabalho: avó e mãe realizam trabalhos no espaço doméstico para outras mulheres, e a patroa Lispector com talvez alguma condescendência diz: "Clarice entrega a ela/ com o punho cerrado/ algumas notas e diz// isto aqui Rita/ é para os seus supérfluos".
Esta última palavra volta na quarta parte, sobre Crusoé. O eu lírico, em paralelo à "coleção/ de itens indispensáveis" do náufrago, afirma que irá:

anotar todas as vezes
em que a palavra
supérfluo
aparece nos livros 
de Clarice
e fazer um inventário

O supérfluo análogo ao indispensável para a sobrevivência de Crusoé na ilha. Certamente trata-se da literatura, que se está a fazer aqui, depois de Clarice Lispector. No entanto, há mais: Robinson Crusoé espera "seu fiel escudeiro/ Sexta-Feira"; aqui também tivemos uma relação em que Sexta-Feira, o servidor de outra raça e cristianizado, trabalhava para Crusoé, numa relação desigual, mas de outra natureza, num microcosmo colonialista. Sobre a questão étnica, o poema não vai além disso, embora se possa lembrar que era comum que as mulheres negras, no Brasil, tivessem como uma das poucas opções profissionais que lhe eram abertas o trabalho doméstico. Afinal, a época a que se refere ao poema parece ser a anterior ao incêndio na casa da escritora branca, que ocorreu em 14 de setembro de 1966, e posterior à sua volta ao Brasil depois da separação do marido.
O incêndio faz lembrar de outro ponto comum: trata-se de personagens que tiveram a vida determinada pelo naufrágio, pelo acidente, por uma desventura súbita. Como escrevi, isto aproxima o personagem de Daniel Dafoe, a escritora, a mãe e o narrador deste poema. Ademais, todos eles deixaram folhas que sobreviveram ao naufrágio. Creio que a artista Giorgia Massetani acertou profundamente ao escolher a imagem das folhas secas para acompanhar o poema. Elas encarnam o poema e encontram um equivalente, no conto que mencionei de Clarice Lispector, no buquê de rosas que Laura ofereceria para a amiga Carlota, entregues pela empregada Maria. Como se sabe, as rosas, que são relutantemente presenteadas, desencadeiam a transformação da protagonista: "com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro de si as rosas". O marido, ao chegar no fim da história, somente pôde constatar que sua esposa, embora lá, "já partira".
Neste poema, as folhas guardadas e subitamente reencontradas indicam o contrário, que algo se manteve, se conservou. No entanto, o que Rosa, a menina, está lá a fazer? As estrofes que citei do pai ao lado da filha podem parecer sentimentais no mau sentido. Contudo, elas se justificam: a filha parece muito pequena: como a sua avó após o aneurisma, mas por motivos completamente diferentes, ela não parece capaz de falar, e cabe ao narrador falar por e para ela. Essa necessidade de falar passa pela transmissão da memória que, neste caso, passe de uma mão para outra; como escreveu Carlos Drummond de Andrade, vemos aí "a estranha ideia de família/ viajando através da carne."
Trata-se, porém, apenas a família que assim viaja?  Talvez o punho de Lispector transmitisse mais do que aquelas notas a Rita, talvez os supérfluos adquiridos fossem aqueles livros que, mais tarde, o filho leria para a mãe em coma. Em relação a Rosa, o ninar já funciona como uma transmissão da palavra e, aqui, como criação de palavras novas, as deste poema.
No conto de Lispector, lemos que "Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração". Gandolfi não reteve para si as folhas, vivas novamente por serem ditas. "Robinson Crusoé e seus amigos" representa um exemplo notável em que a transmissão da memória familiar, em quatro gerações, cruza-se de forma complexa com a literatura e a história social brasileira. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

"Aparelho excretor não fala. Ninguém do governo confessará nada."

Notas no cu 
do vice-líder do governo; 
são os coliformes que comandam 
ou o Estado confunde-se com a falta de saneamento? 

– De quem são as cédulas? 
– Por que eu deveria saber? 
– Talvez porque estavam dentro de Vossa Excelência?
– Aparelho excretor não fala. Ninguém do governo confessará nada. 

O valioso orifício anal
do vice-líder do governo 
filmado na ida ao toalete;
quem governa o cu comanda o poder. 

– A quem pertencem as cédulas no interior da Excelência? 
– Devem ser do movimento sem-terra, esse pessoal vive invadindo a propriedade alheia. Foram infiltradas.
– As cédulas? Devemos apreendê-las.
– As notas não, o dinheiro higieniza o governo, mas os coliformes fecais. São infiltrados da esquerda.

A gravação no toalete do vice-líder 
guardada num cofre
por decisão judicial;
o Estado não autoriza o vulgo
a gozar com o filme anal do governo.

– Do banheiro aos comitês, nenhum problema. A ética non olet.
– Talvez estas cédulas resolvam o problema do câmbio!
– Para trocar o país pelo exílio?

No cu
notas para enfrentar uma pandemia mundial.
Mas o governo não tem vocação para o suicídio.

O fascismo,
ou a imitação política
dos coliformes.


sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Bernardo Kucinski, em 25/09, nos Encontros Literatura e Ditadura do PPG do Instituto de Letras e Artes-FURG (Desarquivando o Brasil CLXXII)


Dia 25 de agosto de 2020, às 18 horas, ocorrerá mais um debate dos Encontros Literatura e Ditadura que o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), com coordenação da professora Luciana Coronel.
Desta vez, Bernardo Kucinski, que lançou o romance Júlia: Nos campos conflagrados do Senhor pela editora Alameda neste ano, falará. Deverei também participar evento.
Como se sabe, Kucinski, teve importante atuação no período da ditadura na imprensa alternativa, em veículos como Movimento e Em Tempo. Depois de suas obras sobre jornalismo, estreou depois dos 70 anos na literatura com o romance K., que é inspirado no sequestro e desaparecimento forçado em 1974 de sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e do marido dela, Wilson Silva, ambos militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Os dois estão no anexo da Lei 9140 de 1995 na lista de desaparecidos políticos reconhecidos pelo Estado.
O livro foi um grande sucesso no Brasil e no exterior e representou uma forma de intervenção cultural no processo de produção social da justiça de transição no Brasil, especialmente no tocante às reivindicações de memória, verdade e justiça para os desaparecidos políticos.
Kucinski voltou aos temas da ditadura em Você vai voltar pra mim e outros contosOs visitantes, livro em que revisita K. e as diversas reações ao romance. Em Júlia, temos ação em dois planos temporais (marcados graficamente por letras de diferentes fontes): a da personagem-título, nos anos 1990, que busca descobrir sua própria identidade, ao descobrir por acaso que foi adotada, e de 1964 e dos anos subsequentes da ditadura, em que se destaca, de um lado, a ação de militantes da Ação Popular e, de outro, a de uma rede de traficantes de crianças.
Kucinski, quando escreveu a história, desconhecia que filhos de militantes políticos fossem sequestrados no Brasil e dados ou vendidos a outras famílias para criarem. Na Argentina, houve diversos casos desse tipo, e o trabalho de identificação dos sequestrados continua até hoje. O recente livro de Eduardo Reina, Cativeiro sem fim: as Histórias dos Bebês, Crianças e Adolescentes Sequestrados Pela Ditadura Militar no Brasil, que a Alameda publicou em 2019, comprova a prática na ditadura militar brasileira.
O debate poderá ser visto por meio destas ligações:

sábado, 12 de setembro de 2020

"Não se trata de impeachment, / mas desratização dos palácios"



I

Não se trata de impeachment,
mas desratização dos palácios.


II

O país encerrado em cinza.

A onça com as patas em chama,
não sabemos até que ponto caminhará.

Talvez chegue mais longe
do que o país incendiário.


III

Não há nada a ser feito. A fumaça envolve tudo.
Esperar que o fogo se canse
e se encerre sob a terra.

O ecoturismo, ou o forte da região,
os visitantes procuram espécies endêmicas, monstruosas:
os filósofos que sustentam que o impeachment só deve ser usado quando indevido,
os pastores que anunciam o messias no milagre da eleição do peculato,
os jornalistas que anunciam que genocídio, desertificação, corrupção, incêndio, assassinato político,
apologia ao trabalho escravo e doação paga do país aos estrangeiros,
nada disso é motivo para impeachment,
tudo não passa de constitutional hardball
se o governante não é de esquerda.

A cada momento que o vento mudar,
as faíscas ocultas podem voar até você,
o fogo envolvê-lo inteiro
como o capital.


IV

O sacrifício da onça 
das patas queimadas;

antes sacrificar o país do que uma onça,

embora talvez a morte dela
seja o anúncio do fim do país.


V

Não basta impeachment,
mas a explosão de palácios.

Cupins não adiantariam,
o palácio é tanto mais vasto
quanto mais oco.

Os animais tentam passar meio cegos
pelas áreas em brasa;
morrem com as patas queimadas.

A explosão dos palácios
fecharia os braços da fumaça,
abriria os olhos dos animais.


VI

As patas em chama da onça
pisam sobre o país,
incendeiam-no.

Para andar neste país
é necessário imitar o fogo.

O que foi encerrado com a cinza?
O calor? As águas? Não
a fome.


VII

Uma arquitetura inspirada em tocas de ratos.
Uma política plagiadora
não exatamente da arquitetura que copiou as tocas de ratos,
mas da falta de saneamento
e redes de esgoto
das tocas de ratos.

Na garatuja ininteligível
dos planos que previram a falta de esgoto e saneamento
de tocas de ratos
abriga-se todo o governo.

Bombas apenas não serão suficientes
para demolir a falta.


VIII

A onça vive.

Seus dentes têm chamas.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A resistência em face da ameaça: "Senhor Porco / Sua Excelência", de Jorge Roque


Conheci a literatura de Jorge Roque com Senhor Porco, na edição de 2004 com a arte de Guilherme Faria, da saudosa & etc. Anos depois, escrevi também sobre Tresmalhado, que a Averno publicou em 2016. O autor, em razão dos imperativos de naufrágio que ainda regem as publicações de literatura contemporânea portuguesa no Brasil, ainda não teve livro publicado neste país.
Em 2019, a mesma editora lisboeta, Averno, publicou Senhor Porco em versão revista (copiei da editora a imagem da capa de Luís Henriques), acrescida de novo texto, Sua Excelência, que, de fato, compartilham o mesmo espírito: o volume critica estas figuras abrigadas pela metáfora do porco e a sociedade que lhes confere excelência.
Embora não signifiquem a mesma coisa, a metáfora do porco assume papel semelhante àquele que a do filho da puta exerce no famoso livro de Alberto Pimenta. Dito isso, as formas são muito diferentes: no livro de Jorge Roque, privilegia-se o aforismo; em Alberto Pimenta, temos de fato um Discurso com tons ensaísticos, bem como poesia em versos.
No Post scriptum de Senhor Porco / Sua Excelência, que constitui, na verdade, uma parte da obra como elemento textual, e não meramente pós-textual, lemos que "esta edição revista de Senhor Porco é, na medida em que o consegui, o que o texto original queria ter sido e considero-a definitiva."
As mudanças correspondem, em geral, a cortes que tornam o texto mais coeso, a começar do primeiro aforismo, que se tornou menor. Às vezes, é de uma palavra: "O homem abismo e vertigem do absoluto revelado", perdeu "abismo e" na nova edição. A supressão pode ser até de parênteses, mantendo as palavras neles contidas; ou troca estratégica de alguns termos, como "A vitória dos porcos" tornar-se "O triunfo dos porcos". A questão da luta continua posta: "O porco prolifera, as margens para que empurra o homem estreitam-se. Ser homem não é um direito, mas um combate.".
Referências implícitas a Deus da primeira edição foram alteradas para "o homem"; as explícitas, tornaram-se "a transcendência", ou suprimidas, como "O homem um animal de Deus", que não tem lugar nesta nova configuração. 
Há também passagens novas. A atualização do livro inclui crítica às políticas de austeridade e ao discurso que as caracteriza como necessárias:
A suinocracia no seu esplendor: igualitária, participativa, pluralista, com carta até dos direitos fundamentais, desde que a economia os permita (vou ali e já venho, mas façam o favor de se sentar que sou capaz de demorar).

Não há pois alternativa a quanto o porco determina. Quem o diz? O porco, como não podia deixar de ser. 

O caráter acerbo destes aforismos é, em regra, ratificado pelas mudanças, como é o caso de "Quanto mais um porco cospe no meu nome, mais eu coincido com ele", ou de "Encarna a subordinação ao medo: é o que o torna medonho."
No entanto, a descrença na ação coletiva permanece (manteve-se sem mudanças o aforismo "A revolução nunca se fará. A cada homem cabe lutar pela sobrevivência da utopia."). A supressão do último aforismo, que se referia ao "camarada irmão", acentua essa impossibilidade de agir conjunto. Não há aqui um equivalente político àquela passagem impressionante de Canção da vida (Lisboa: Averno, 2012), "Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar".
Sua Excelência, apesar de escrito muitos anos depois, não muda tanto assim de assunto; trata principalmente do porco que (cito Senhor Porco) "É consumidor de eventos culturais. Move-o o conhecimento antecipado do momento de êxtase que sempre virá: o fim dos discursos e o tiro de partida para os pastéis e bolinhos."
Divide-se em três seções: "Os inteligentes" (uma descrição dos porcos que se dedicam a não agir), "Sua Excelência" (uma invectiva contra os críticos que reclamam da violência desta literatura) e "Minha querida literatura", onde o texto chega ao clímax: trata-se de uma irônica missiva em que Jorge Roque expressa uma poética:
Minha querida literatura, perdoa-me repetir o que tão bem sabes, mas nunca é demais recordar: se é verdade que a literatura faz o homem, a condição é que um homem a faça primeiro. E a faça à força de mãos, dedos e unhas, feridas e medos, erros e erros, e sempre a sós, sem empresa nem lucro, nem Deus, nem solução, que guie, que ampare, que estenda, em suma, a sua mão ampla e suave, abençoada por razões superiores e poderes vários, e nesse gesto pleno e prodigioso redima. 
O Post scriptum, reitero, deve ser lido como um elemento textual do livro; não se trata de simples esclarecimento, mas de outro texto literário do autor, que se revê e encontra: "Entre Senhor Porco e Sua Excelência estende-se o caminho que vai de um jovem a um homem quase velho."
Nele, Jorge Roque explica por que rever e republicar Senhor Porco; além da supressão da palavra "Deus", há outro propósito: "se o tempo que passou acentuou as falhas do texto original, também confirmou a advertência que lhe servia de pórtico: a arte do belo tem de dar lugar à arte da resistência, de todos e de cada um dos modos de resistência".
Trata-se da epígrafe, que permaneceu a mesma em 2004 e 2019, o que ressalta sua urgência: "Não se trata aqui do belo, mas da resistência em face da ameaça."

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Desarquivando o Brasil CLXXI: Resistência, substantivo feminino, os indígenas e a questão dos desaparecidos na ditadura

Se tudo der certo, participarei em 21 de agosto de uma apresentação ao vivo do Projeto Resistência, Substantivo Feminino, coordenado por Flávia Celestino.

O projeto produziu uma série de depoimentos e debates centrado em mulheres militantes da época da ditadura militar, com diversos convidados. A primeira delas foi Victória Grabois, em 14 de julho de 2020.

Desta vez, a apresentação terá como tema central não a memória de uma militante específica, mas os desaparecidos e o que foi feito deles no processo social de justiça de transição no Brasil. Três importantes intelectuais falarão: Janaina Teles, Leonilde Servolo de Medeiros e Márcio Seligmann-Silva.

Fui chamado para tratar da pesquisa sobre os povos indígenas. Pretendo relembrar, como fiz em evento semelhante do Centro de Estudos Hannah Arendt, o caráter genocida da direita dura militar, que foi alvo de várias denúncias já na época, como neste livreto clandestino de 1974, assinado pela Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas, que pode ser lido na plataforma virtual da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":

A Comissão Nacional da Verdade e algumas comissões estaduais investigaram as graves violações de direitos humanos desses povos; sobre isso devo tratar.

A questão não deixa de ter diversos reflexos e continuidades no presente, eis que a espoliação das terras indígenas continua, a devastação ambiental acelera-se, as ameaças de setores econômicos como a mineração crescem, tudo isso em época de remilitarização da FUNAI. Os militares voltaram a dirigi-la no governo golpista de Michel Temer e nela permanecem com Bolsonaro, sem jamais terem feito  autocrítica dos crimes cometidos durante a ditadura, muito menos do genocídio.

Ademais, com a pandemia do coronavírus, o atual governo federal tem tomado diversas ações e omissões que foram denunciadas ao Tribunal Penal Internacional como novos crimes de genocídio contra os povos indígenas: https://www.dw.com/pt-br/exterm%C3%ADnio-ind%C3%ADgena-pode-levar-tpi-a-julgar-bolsonaro/a-53860455