Agora, em dezembro de 2020, para manter acesa a chama golpista e misógina de seus admiradores e/ou cúmplices, voltou a atacar Rousseff, o que gerou seu protesto em 28 de dezembro, "Índole de torturador", que destaca a dimensão coletiva da ofensa: "Bolsonaro não insulta apenas a mim, mas a milhares de vítimas da ditadura militar, torturadas e mortas, assim como aos seus parentes, muitos dos quais sequer tiveram o direito de enterrar seus entes queridos."
Insulta e rebaixa o país inteiro, evidentemente. No dia seguinte, 29, vinte e três ex-presas políticas, entre elas Amelinha Teles e Crimeia Schmidt de Almeida, publicaram sua carta de apoio a Dilma Rousseff. Destaco este trecho:
O Estado foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010, pelos crimes de tortura e desaparecimento forçado de militantes políticos que ousaram defender as liberdades políticas e a democracia durante a ditadura militar (1964-1985).Nós mulheres, ex-presas políticas, que nos rebelamos e resistimos contra o autoritarismo da Ditadura Civil Militar que impuseram à sociedade brasileira naquele período, vimos repudiar estes atos e demandar que as instituições democráticas do Estado Brasileiro tomem as providências cabíveis.Não permitiremos que nosso país mergulhe de novo no fascismo e no obscurantismo.Em defesa da democracia, das liberdades políticas e pelo fim da tortura e dos desaparecimentos forçados!
A carta chama a atenção para a condenação em caso movido pelos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, um exemplo de ativismo judicial dos movimentos sociais. Neste ano, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros, sobre a Guerrilha do Araguaia, completou dez anos. No entanto, ela continua largamente descumprida pelo Estado brasileiro, que não investigou nem responsabilizou os agentes dos atos da repressão, tampouco encontrou os restos mortais dos desaparecidos, com pouquíssimas exceções.
As militantes também chamam atenção para a continuidade dos crimes de tortura e desaparecimento forçado. Trata-se de um dado crucial, pois eles continuam a ser praticados por agentes do Estado ou por seus colaboradores e parceiros (como as milícias urbanas ou rurais que compartilham a "gestão" de territórios no país), e parecem necessários para a manutenção de uma sociedade tão desigual quanto a brasileira.
Creio que algumas das razões para a invocação persistente, em chave negacionista, da ditadura militar pelos poderes instituídos decorrem dessa necessidade operacional da gestão policial do Estado, e da exigência ideológica do culto à morte ou ao extermínio. Falei disso em agosto deste ano com apoio em Hannah Arendt em uma "live" que o Centro de Estudos Hannah Arendt da USP apagou.
Esse negacionismo apoia-se, como se viu na época da ditadura militar, em uma visão conspiracional, paranoica da realidade, que alimenta ideologicamente a extrema-direita. Citei naquele momento Leônidas Xausa por intermédio do livro Universidade e repressão: os expurgos na UFRGS, que a L&PM e a ADUFRGS lançaram em 1979:
A segunda edição pode ser lida aqui: https://andesufrgs.files.wordpress.com/2014/03/universidade_e_repressao.pdf
A farsa da extrema-direita de hoje acentua-se no fato de buscar os mesmos bodes expiatórios daquela dos anos 1950 e 1960, os comunistas, hoje, como antes, amalgamados a outros grupos indesejáveis de natureza diversa, como feministas, negros, ecologistas, indígenas, LGBT etc. O impulso de negação da realidade fundamental para este processo, neste ano de 2020, chegou aos requintes de produção milionária e estocagem de remédios não eficazes pelas Forças Armadas para uma pandemia que, alegadamente, não existe ("gripezinha") e que, embora inexistente, teria sido criada por um país oriental para a dominação mundial pelos... comunistas.
Em mais de uma vez, inclusive em dezembro, Bolsonaro homenageou ou mencionou Ustra, judicialmente declarado torturador. Como se sabe, ele morreu em 2015, antes de ver um fã tornar-se presidente da república. Em maio de 2020, o chefe de governo reuniu-se e elogiou outro agente de graves violações de direitos humanos da ditadura militar, Sebastião Curió. Criminoso confesso, confirmou à imprensa em 2009 a execução extrajudicial de 41 pessoas durante a Guerrilha do Araguaia, época em que era major. Depois, ele fez carreira com a exploração de Serra Pelada e do trabalho dos garimpeiros, com a correspondente devastação ambiental. Em coluna publicada em 2020, "Fogo no Pantanal e na Amazônia mostram a verdadeira política econômica de Bolsonaro", Celso Rocha de Barros bem viu na devastação uma das convergências entre Curió e Bolsonaro.
O Ministério Público Federal tentou processá-lo em 2012, mas a ação não foi acolhida por causa da interpretação que o Supremo Tribunal Federal impôs à Lei de Anistia. Destaco dois trechos:
A violência foi infligida não só aos guerrilheiros, mas à população local, inclusive os povos indígenas. Como as operações violaram até mesmo o próprio direito da ditadura (para não falar das normas internacionais sobre combatentes, também descumpridas), o efeito da impunidade somente seria atingido com a extensão inconstitucional da anistia aos agentes graves violações de direitos humanos.
Essa extensão indevida foi realizada pelo Judiciário brasileiro em 2010, em julgamento cujos recursos dormem atualmente nas gavetas do Ministro Luiz Fux. A Constituição de 1988, no Ato da Disposições Constitucionais Transitórias, havia expressamente limitado a anistia às vítimas da ditadura.
Como virou moda, ao menos desde aquela ocasião, ignorar o texto constitucional para decidir (a Lava-[a-]Jato confirmaria esse método), cito-o aqui:
Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
A falta de responsabilização de Curió e outros, pois, repousa na negação judicial da Constituição da transição democrática, bem como do Direito Internacional dos Direitos Humanos. No entanto, como a imprescritibilidade da responsabilidade do Estado nesses casos foi reconhecida até mesmo pelo Judiciário brasileiro (Recurso Especial nº 1.815.870 - RJ), por causa desses agentes da repressão, o Estado é obrigado a pagar indenizações.
O PSOL informou a Corte Interamericana de Direitos Humanos do elogio ao Curió, tendo em vista que ele implica violação da sentença do caso Gomes Lund. Na Justiça Federal, foi proposto ao menos um processo. Alguns jornais ignoraram o nome das propositoras da ação: Laura Petit da Silva, Tatiana Merlino, Angela Mendes de Almeida, Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha), Criméia Schmidt de Almeida e Suzana Lisboa (algumas delas, signatárias da carta de apoio a Dilma Rousseff). O pedido foi acolhido em dezembro de 2020.
Causando surpresa em ninguém, a Advocacia-Geral da União resolveu recorrer, afirmando que há "intepretações divergentes" sobre os fatos históricos. Sim, sempre há, mas nenhuma legítima. O Estado brasileiro foi condenado pelo seu próprio Judiciário e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por causa dos crimes que cometeu no Araguaia. É improvável a boa-fé do condenado que faz o elogio público de seus próprios malfeitos, nunca cumpriu a sentença nacional nem a internacional e já produziu, em tempos muito melhores, um documento oficial, com provas, de que Curió foi um dos agentes de graves violações de direitos humanos. Trata-se do relatório da Comissão Nacional da Verdade.
A Advocacia-Geral da União tem assumido o papel histórico de defender os crimes do Estado brasileiro. Dessa forma, em 2003, no governo Lula, apelou contra a sentença que condenou para não ter que entregar as informações das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia. O acórdão da Corte Interamericana destacou esse fato:
206. Igualmente, na mesma sentença, a Juíza ressaltou que não cabe negar a importância histórica dos fatos do caso e que “tempos como aqueles, de […] violação sistemática de direitos fundamentais, não devem ser esquecidos ou ignorados”.314 Indicou que “a informação prestada pela [União] é o que permitirá o acesso dos [a]utores aos restos mortais de seus familiares” e que, “se o aparato estatal agir de maneira que violações de direitos humanos fiquem impunes e não se restabeleça a vítima (na medida do possível) na plenitude de seus direitos, o Estado viola suas obrigações convencionais no plano internacional”.315 Ressaltou que os fatos citados na Ação Ordinária constituem “gravíssimas violações de direitos humanos” e, aplicando jurisprudência deste Tribunal, determinou que a verdade sobre o ocorrido deveria ser relatada aos familiares de maneira pormenorizada, já que era seu direito saber o que realmente ocorreu.316 Como consequência do anterior, a Juíza Federal de Primeira Instância solicitou à União que suspendesse o sigilo e entregasse todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas com a Guerrilha.317207. Em 27 de agosto de 2003, o Estado Federal, por meio da Advocacia-Geral da União, interpôs uma apelação contra a referida decisão, na qual, inter alia, questionou o levantamento do sigilo dessas informações e reiterou que o pedido dos autores estava sendo atendido mediante a Lei nº 9.140/1995.318 Informou também que a Comissão Especial, no marco de aplicação da referida lei, “requisitou e recolheu documentos e informações provenientes das Forças Armadas e de outros órgãos públicos, além de ter realizado missões na Região do Araguaia para levantamento de informações e busca de restos mortais das pessoas desaparecidas”.319
Registre-se que a brilhante magistrada que falou dos fatos que não devem ser esquecidos ou ignorados chama-se Solange Salgado. Em 2009 o recurso protelatório do Estado brasileiro foi negado. No ano seguinte, viria a condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A defesa dos crimes de lesa-humanidade e o descumprimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como da Constituição da transição democrática, elegeram em 2018 governos feitos a sua imagem e semelhança, com seus reiterados elogios ao crime e ao massacre.
O massacre, por sua vez, torna-se dimensão institucional da resposta à pandemia, que não termina em 2020. Essa resposta gerou denúncias ao Tribunal Penal Internacional.
A propósito, a Procuradoria do TPI aceitou em dezembro de 2020 investigar o governo brasileiro por incitação ao genocídio contra os povos indígenas. Veremos se essa denúncia seguirá o mesmo caminho da que os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos ofereceram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
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