O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Desarquivando o Brasil LXX: Ana Rosa Kucinski de volta à USP


Em 29 de outubro de 2013, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" fez uma audiência pública sobre o caso de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química e membro da ALN que foi sequestrada e morta durante a ditadura militar.
O espaço em que ocorreram os trabalhos, apelidado de "Queijinho", foi posto à disposição pelo Centro Acadêmico de Química. O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão, abriu os trabalhos às 17 horas. Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, compôs a mesa e elogiou a iniciativa. O deputado anunciou a presença de outra conselheira da CNV no recinto, Maria Rita Kehl, e de Vera Paiva, filha de Rubens Paiva.
Foram lidos trechos do Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos sobre os casos da professora, de seu marido e membro da ALN, Wilson Silva, e do estudante Issami Nakamura Okano, que foi aluno da faculdade de Química, também militou na ALN e foi sequestrado em 1974 e se tornou um desaparecido político.

Em seguida, foi transmitido um vídeo produzido pela Comissão, em que Fernanda Azevedo interpretou (muito bem) Kucinski. Adriano Diogo pediu que os professores Fábio Konder Comparato e Maria Vitória Benevides compusessem a mesa.
Bernardo Kucinski, irmão da professora desaparecida (na primeira foto, o segundo à esquerda; o primeiro é Comparato; depois de Kucinski, estão Diogo, Cardoso e Benevides), começou dizendo que estava "exausto" de todos esses anos de busca de informações. Contou que, ao lançar K na Alemanha, viu naquele país, ao lidar com o passado nazista, "um contraste absoluto com a forma como nós estamos lidando com a nossa história", pois, no Brasil, ainda há quem justifique a ditadura, afirmando que "o outro lado" fazia a "mesma coisa".

Colegas de Ana Rosa Kucinski no Instituto, hoje aposentados, deram seus testemunhos. Em comum, rememoraram a sensibilidade artística e social da professora, afirmaram que desconheciam sua afiliação à ALN, e que desconheciam se ela havia sido presa ou se tinha fugido. Neste caso, denunciar sua ausência teria atrapalhado os planos. Na foto, de pé, vê-se o professor Sérgio Massaro contar algumas das passagens que foram incluídas neste depoimento: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2012/08/perfil-ana-rosa-kucinski/

O assessor da Comissão Estadual Renan Quinalha, a falar na foto ao lado, explicou como a atual administração da USP vem se negando a reconhecer o erro da universidade no caso de Kucinski. Quinalha ratificou o que Bernardo Kucinski já havia denunciado em carta para Adriano Diogo: "não iniciou bem o Magnífico Reitor sua participação no esforço nacional de busca da verdade. Anoto também que o longo parecer da Assessoria Jurídica da Universidade, emitido em julho de 95 em resposta ao meu pedido de anulação da demissão (Processo 74.1.17459.1.7), embora recomendasse ao Magnífico Reitor a aceitação do meu pedido, camufla e absolve por trás de uma obscura linguagem jurídica o nefasto papel de coadjuvantes de um crime, desempenhado pela instituição USP nesse episódio, em especial por essa mesma Assessoria Jurídica à época. Não há uma palavra de autocrítica.". A carta pode ser lida nesta ligação: http://ronaldmansur.blogspot.com.br/2013/06/irmao-de-professora-da-usp-desaparecida.html

O professor Comparato discursou de pé, como é de seu feitio, e criticou as classes dominantes: "o sistema jurídico encobre todos os horrores que se passam por trás". Com o fim do "regime empresarial-militar", "a classe política gozou a anistia" pois "queria voltar ao negócio de sempre". Acusou todos os governos civis após a ditadura: "todos os governos deram mão forte aos militares criminosos e viveram de mãos dadas aos grandes empresários". Criticou as recentes afirmações de Lula, sem mencionar seu nome (vê-se que a desilusão ainda é grande), sobre a Constituição. Lembrando da ação do Conselho Federal da OAB contra a lei de anistia (que ele patrocinou) e, em contraste, da decisão contra o Brasil da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), falou de sua proposta, que será apreciada no Conselho Federal da OAB em 26 de novembro, de apresentar nova arguição de descumprimento de preceito fundamental ao Supremo Tribunal Federal. Desta vez, se atacaria o fato de o Estado brasileiro (por meio de seus três Poderes) ter descumprido a sentença internacional. Toda sua fala durou meros oito minutos, porém foi o discurso mais marcante; ao fim, ainda pediu para que as famílias dos mortos e desaparecidos compareçam à distribuição da ação, caso ela seja aprovada pela OAB, e expressou sua "quase veneração" pelos jovens que fizeram escrachos nas residências de torturadores. Trata-se do Levante Popular da Juventude: http://levante.org.br/tag/escrachos/

Lembremos que Comparato foi insultado com a  professora Maria Victoria Benevides pelo jornal Folha de S.Paulo no episódio do editorial "ditabranda".  Ela foi a próxima a falar e afirmou que era "absolutamente intolerável" (qualificação que ratificou mais de uma vez para tratar da atitude da USP no caso) que "até hoje persista a marca da covardia e da indignidade da Congregação do Instituto de Química". Sérgio Massaro havia contado que membros do Instituto teriam ficado "com mágoa" do que Bernardo Kucinski teria inferido e escrito em K. Maria Victoria Benevides não poupou o Instituto e denunciou também a Comissão de Ética, que não teria avançado "um milímetro", e a Comissão da Verdade da USP, presidida por Dalmo Dallari, porque dos trabalhos desse órgão (que ainda não possui regimento) nada se sabia. O assunto deveria entrar em sala de aula "em qualquer área do ensino", seguindo o exemplo de Kucinski, que soube comemorar o Primeiro de Maio, no Instituto de Química, com imagens artísticas do cotidiano do trabalho.
Adriano Diogo, ao fechar os trabalhos, pouco antes das 19 horas, lamentou que, dos três eixos da justiça de transição, verdade, memória e justiça, somente o segundo estivesse sendo realizado, de forma que se deveria rebatizar a Comissão como de Memória, simplesmente. Lembrando do ato que será realizado no Cemitério do Araçá em 2 de novembro em homenagem aos mortos e desaparecidos, acusou o governo de falta de autoridade para determinar a abertura dos arquivos dos "ministérios militares".

No evento, destacava-se a ausência da chamada Comissão da Verdade da USP, que não participou da organização, tampouco da mesa, da Reitoria da instituição, e da direção do Instituto de Química. Logo após o evento, conversei com Renan Quinalha, que me explicou que o espaço onde havia ocorrido a audiência fora obtido por meio do Centro Acadêmico de Química.

Uma aluna que pertencia ao C.A. explicou que o diretor do Instituto havia aparecido no queijinho, mas havia deixado o local cinco minutos antes de os trabalhos começarem.
Essa diminuta ou nula disposição oficial para os trabalhos da justiça de transição e do direito à memória fez-me lembrar do estado do monumento em homenagem aos membros da USP que foram vítimas da ditadura militar. Escrevi em outra nota que "no fim de 2012, a USP fez uma homenagem envergonhada a seus mortos pela repressão, o Monumento em Homenagem à Vítimas da Repressão Política Promovida pela Ditadura Militar (1964-1985), concluído durante as férias, sem inauguração ou discurso".
Lembremos que, originalmente, o monumento referia-se à "revolução de 1964", o que só não ocorreu devido à denúncia da iniciativa negacionista (do caráter ditatorial) da reitoria; a solução, "regime", é neutra e não traduz o autoritarismo do período.

A homenagem envergonhada, no momento quase oculta pela enorme tenda que foi construída perto do anfiteatro, foi pichada, e nela acumularam-se lixo e entulho. Tirei as fotos ao lado em 18 de setembro - e o monumento ainda não completou um ano.
O nome de Ana Rosa Kucinski é um dos primeiros a aparecer na homenagem-quase-ruína. A sua história continua a exemplificar o monumental descaso da Universidade com a justiça de transição.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Desarquivando o Brasil LXIX: Justiça de transição em movimento: o caso de Ana Rosa Kucinski; a 76ª Caravana da Anistia



Hoje, 29 de outubro, em um evento da Comissão da Verdade de São Paulo do Estado de São Paulo, será realizada uma audiência pública sobre o caso de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química da USP e militante da ALN que foi demitida pela universidade por "abandono" do cargo, embora tivesse sido sequestrada pela repressão em 1974. Ela continua desaparecida desde então, assim como o seu marido Wilson Silva (também da ALN).
Já mencionei o caso duas vezes neste blogue: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxii-os.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desarquivando-o-brasil-xxiii-wilson.htmlhttp://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desarquivando-o-brasil-xxiii-wilson.html.
Na segunda nota, lembrei das estratégias de negação da existência de desaparecidos políticos no Brasil. A USP colaborou com a farsa oficial, na época, demitindo Kucinski quando ela já estava morta.
É altamente significativo que essa universidade tenha se recusado a reparar simbolicamente a família de Ana Rosa Kucinski e, ainda neste ano, tenha deixado de colaborar com a investigação do caso e com as audiências, em junho e julho, marcadas pela Comissão Estadual da Verdade. A alegação de que seria "prematuro e inoportuno" o comparecimento de representante da USP à audiência de junho de 2013 mostra como, quase quarenta anos depois dos fatos, a verdade continua a incomodar essa instituição: http://www.adusp.org.br/index.php/comissao-da-verdade/1699-a-usp-continua-a-nos-indignar-no-caso-ana-rosa-kucinski

Em 24 de outubro de 2013, não assisti ao seminário "A Anistia e seus sentidos na justiça de transição brasileira", com lançamento do número comemorativo dos quatro anos da Revista Anistia Política (ele pode ser baixado nesta ligação: http://www5.usp.br/35335/comissao-de-anistia-lanca-revista-na-faculdade-de-direito/), que ocorreu de manhã na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Acompanhei, porém, o evento da tarde, os julgamentos da 76ª Caravana da Anistia.

Foram decididos os casos de Maria José Malheiros (nome que Maria Neide Araújo Moraes adotou para escapar de novas investidas da repressão - e que ela manteve até hoje), Aton Fon Filho (na foto, a fazer uso da palavra; ao fundo, os conselheiros da Comissão de Anistia, com Paulo Abrão, o presidente, no meio da mesa) e Oldack Miranda.
O deputado federal Nilmário Miranda, irmão de Oldack, julgou-se impedido e não votou nesse caso, e Ney Strozake fez o mesmo em relação ao sócio e amigo Aton Fon Filho. Todos tiveram seu pedido deferido. Sobre a história dos três anistiados, sugiro ler a matéria de Bia Willcox, "Ministério da justiça julga 'última clandestina da ditadura no Brasil'".
Malheiros e Miranda pertenciam à Ação Popular Marxista-Leninista (APML); no dia seguinte, no Tuca, foram julgados os casos de mais 23 integrantes dessa antiga organização. Aton Fon Filho foi um dos criadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). No público, estava o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", o deputado estadual Adriano Diogo.
A Comissão da Anistia tem realizado um grande trabalho no tocante à justiça de transição e ao direito à memória; a realização desses julgamentos itinerantes (em escolas, memoriais, acampamentos) tem um efeito pedagógico e político que ela não poderia produzir se funcionasse apenas em Brasília. O fato de este julgamento ter ocorrido em uma instituição que teve tantos membros engajados em favor da ditadura parece-me duplicar esse efeito.
As forças contra a justiça de transição, presentes também no meio universitário, continuam atuantes para preservar sua versão da história e manter seu legado autoritário. A esse respeito, o vice-presidente da Comissão de Anistia, o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho (que já tive o prazer de entrevistar), ao votar no caso de Maria José Malheiros, lembrou das pessoas que ainda hoje "precisam ocultar-se por trás das máscaras" e do fato de que os "os próprios agentes de segurança não se identificam muitas vezes", aludindo aos protestos populares deste ano: "ainda não conseguimos sair dessa clandestinidade política".
Por esse motivo, tais movimentos pela justiça de transição, ao revisitar esse passado, ainda tão presente e incômodo, também são iniciativas para efetivar, hoje, a democracia no Brasil.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Audiência pública sobre as ilegalidades no ensino superior privado em São Paulo


Amanhã, dia 23 de outubro de 2013, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, das 14 às 18 horas, haverá audiência pública sobre a "Regulação das Instituições de Ensino Superior Privado e iniciativas para impedir o desrespeito aos direitos trabalhistas dos professores e ao direito dos alunos à educação de qualidade".
No Rio de Janeiro, foi realizada uma CPI da ALERJ sobre o mesmo assunto, que sugeriu o indiciamento de seis pessoas, entre eles executivos da Kroton Educacional, Candido Mendes e o controlador do Grupo Galileo, responsável pelas Universidades Gama Filho e Santa Úrsula. Além do desrespeito aos direitos trabalhistas, há a sonegação do INSS, do FGTS e do imposto sindical, bem como a realização de convênios sem licitação. Vejam a notícia: http://portal.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=5992
Em São Paulo, é provável que o quadro seja parecido e, como sempre, com patrocínio do governo federal para incrementar o mercado privado: http://ri.sereducacional.com/sereducacional/web/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&tipo=47925. A mercantilização do ensino tem levado a sua degradação, que se dá, por exemplo, com o extermínio de doutores no Estado: http://www.adur-rj.org.br/5com/pop_2013/demissao.htm





segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O poeta não bebia

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O poeta não bebia,
isso não seria digno;
seus versos são de família,
era metáfora o vinho.

O poeta não foi sórdido,
rimas não nascem da lama,
mas dos ternos de negócio
que os versos vestem na cama.

Ordem! Progresso! Bandeira!
O amor não está inscrito,
foi banido na fronteira
com os outros clandestinos.

No poema a vida privada
quis entrar sem passaporte,
irão de novo interná-la
porque bebeu outra dose.

O poeta, sempre casto,
assim os herdeiros dizem;
mais ninguém pode estudá-lo,
até voltou a ser virgem.

O poeta não mordia,
com ele, nada de lutas,
sua boca era só língua,
e ele lambia a censura.

Que ninguém diga o contrário,
herdeiros vivem da imagem;
se os versos não pagam ágio,
que então eles se apaguem.

Com a morte do poeta,
estrelas cadentes brilham
e deixam a noite cega
e fazem, da luz, ruína.

A morte ofende os herdeiros,
disso não se fala mais,
faleceu só para o efeito
dos direitos autorais.

Não entendem que a falência
é seu legado, afinal.
A biografia que deixa
nasce do ponto final,

fala do primeiro fôlego
com que inaugurou o mundo
e segue no passo trôpego
que o fez cair tão fundo

para descobrir no abjeto
o que sua voz moveria:
na asfixia, disse o verso;
no acidente, a própria vida.

(biografia do acidente
registro livre da queda
voz que canta com os dentes)

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Memória como reserva de mercado VI: a inconstitucionalidade do projeto da ANPUH

I

O projeto que cria uma reserva de mercado para os detentores de diploma em História (de graduação ou de pós-graduação), em lamentável iniciativa da Associação Nacional de História (ANPUH), recebeu em 7 de agosto de 2013 aprovação pelo Senado Federal, e hoje tramita na Câmara dos Deputados. No contexto da lógica corporativista que domina o sistema político nacional, esse projeto é mais um dos exemplos teratológicos de reserva de mercado, seja para filósofos, manicures, DJ, astrólogos etc.: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html
Já escrevi como o projeto criaria uma barreira contra outras profissões para a pesquisa: sua abrangência impediria, por exemplo, que juristas pudessem escrever e ensinar sobre história do direito, físicos sobre a história da física etc. Escrevi, em outra ocasião, que "Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.
E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte.html
É exatamente isso o que se pretende, e o historiador da ciência Roberto de Andrade Martins logrou verificá-lo: a Revista Paraibana de História, mantida pela seção daquele Estado da ANPUH, resolveu impedir a publicação, em suas páginas, de artigos de quem não possua o diploma em história. Martins descobriu que a revista tinha decidido aplicar o projeto de reserva de mercado antes mesmo de ele ser aprovado: http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/08/somente-diplomados-em-historia-poderao.html?spref=fb
Dezenas de manifestações, do exterior e do Brasil, levantaram-se contra o projeto, e podem ser lidas no blogue de Roberto Martins: http://profissao-historiador.blogspot.com.br. Entre os opositores, está a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/07/assembleia-geral-da-65a-reuniao-anual.html). Ainda não vi nenhuma declaração do Instituto Brasileiro de História do Direito, no entanto.
Na sede da SBPC, em setembro deste ano, ocorreu uma reunião para tratar de possíveis mudanças no projeto: http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/09/reuniao-realizada-no-dia-0309-para.html. A Sociedade Brasileira de História para Ciência chegou a um arranjo com a ANPUH, incluindo-se na reserva de mercado, isto é, reforçando o obscurantismo. A SBPC, com razão, rejeitou as mudanças. No blogue de Roberto Martins, pode-se ler sobre esses acontecimentos: http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/09/sociedade-brasileira-para-o-progresso.html
Ele mesmo critica o projeto como "uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica" (http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/10/critica-de-roberto-de-andrade-martins.html), problemas que a alternativa de projeto que ele mesmo elaborou não apresenta:  http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/09/sugestao-de-emenda-substitutiva-ao.html.
Já apontei o descuidado e sumaríssimo trabalho da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal no ligeiro parecer sobre o projeto de reserva de mercado: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/03/memoria-como-reserva-de-mercado-parte.html. Nesta breve nota, lembrarei dos parâmetros constitucionais sobre a liberdade profissional reafirmados em algumas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Ela está prevista, ressalte-se, entre os direitos e garantias fundamentais - não se trata de algo que deva ficar ao arbítrio de meros interesses corporativos, trata-se de uma previsão necessária para a cidadania.

II

O inciso XIII do artigo 5º da Constituição da República dispõe que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Uma vez que a regra geral é a liberdade, as exceções devem ser previstas de forma restritiva, para que não haja fraude a esse direito fundamental. Essa restrição, afirma o Supremo Tribunal Federal, justifica-se desde que haja risco à sociedade no exercício da profissão por pessoas sem a habilitação necessária. O legislador não é livre na regulamentação das profissões: só poderá criar restrições ao exercício se elas se justificarem pelo interesse público.
No recurso extraordinário nº 511.961-SP, julgado em 17 de junho de 2009 (sobre que já escrevi: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html), o STF decidiu que era inconstitucional a exigência de diploma em jornalismo para os profissionais da imprensa. A liberdade profissional não era o único direito fundamental ferido, mas também a liberdade de expressão e de comunicação (artigo 5º, IV, IX e XIV) e de imprensa, especificamente no artigo 220, caput e § 1º. No quarto parágrafo da ementa do acórdão, a Corte deixou claras as limitações que pesam sobre o Poder Legislativo:

A Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5o, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na formulação do art. 5o, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões.

Essas limitações são impostas pela Constituição da República e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos; não é comum que o STF se preocupe com o controle de convencionalidade, mas aqui, ao contrário do que fez no caso da Lei de Anistia, ele cuidou dos deveres internacionais do Estado Brasileiro. Transcrevo parte do oitavo parágrafo da ementa:
A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência de diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 25 de fevereiro de 2009).

A Corte Interamericana também pertence ao sistema de proteção dos direitos humanos da OEA, e não apenas a Comissão. Esse julgamento teve apenas um voto vencido, do Ministro Marco Aurélio.
Outro caso recente de grande repercussão foi o julgamento do recurso extraordinário nº 603.583-RS, em 26 de outubro de 2011. O Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, considerou constitucional o exame da OAB, justamente por identificar interesse público na preservação da sociedade contra o risco que profissionais inabilitados causariam. O ministro relator, Marco Aurélio, lembrou que
[...] a liberdade de profissão não se resume à esfera particular. Certas profissões, como as de médico, engenheiro, arquiteto, se exercidas por pessoas despidas das qualificações técnicas necessárias, podem resultarem graves danos à coletividade. Foi essa lógica que conduziu à imposição de pena privativa de liberdade para o exercício ilegal de profissão, conforme o artigo 47 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.
O Ministro ainda recordou dos índices que apontam um nível baixo do ensino superior em Direito no país. Sobre o assunto, para meus alunos de primeiro semestre, em geral lembro de antiga matéria da Carta Capital, "A miséria usa beca", em que um dos entrevistados, bacharel em direito que nunca foi aprovado no exame, afirmou que era analfabeto quando se formou: http://www.observatoriouniversitario.org.br/diversos/universidade_a_miseria_usa_beca.pdf
Afinal, é possível ingressar analfabeto no ensino superior, ao menos em universidades privadas (http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u7470.shtml); já ocorreu, nesse tipo de instituição, até mesmo a defesa do analfabetismo contra os estudos de pós-graduação: http://www.etudoteatro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=86
Pouco antes desse importante acórdão, o STF julgou, em 1º de agosto de 2011, o recurso extraordinário nº 414.426-SC. Trata-se de outro caso histórico, relatado pela ministra Ellen Gracie, em que se decidiu, também de forma unânime, que não era constitucional exigir a inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil para o exercício profissional dessa atividade artística. Além da ausência de perigo para a sociedade, a liberdade de expressão, prevista no inciso IX do artigo 5º da Constituição da República, era violada com aquela exigência que cerceava a manifestação artística.

III

O projeto de reserva de mercado para os portadores de diploma em história atenderia às exigências de razoabilidade e de proporcionalidade impostas ao legislador? Uma vez que a liberdade de profissão apenas pode sofrer exceções em razão do interesse público de evitar riscos advindos da falta de qualificação dos profissionais, parece-me que o projeto surtiria o efeito oposto ao pretendido: ele diminuiria o nível da formação profissional e se revelaria uma grande ameaça à educação no Brasil.
A conjugação dos artigos 4º e 5º do projeto faria, com que, se aprovado, uma série indefinida de atividades se tornasse monopólio dos historiadores com diploma em história (ver aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte-i.html). Uma série indefinida, pois a expressão "temas históricos" pode abranger qualquer fato social. Vê-se que o projeto pretende fazer com que tais profissionais desalojem outros no magistério, nos museus e até nas tevês, provavelmente pensando em auferir alguns royalties do sucesso de telenovelas como Escrava Isaura... Note-se como se multiplicariam os conflitos jurídicos com arqueólogos, museólogos e outros profissionais que teriam que se abster dos "temas históricos" em suas atividades, o que é praticamente impossível.
No campo da educação, o monopólio pretendido imporia intelectuais com formação totalmente inadequada, os historiadores com diploma em história, em campos inusitados. Estranhos à tabela periódica, tentariam explicar os períodos da história da química; a ignorantes em teoria da harmonia caberia ensinar história da música; a estrangeiros às categorias jurídicas atribuir-se-ia o monopólio dos diferentes campos da história do direito; gente incapaz de diferenciar entre um Giotto e um Tiziano se apossaria da história da arte etc.
Se aprovado o projeto, seria deveras histórica a contribuição da ANPUH para o declínio do ensino superior brasileiro. Embora tal declínio venha atender os interesses corporativos dos historiadores que tal associação representa, não se pode honestamente defender que ele corresponda ao interesse público, tampouco aos critérios constitucionais.
Tal é o ângulo, utilitário, do prejuízo à sociedade que o projeto geraria. Há outro, também presente na Constituição, que é o prisma da liberdade. As liberdades de expressão e de informação são violadas pelo projeto; nos casos que mencionei do Supremo Tribunal Federal, elas estavam sempre em jogo. Com este projeto, seria afetada também a liberdade de cátedra, prevista no artigo 205, II ("liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber").
Retomo o que escrevi na primeira parte desta nota. A ANPUH, no caso da Revista Paraibana, já demonstrou o que pretende: calar os outros profissionais em tudo que seja "tema histórico". Nesse projeto inaudito de censura, um historiador como o recém-falecido Gorender teria que trabalhar no exterior.

No campo das humanidades, a regra é que uma reflexão mais profunda sobre os objetos de saber adote uma perspectiva histórica, sem o que não se pode compreendê-los efetivamente. Por que as outras áreas das humanidades teriam que se curvar aos historiadores e renunciar a essa dimensão dos fatos sociais?
A ética desse projeto é a da apropriação privada do que é comum que, epistemologicamente, só poderia mesmo levar a uma negação da interdisciplinaridade. Um dos pontos risíveis é que a legislação pretendida violaria o que o próprio estatuto da ANPUH afirma defender (a livre pesquisa em história); ademais, o presidente de tal associação, em um exemplo engraçadíssimo de contradição performativa, gosta de citar Foucault, que não poderia ter elaborado a tese da História da loucura se estivesse sob a égide de uma norma obscurantista semelhante: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/memoria-como-reserva-de-mercado-v.html
Epistemologicamente, o projeto não faz sentido. Profissionais de diversas áreas e formações fazem história, e não apenas os formados nesta área, e isso, que denota a importância fundamental da disciplina, parece não ser bem entendido por aqueles que não fizeram outra coisa senão a estudar.
O projeto tem inconstitucionalidades gritantes, é epistemologicamente contrário às próprias características do saber histórico, que não se presta a monopólios corporativos; e, politicamente, revela-se profundamente antidemocrático: por ferir liberdades fundamentais e por converter essa importante atividade de construção do comum e da identidade social, a história, em monopólio de certo grupo de profissionais, que aparentemente deseja se dedicar ao oficialismo historiográfico com o amparo da legislação.





sábado, 12 de outubro de 2013

Algo como um poema: quadrinhas de aniversário

Quadrinhas de aniversário, respectivamente ontem e hoje, de André Vallias (http://www.andrevallias.com) e Alexandre Nodari (http://www.culturaebarbarie.org/blog/).



Foram os ruralistas em safári
atrás de Vallias e de Nodari;
no entanto, foram de melhor valia
os dentes de Nodari e de Vallias.

Sua mordida escreve, os dentes agem,
a fome encarna-se numa linguagem,
enquanto seus escritos mordem
desejos e políticas da ordem.

Com medo, os ruralistas em tumulto
logo fugiram mordidos e mudos,
vendo que o apetite impuro da tribo
é quem escreve os silêncios do livro.






quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A Mobilização Nacional Indígena em São Paulo e os 25 anos da Constituição de 1988


Ontem, dia 2 de outubro de 2013, ocorreu, em São Paulo, um dos atos da Mobilização Nacional Indígena. Ela coincide com os 25 anos da Constituição de 1988. Organizada com o Movimento Passe Livre, os manifestantes partiram do vão do MASP; incorporei-me à multidão já na avenida Paulista; dobramos na Brigadeiro, que foi percorrida até chegarmos ao Monumento às Bandeiras, que foi ocupado por algum tempo, coberto por alguns cartazes e respingado de tinta vermelha.
convocação da Mobilização Nacional foi realizada pelo Cacique Raoni; em vídeo, o líder pediu apoio aos brancos e falou do documento escrito para a presidenta Dilma Rousseff. Nele, escreve-se sobre a investida de congressistas e do governo federal contra parte da Constituição da República: "Os nossos direitos são garantidos pela Constituição. Agora, a bancada ruralista, com o apoio do governo, quer mudar a Constituição e as leis para invadir estas terras. Há 25 anos lutamos fortemente para construir uma Constituição que respeitasse e valorizasse a diversidade e a pluralidade da sociedade brasileira".
Encontrei, na manifestação, escritores e amigos como Veronica Stigger, Eduardo Sterzi e Luiz Roberto Guedes. A professora Iumna Maria Simon, da FFLCH/USP, também participou. Maria Rita Kehl, a conselheira da Comissão Nacional da Verdade que está coordenando as pesquisas sobre as violações dos direitos dos índios, passou pela marcha. Ela chegou a perguntar se tinha havido algum problema com a polícia, mas nada vi.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, na Folha de S.Paulo, em 3 de outubro, denunciou a investida dos ruralistas no Congresso para "tornar legais todas as transgressões da lei que já eram praticadas"; isso foi feito com o Código Florestal, e agora desejam fazê-lo com os direitos constitucionais dos índios para legalizar o esbulho das terras indígenas, comprometendo o futuro do Brasil - pois o que se planeja é nada menos do que a devastação, lucrativa apenas para alguns e por algum tempo. O mesmo problema está por trás do milionário projeto de Código da mineração, que recentemente foi assunto de importante matéria da Agência Pública, "Teia de interesses liga políticos a mineradoras em debate sobre novo código".
Como disse Eduardo Viveiros de Castro, a indianidade é um projeto do futuro, não uma memória do passado: http://www.redalyc.org/pdf/934/93421623002.pdf O desenvolvimentismo mira para trás, não para frente.
Tínhamos, então, neste evento da Mobilização Nacional Indígena, um ato pelo futuro do país e pela Constituição de 1988, cuja eficácia vem sendo solapada por setores conservadores, que desejam apagar as promessas do novo inscritas naquele texto há um quarto de século.

Comecei a estudar direito constitucional, na graduação em direito, em 1989. A constituição era nova, e o professor, talvez desafiado por um texto que desejava romper com o quadro anticonstitucional dos documentos normativos da ditadura militar, fazia principalmente algo como paráfrases dos artigos (exercício, por sinal, a que se restringem muitos "doutrinadores" do direito). Alguns capítulos, porém, foram deixados de lado. Por exemplo, no Título VIII, "Da ordem social", o oitavo capítulo, "Dos índios".
Em meu livrinho sobre direitos humanos, escrevi que tentar entender o direito internacional sem a antropologia era um exercício ilustrado de cegueira. Seria necessário estender essa observação ao direito constitucional e, como exemplo de cegueira antropológica e intolerância etnocêntrica cobertas pelo manto diáfano do direito constitucional, temos Ives Gandra da Silva Martins, nos Comentários à Constituição do Brasil, obra em vários volumes escrita com Celso Ribeiro Bastos.

No volume VIII (cito a edição de 1998 pela Saraiva), temos o ataque do insigne jurista àquele capítulo. Não é incomum que intelectuais mostrem uma postura, digamos, anti-intelectual em relação a outras áreas, que não só desconhecem mas fazem questão de desconhecer e atacar. É o caso do tributarista com a antropologia. Algumas citações eloquentemente o demonstram: "foi criada uma Fundação que é dirigida não pelos índios, mas por pessoas civilizadas" (p. 1050); "Os indianistas lutam para que os índios continuem sendo primitivos, peças de museu, devendo ser preservados em seu atraso civilizacional" (p. 1046); "índios de civilização pré-histórica, proibidos de evoluir para se tornarem peças vivas de um mundo selvagem, para gáudio dos ecologistas e dos antropólogos" (p. 1052).
O jurista critica acerbamente esse capítulo, que supostamente manteria "uma Disneyworld primitiva" (p. 1049), pois os índios ficariam proibidos de "evoluir para os costumes civilizados do século XX/XXI" (p. 1049-1050).
O notável tributarista, apesar de fundar a crítica nessa preocupação com os índios - tolhidos na "evolução" (ele permaneceu, intelectualmente, no século XIX) e, portanto, discriminados, contraditoriamente afirma que os índios são grupos privilegiados, por deterem dez por cento do território brasileiro, o que não foi dado a nenhuma outra etnia. Ele chega a dizer que muitos gostariam de se "naturalizar" índios "para usufruto de tais benesses" (p. 1068).
Ao mesmo tempo, o jurista afirma que a "população indígena [...] é declinante" (p. 1057); felizmente, isso deixou, ao menos por enquanto, de ser verdade. É curioso, no entanto, que alguém possa conceber que um grupo social que estaria declinando (sendo exterminado) seja, ao mesmo tempo, titular de muitas benesses e privilégios... Não é possível, em termos jurídicos (tampouco lógicos, creio), qualificar como privilégio ser vítima de genocídio. O tratamento especial trazido pela Constituição não seria, em vez disso, uma proteção necessária ao grupo ameaçado - e insuficiente? O autor não chega a conceber essa possibilidade e contenta-se com mais contradições, com elas escrevem-se manuais jurídicos...
Não à toa, a inconstitucional PEC 215 é apoiada por esse jurista: http://www.justonalei.com.br/para-ives-gandra-demarcacao-de-terras-indigenas-pelo-congresso-e-constitucional/
É significativo que os índios estejam a reivindicar o cumprimento da Constituição da República, enquanto alguns juristas a atacam. Em tais momentos, o Brasil consegue quase dispensar o "direito achado na rua" e movimentos congêneres: basta ser legalista (o que não é o caso do Judiciário brasileiro, que tem decisões de "direito alternativo" contra os movimentos sociais) para que a luta popular seja contemplada...
E é notável que esta luta popular seja expressa por meio da demanda de direitos, fruto da articulação crescente entre os advogados e os movimentos populares, que ensejou, por exemplo, a recente criação do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais: http://ipdms.blogspot.com.br.
Nas fotos, pode-se ver uma faixa, estendida de um apartamento na Paulista, contra a PEC 215. Cartazes semelhantes eram levados por vários dentro da manifestação.
Os policiais (vejam os uniformes da brigada de choque) acompanharam toda a manifestação, cercando-a à direita e à esquerda, e até do ar, com um helicóptero sobre a Brigadeiro. No entanto, não vi incidente algum.
Como é de praxe nas manifestações populares, alguns policiais fotografavam os manifestantes. É evidente que para tais agentes públicos o exercício de direitos da cidadania é uma conduta altamente suspeita...


Havia também pessoas que reivindicavam os direitos das comunidades quilombolas, também previstos na Constituição, no artigo 68 das Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Fotografei um cartaz sobre o Quilombo do Carmo; do outro lado, menciona-se o Decreto federal n. 4.887, de 2003, que disciplina a "identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas áreas remanescentes das comunidades dos quilombos".
O DEM (ainda com a sigla PFL) propôs ação direta de inconstitucionalidade (de número 3239) contra essa norma, e já teve o voto favorável do então relator, Ministro Cezar Peluso (hoje aposentado), que considerou que a matéria somente poderia ser tratada por lei.

No entanto, decidiu que os títulos já concedidos deveriam ser considerados válidos, em homenagem à boa-fé dos "cidadãos" que "confiaram na norma posta". Ademais, pouquíssimas foram as comunidades beneficiadas. Pedido de vista da ministra Rosa Weber suspendeu o julgamento.
Trata-se, de fato, de norma que poderia ser importante para o reconhecimento dos direitos dessas comunidades, razão pela qual está sendo atacada por esse partido com base social no latifúndio. 
Na prática, e Peluso cita em seu voto esta avaliação da Comissão Pró-Índio, o governo federal paralisou sua aplicação:

No início do governo Lula era grande a expectativa de avanço na implementação dos direitos das comunidades quilombolas. O Decreto 4.887 de 2003 foi saudado como uma sinalização positiva de que o governo iria agilizar o cumprimento do preceito constitucional. No entanto, os resultados em termos de titulações foram muito limitados: apenas 12 terras tituladas em 8 anos de governo Lula. Nesse mesmo período (2003 a 2010), o governo do Estado do Pará emitiu 30 títulos, o do Maranhão 19, Piauí, cinco títulos, e o de São Paulo três títulos.

Os dados relativos aos processos em andamento no Incra também revelam a ineficiência do governo federal. Atualmente, 78% dos processos em curso no Incra não foram alvo de qualquer providência pelo órgão fundiário além de receber um número de protocolo.



O interesse da bancada ruralista na matéria é notório, e é claro que, se o decreto for considerado inconstitucional, ela fará o que estiver em seu alcance para que nenhum projeto de lei no mesmo sentido seja aprovado. Veja-se, no andamento do processo, que a Frente Parlamentar da Agropecuária está solicitando o pronto julgamento da ação: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2227157, que é outra das frentes de batalha da bancada ruralista no Congresso Nacional.
No evento em São Paulo, panfletos chamavam os bandeirantes de genocidas de índios e os comparavam aos atuais ruralistas. Nada mais consequente, pois, que a manifestação terminasse com um happening no Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret.

O happening é um gênero artístico que se presta bem a esse tipo de intervenção política. Enfim, o pano vermelho cobriu parte da obra, que recebeu também tinta vermelha, em uma iniciativa que uniu arte, justiça, memória e escracho.

Além dos índios, fotógrafos escalaram o monumento e aproveitaram a chance de fotografar a multidão do alto.
Depois, organizou-se uma roda que cercou a praça e, em seguida, todos correram em direção à escultura, em uma espécie de cerimônia de apossamento. Os policiais continuaram assistindo aos acontecimentos.



Antes de irem embora, vários índios dançaram em roda. Retirei-me quando eles começaram a deixar a praça.







Na última foto, vê-se o momento em que os índios, em cima do monumento, após um discursos sobre os seus direitos ameaçados, levantam a Constituição da República e apontam para ela.
Outros a erguerão tão alto? Muitos políticos profissionais (e juristas) não desejarão fazê-lo.







P.S.: O Instituto Socio-Ambiental produziu um vídeo breve sobre a manifestação. Manuela Carneiro da Cunha é uma das pessoas entrevistadas. O rapaz que aponta a Constituição é Natan Gacãn, do povo Xokleng, de Santa Catarina:  https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=TwCPT17kqO8#t=223