O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Desarquivando o Brasil LXIX: Justiça de transição em movimento: o caso de Ana Rosa Kucinski; a 76ª Caravana da Anistia



Hoje, 29 de outubro, em um evento da Comissão da Verdade de São Paulo do Estado de São Paulo, será realizada uma audiência pública sobre o caso de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química da USP e militante da ALN que foi demitida pela universidade por "abandono" do cargo, embora tivesse sido sequestrada pela repressão em 1974. Ela continua desaparecida desde então, assim como o seu marido Wilson Silva (também da ALN).
Já mencionei o caso duas vezes neste blogue: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxii-os.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desarquivando-o-brasil-xxiii-wilson.htmlhttp://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desarquivando-o-brasil-xxiii-wilson.html.
Na segunda nota, lembrei das estratégias de negação da existência de desaparecidos políticos no Brasil. A USP colaborou com a farsa oficial, na época, demitindo Kucinski quando ela já estava morta.
É altamente significativo que essa universidade tenha se recusado a reparar simbolicamente a família de Ana Rosa Kucinski e, ainda neste ano, tenha deixado de colaborar com a investigação do caso e com as audiências, em junho e julho, marcadas pela Comissão Estadual da Verdade. A alegação de que seria "prematuro e inoportuno" o comparecimento de representante da USP à audiência de junho de 2013 mostra como, quase quarenta anos depois dos fatos, a verdade continua a incomodar essa instituição: http://www.adusp.org.br/index.php/comissao-da-verdade/1699-a-usp-continua-a-nos-indignar-no-caso-ana-rosa-kucinski

Em 24 de outubro de 2013, não assisti ao seminário "A Anistia e seus sentidos na justiça de transição brasileira", com lançamento do número comemorativo dos quatro anos da Revista Anistia Política (ele pode ser baixado nesta ligação: http://www5.usp.br/35335/comissao-de-anistia-lanca-revista-na-faculdade-de-direito/), que ocorreu de manhã na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Acompanhei, porém, o evento da tarde, os julgamentos da 76ª Caravana da Anistia.

Foram decididos os casos de Maria José Malheiros (nome que Maria Neide Araújo Moraes adotou para escapar de novas investidas da repressão - e que ela manteve até hoje), Aton Fon Filho (na foto, a fazer uso da palavra; ao fundo, os conselheiros da Comissão de Anistia, com Paulo Abrão, o presidente, no meio da mesa) e Oldack Miranda.
O deputado federal Nilmário Miranda, irmão de Oldack, julgou-se impedido e não votou nesse caso, e Ney Strozake fez o mesmo em relação ao sócio e amigo Aton Fon Filho. Todos tiveram seu pedido deferido. Sobre a história dos três anistiados, sugiro ler a matéria de Bia Willcox, "Ministério da justiça julga 'última clandestina da ditadura no Brasil'".
Malheiros e Miranda pertenciam à Ação Popular Marxista-Leninista (APML); no dia seguinte, no Tuca, foram julgados os casos de mais 23 integrantes dessa antiga organização. Aton Fon Filho foi um dos criadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). No público, estava o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", o deputado estadual Adriano Diogo.
A Comissão da Anistia tem realizado um grande trabalho no tocante à justiça de transição e ao direito à memória; a realização desses julgamentos itinerantes (em escolas, memoriais, acampamentos) tem um efeito pedagógico e político que ela não poderia produzir se funcionasse apenas em Brasília. O fato de este julgamento ter ocorrido em uma instituição que teve tantos membros engajados em favor da ditadura parece-me duplicar esse efeito.
As forças contra a justiça de transição, presentes também no meio universitário, continuam atuantes para preservar sua versão da história e manter seu legado autoritário. A esse respeito, o vice-presidente da Comissão de Anistia, o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho (que já tive o prazer de entrevistar), ao votar no caso de Maria José Malheiros, lembrou das pessoas que ainda hoje "precisam ocultar-se por trás das máscaras" e do fato de que os "os próprios agentes de segurança não se identificam muitas vezes", aludindo aos protestos populares deste ano: "ainda não conseguimos sair dessa clandestinidade política".
Por esse motivo, tais movimentos pela justiça de transição, ao revisitar esse passado, ainda tão presente e incômodo, também são iniciativas para efetivar, hoje, a democracia no Brasil.

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