Ontem, dia 2 de outubro de 2013, ocorreu, em São Paulo, um dos atos da Mobilização Nacional Indígena. Ela coincide com os 25 anos da Constituição de 1988. Organizada com o Movimento Passe Livre, os manifestantes partiram do vão do MASP; incorporei-me à multidão já na avenida Paulista; dobramos na Brigadeiro, que foi percorrida até chegarmos ao Monumento às Bandeiras, que foi ocupado por algum tempo, coberto por alguns cartazes e respingado de tinta vermelha.
A convocação da Mobilização Nacional foi realizada pelo Cacique Raoni; em vídeo, o líder pediu apoio aos brancos e falou do documento escrito para a presidenta Dilma Rousseff. Nele, escreve-se sobre a investida de congressistas e do governo federal contra parte da Constituição da República: "Os nossos direitos são garantidos pela Constituição. Agora, a bancada ruralista, com o apoio do governo, quer mudar a Constituição e as leis para invadir estas terras. Há 25 anos lutamos fortemente para construir uma Constituição que respeitasse e valorizasse a diversidade e a pluralidade da sociedade brasileira".
Encontrei, na manifestação, escritores e amigos como Veronica Stigger, Eduardo Sterzi e Luiz Roberto Guedes. A professora Iumna Maria Simon, da FFLCH/USP, também participou. Maria Rita Kehl, a conselheira da Comissão Nacional da Verdade que está coordenando as pesquisas sobre as violações dos direitos dos índios, passou pela marcha. Ela chegou a perguntar se tinha havido algum problema com a polícia, mas nada vi.
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Como disse Eduardo Viveiros de Castro, a indianidade é um projeto do futuro, não uma memória do passado: http://www.redalyc.org/pdf/934/93421623002.pdf O desenvolvimentismo mira para trás, não para frente.
Tínhamos, então, neste evento da Mobilização Nacional Indígena, um ato pelo futuro do país e pela Constituição de 1988, cuja eficácia vem sendo solapada por setores conservadores, que desejam apagar as promessas do novo inscritas naquele texto há um quarto de século.
Comecei a estudar direito constitucional, na graduação em direito, em 1989. A constituição era nova, e o professor, talvez desafiado por um texto que desejava romper com o quadro anticonstitucional dos documentos normativos da ditadura militar, fazia principalmente algo como paráfrases dos artigos (exercício, por sinal, a que se restringem muitos "doutrinadores" do direito). Alguns capítulos, porém, foram deixados de lado. Por exemplo, no Título VIII, "Da ordem social", o oitavo capítulo, "Dos índios".
Em meu livrinho sobre direitos humanos, escrevi que tentar entender o direito internacional sem a antropologia era um exercício ilustrado de cegueira. Seria necessário estender essa observação ao direito constitucional e, como exemplo de cegueira antropológica e intolerância etnocêntrica cobertas pelo manto diáfano do direito constitucional, temos Ives Gandra da Silva Martins, nos Comentários à Constituição do Brasil, obra em vários volumes escrita com Celso Ribeiro Bastos.
No volume VIII (cito a edição de 1998 pela Saraiva), temos o ataque do insigne jurista àquele capítulo. Não é incomum que intelectuais mostrem uma postura, digamos, anti-intelectual em relação a outras áreas, que não só desconhecem mas fazem questão de desconhecer e atacar. É o caso do tributarista com a antropologia. Algumas citações eloquentemente o demonstram: "foi criada uma Fundação que é dirigida não pelos índios, mas por pessoas civilizadas" (p. 1050); "Os indianistas lutam para que os índios continuem sendo primitivos, peças de museu, devendo ser preservados em seu atraso civilizacional" (p. 1046); "índios de civilização pré-histórica, proibidos de evoluir para se tornarem peças vivas de um mundo selvagem, para gáudio dos ecologistas e dos antropólogos" (p. 1052).
O jurista critica acerbamente esse capítulo, que supostamente manteria "uma Disneyworld primitiva" (p. 1049), pois os índios ficariam proibidos de "evoluir para os costumes civilizados do século XX/XXI" (p. 1049-1050).
O notável tributarista, apesar de fundar a crítica nessa preocupação com os índios - tolhidos na "evolução" (ele permaneceu, intelectualmente, no século XIX) e, portanto, discriminados, contraditoriamente afirma que os índios são grupos privilegiados, por deterem dez por cento do território brasileiro, o que não foi dado a nenhuma outra etnia. Ele chega a dizer que muitos gostariam de se "naturalizar" índios "para usufruto de tais benesses" (p. 1068).
Ao mesmo tempo, o jurista afirma que a "população indígena [...] é declinante" (p. 1057); felizmente, isso deixou, ao menos por enquanto, de ser verdade. É curioso, no entanto, que alguém possa conceber que um grupo social que estaria declinando (sendo exterminado) seja, ao mesmo tempo, titular de muitas benesses e privilégios... Não é possível, em termos jurídicos (tampouco lógicos, creio), qualificar como privilégio ser vítima de genocídio. O tratamento especial trazido pela Constituição não seria, em vez disso, uma proteção necessária ao grupo ameaçado - e insuficiente? O autor não chega a conceber essa possibilidade e contenta-se com mais contradições, com elas escrevem-se manuais jurídicos...
Não à toa, a inconstitucional PEC 215 é apoiada por esse jurista: http://www.justonalei.com.br/para-ives-gandra-demarcacao-de-terras-indigenas-pelo-congresso-e-constitucional/
É significativo que os índios estejam a reivindicar o cumprimento da Constituição da República, enquanto alguns juristas a atacam. Em tais momentos, o Brasil consegue quase dispensar o "direito achado na rua" e movimentos congêneres: basta ser legalista (o que não é o caso do Judiciário brasileiro, que tem decisões de "direito alternativo" contra os movimentos sociais) para que a luta popular seja contemplada...
E é notável que esta luta popular seja expressa por meio da demanda de direitos, fruto da articulação crescente entre os advogados e os movimentos populares, que ensejou, por exemplo, a recente criação do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais: http://ipdms.blogspot.com.br.
Nas fotos, pode-se ver uma faixa, estendida de um apartamento na Paulista, contra a PEC 215. Cartazes semelhantes eram levados por vários dentro da manifestação.
Os policiais (vejam os uniformes da brigada de choque) acompanharam toda a manifestação, cercando-a à direita e à esquerda, e até do ar, com um helicóptero sobre a Brigadeiro. No entanto, não vi incidente algum.
Como é de praxe nas manifestações populares, alguns policiais fotografavam os manifestantes. É evidente que para tais agentes públicos o exercício de direitos da cidadania é uma conduta altamente suspeita...
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Havia também pessoas que reivindicavam os direitos das comunidades quilombolas, também previstos na Constituição, no artigo 68 das Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Fotografei um cartaz sobre o Quilombo do Carmo; do outro lado, menciona-se o Decreto federal n. 4.887, de 2003, que disciplina a "identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas áreas remanescentes das comunidades dos quilombos".
O DEM (ainda com a sigla PFL) propôs ação direta de inconstitucionalidade (de número 3239) contra essa norma, e já teve o voto favorável do então relator, Ministro Cezar Peluso (hoje aposentado), que considerou que a matéria somente poderia ser tratada por lei.
No entanto, decidiu que os títulos já concedidos deveriam ser considerados válidos, em homenagem à boa-fé dos "cidadãos" que "confiaram na norma posta". Ademais, pouquíssimas foram as comunidades beneficiadas. Pedido de vista da ministra Rosa Weber suspendeu o julgamento.
Trata-se, de fato, de norma que poderia ser importante para o reconhecimento dos direitos dessas comunidades, razão pela qual está sendo atacada por esse partido com base social no latifúndio.
Na prática, e Peluso cita em seu voto esta avaliação da Comissão Pró-Índio, o governo federal paralisou sua aplicação:
No início do governo Lula era grande a expectativa de avanço na implementação dos direitos das comunidades quilombolas. O Decreto 4.887 de 2003 foi saudado como uma sinalização positiva de que o governo iria agilizar o cumprimento do preceito constitucional. No entanto, os resultados em termos de titulações foram muito limitados: apenas 12 terras tituladas em 8 anos de governo Lula. Nesse mesmo período (2003 a 2010), o governo do Estado do Pará emitiu 30 títulos, o do Maranhão 19, Piauí, cinco títulos, e o de São Paulo três títulos.
Os dados relativos aos processos em andamento no Incra também revelam a ineficiência do governo federal. Atualmente, 78% dos processos em curso no Incra não foram alvo de qualquer providência pelo órgão fundiário além de receber um número de protocolo.
O interesse da bancada ruralista na matéria é notório, e é claro que, se o decreto for considerado inconstitucional, ela fará o que estiver em seu alcance para que nenhum projeto de lei no mesmo sentido seja aprovado. Veja-se, no andamento do processo, que a Frente Parlamentar da Agropecuária está solicitando o pronto julgamento da ação: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2227157, que é outra das frentes de batalha da bancada ruralista no Congresso Nacional.
No evento em São Paulo, panfletos chamavam os bandeirantes de genocidas de índios e os comparavam aos atuais ruralistas. Nada mais consequente, pois, que a manifestação terminasse com um happening no Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret.
O happening é um gênero artístico que se presta bem a esse tipo de intervenção política. Enfim, o pano vermelho cobriu parte da obra, que recebeu também tinta vermelha, em uma iniciativa que uniu arte, justiça, memória e escracho.
Além dos índios, fotógrafos escalaram o monumento e aproveitaram a chance de fotografar a multidão do alto.
Depois, organizou-se uma roda que cercou a praça e, em seguida, todos correram em direção à escultura, em uma espécie de cerimônia de apossamento. Os policiais continuaram assistindo aos acontecimentos.
Na última foto, vê-se o momento em que os índios, em cima do monumento, após um discursos sobre os seus direitos ameaçados, levantam a Constituição da República e apontam para ela.
Outros a erguerão tão alto? Muitos políticos profissionais (e juristas) não desejarão fazê-lo.
P.S.: O Instituto Socio-Ambiental produziu um vídeo breve sobre a manifestação. Manuela Carneiro da Cunha é uma das pessoas entrevistadas. O rapaz que aponta a Constituição é Natan Gacãn, do povo Xokleng, de Santa Catarina: https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=TwCPT17kqO8#t=223
Na manifestação havia muitas crianças indígenas. E isso tem um outro significado muito importante – que passa despercebido aos “civilizados”. Quando ameaçadas, as populações indígenas reduzem, com grande eficiência e sem que se saiba bem como, o número de nascimentos. Há casos em que o desalento é tão grande que a tribo chega a ser ameaçada de extinção, ou é mesmo extinta: eles não se reproduzem.
ResponderExcluirA presença de tantas crianças na manifestação indicava que o grupo alí presente - Guarani em sua maioria – tem esperanças e muitas e, ao mesmo tempo, que a manifestação seria pacífica.
A Constituição de 1988 pode pouco ter inovado olhando as Constituições anteriores. A Carta sempre foi uma arma a favor de grupos, sacada ao vento dos interesses. Os direitos sociais e fundamentais tidos como novidade não alterariam o quadro de fato. A maioria da população ainda depende do socorro governamental e principalmente de sua omissão. Não possuímos experiência democrática. Portanto, nada foi devolvido. Há democracia formal.
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