O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Desarquivando o Brasil CVII: Ustra e os efeitos da anistia

Li algumas notícias sobre a morte de Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército, em 15 de outubro. A importância histórica de sua figura é inegável, sublinhada pelo recebimento da Medalha do Pacificador com Palma em 1972, honraria oficial concedida até mesmo a alguns outros dos nomes apontados pela Comissão Nacional da Verdade como autores de graves violações de direitos humanos.
Na grande denúncia de 1975 dos presos políticos no presídio de Barro Branco, com nome e/ou codinome de 233 torturadores, Ustra aparece nada menos do que em primeiro lugar, com o codinome de Dr. Tibiriçá:

O documento, como já escrevi, foi publicado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", com textos de Adriano Diogo (presidente da Comissão), Amelinha Teles (coordenadora), Reynaldo Morano (um dos signatários da carta) e um posfácio meu.
No capítulo 16 do volume I do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ele está entre os autores de graves violações de direitos humanos, com o número 71. A CNV considerou-o responsável por 45 mortes e desaparecimentos.
Ustra presidiu o DOI-CODI do II Exército (Destacamento de Operações de Informação/Centro de Operações de Defesa Interna, em 1970, uma espécie de "legalização" da Operação Bandeirante - OBAN) em São Paulo, na rua Tutoia, entre 1970 e 1974. No fim de 1974 foi para Brasília e se tornou chefe de operações do Setor de Operações do CIE, onde ficou até 1977.
Cito agora o capítulo 4 do volume I do relatório da CNV sobre a Escola Nacional de Informações do SNI:

O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, após ser comandante do DOI-CODI/II Exército, tornou-se instrutor de operações da EsNI e passou a difundir, para alunos vindos de variados órgãos, as táticas e técnicas empregadas pelo DOI-CODI/II Exército. Assim, os currículos de formação dos cursos A, B, C1 e C2 da EsNI, após 1976, passaram a contar com um módulo específico sobre o DOI-CODI. Em audiência pública da CNV, Ustra confirmou que, quando era instrutor da EsNI, confeccionou apostila sobre "Cobertura e neutralização de aparelhos". Um interrogatório deixava de ser ato formal de tomada de depoimento e passava a ser "graduado de intensidade" quando começavam as sessões de tortura, de acordo com a referida apostila. Os presos eram submetidos a sevícias nas dependências do do DOI e, para garantir que os agentes pudessem atuar mais livremente, os parentes dos militantes eram mantidos desinformados e sem contato com os presos. Os casos relatados na apostila, obviamente, não descrevem torturas a familiares. No entanto, sabe-se que eram largamente empregadas para convencer um preso a falar [...] (p. 120)
Segundo as denúncias, ele participava das torturas. Entre os casos, podem ser citados o de Crimeia Alice Schmidt de Almeida, que era militante do PcdoB, e foi torturada grávida (p. 368 do volume I do Relatório da CNV); Eleonora Menicucci, que foi torturada com o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, militante do Partido Operário Comunista (POC) assassinado em 1971 (p. 463 da mesma fonte).

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Lançamento de Cálcio e de Cidadania da bomba em São Paulo



Escrevo esta nota apenas para avisar que lanço neste dia 15 de outubro, na Casa das Rosas (Av. Paulista, 37), em São Paulo, a edição brasileira de Cálcio (poesia, Hedra) e a edição impressa de Cidadania da bomba (contos, Patuá e E-Galáxia).
Na mesma ocasião, serão lançados três livros de poesia que ganharam um edital de cultura da Petrobrás: Treme ainda, de Fabio Weintraub, Caçambas, de Ruy Proença, e Viagem a um deserto interior, de Leila Guenter. Além desses, teremos a tradução comentada de Woyzeck, de Büchner, por Tercio Redondo.
Na contracapa de Cálcio, foram incluídos trechos da recensão de Maria da Conceição Caleiro, no jornal O Público, sobre a edição portuguesa (pela Averno), e da apresentação que Julián Axat fez da edição argentina, publicada por Libros de la talita dorada.


A orelha é de Eduardo Sterzi.
Cidadania da bomba tem apresentação de Ricardo Rizzo, "Democracia desertada"; um trecho dela foi para a orelha.






quarta-feira, 14 de outubro de 2015

V Seminário do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais: a academia e a ação coletiva

Participei do V Seminário do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), que ocorreu na Faculdade de Direito de Vitória (ES) entre 22 e 26 de setembro de 2015. Eu havia tomado parte de reuniões preparatórias do Instituto, porém nunca dos seminários.
O IPDMS vai de encontro ao que normalmente se faz no âmbito da academia jurídica, em primeiro lugar por ser realmente um instituto de pesquisa, e a "pesquisa", em faculdades de Direito, ainda é confundida, tantas vezes, com a mera busca de jurisprudência na internet.
Em segundo lugar, por recusar-se a qualquer encastelamento, mesmo nas torres de marfim dos fóruns.
Luiz Otávio Ribas, conselheiro do IPDMS, escreveu no Brasil de Fato sobre a abertura do evento, deixa bem clara essa orientação, enfatizando a pesquisa militante: "Chamada ao compromisso do estudo militante": http://www.brasildefato.com.br/node/33072
Os espaços de discussão aconteceram ao mesmo tempo, e perdi tanto o início quanto o final do seminário, que ainda serviu para o lançamento da plataforma da revista Insurgência. Mesmo assim, gostaria de levantar, sem me estender, alguns dos pontos positivos que consegui perceber:
  • O IPDMS leva realmente a sério o fato de que não são apenas os acadêmicos do Direito que produzem conhecimento sobre o Direito, ao contrário de associações epistemologicamente mais adeptas de reservas de mercado, como a ANPUH (que patrocinou isto - vejam a ligação). Dessa forma, havia coordenadores dos espaços de discussão e palestrantes que detinham diplomas em outras áreas.
  • O IPDMS leva a sério o propósito científico e político de não se guiar pelos medalhões, contrariando os procedimentos habituais na cultura jurídica brasileira de gerar homenagens ("estudos em homenagem a **", em que o homenageado praticamente não é citado, até porque não haveria nada mesmo a citar) e, assim, substituir o conhecimento científico pelo capital social.
  • O IPDMS aceitou trabalhos de graduandos, o que pode perfeitamente ser feito se a avaliação é séria. No espaço de discussão de que participei no seminário, todos eles tinham mérito científico e trouxeram novidades. Essa orientação contraria a política habitual das publicações científicas brasileiras, de (em submissão à burocracia federal e seus parâmetros de avaliação, que eu não seguia quando editor) vedar a publicação a quem não é doutor, ou seja, de trocar a qualidade pelo qualis.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sequestro de Voltaire pelo Congresso Nacional e o projeto teocrático de Daciolo

Já escrevi antes sobre a PEC teocrática do deputado federal Daciolo, ex-PSOL-RJ, que deseja alterar o parágrafo único do artigo  artigo da Constituição da República para "Todo o poder emana de Deus, que o exerce de forma direta e também por meio do povo e de seus representantes eleitos".
Em vez da soberania popular, o nobre deputado federal, expulso de seu partido após essa e outras medidas retrógradas, deseja a soberania divina, com atuação direta de "Deus" no governo brasileiro - um deus bem fraco, nota-se, pois precisa de autorização constitucional para agir...
Muitos deputados, inclusive de partidos que são considerados de esquerda, assinaram o projeto para que ele pudesse ser apresentado. Alguns se arrependeram da assinatura, mas já era tarde. O projeto segue, e já recebeu um parecer favorável do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, assinado pelo deputado Pastor Eurico (PSB/PE) em sete de outubro deste ano.
O Pastor provavelmente teve como sua ação mais marcante no Congresso Nacional a grave ofensa à apresentadora de tevê Xuxa; felizmente, neste último caso, foi desautorizado pelo seu partido. Na apreciação do projeto de Daciolo, é o direito constitucional o que ele ofende: o parecer é uma peça sucinta (4 páginas, uma quinta para a assinatura), sumária e indigna da caracterização como parecer, indigna também do caráter oficial que o documento formalmente detém.
O Pastor passou muito ligeiramente pela questão das cláusulas pétreas, evidentemente violada (como escrevi) pelo projeto teocrático, e se escorou na falácia etnocêntrica da "matriz cultural" do povo brasileiro, usando até o Cristo Redentor como paralelo arquitetônico da PEC...
A referência monoteísta da PEC ao "Deus" flagrantemente não vem das religiões indígenas e africanas, que, apesar do que o Pastor deseja, também integram a "matriz cultural" do Brasil. Sabemos que diversas vezes o Estado brasileiro buscou apagar e reprimir, por meio de políticas etnocêntricas, as culturas desses povos, em nome da "matriz" europeia e cristã; sabemos também que a invocação da "matriz cultural" é usualmente feita, no "debate" político, exatamente para invisibilizar e reprimir culturas, para apagar diversidades, em prol dos dominantes. É, na verdade, um argumento contrário aos direitos culturais, e dessa forma ele está sendo empregado por esse Pastor do PSB.
O projeto teocrático, etnocêntrico e antidemocrático de Daciolo, se aprovado, seria mais uma iniciativa nesse sentido, profundamente colonizadora, e, possivelmente, com consequências não apenas no plano imaginário: os cristãos que perseguem os cultos afro-brasileiros passariam a fazê-lo dizendo-se autorizados constitucionalmente...
O parecer, como sói acontecer no parlamento brasileiro, revela também uma prática legislativa inimiga da inteligência, não só pela sua elaboração simplória e sua argumentação rasa, mas pelo culto às citações ornamentais, típicas do medalhão. Entre elas, encontra-se o autor iluminista Voltaire (!), escolha no mínimo inesperada para fundamentar uma proposta teocrática.
Voltaire (1694-1778) não era ateu; mas era anticlerical e crítico da Igreja Católica, e não defendia politicamente a soberania divina. Pelo contrário, no século XVIII, era considerado um herético, foi incluído no Index Librorum Prohibitorum (lista, no passado obrigatória, de autores que os católicos não devem ler), e proibido pela coroa Portuguesa, o que incluía o Brasil. Leio no artigo de Luiz Carlos Villalta no primeiro volume da História da Vida Privada no Brasil que, no final do século XVIII,

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Crítica de poesia brasileira contemporânea, Iumna Maria Simon, Alberto Pucheu

Os alunos da Pós-Graduação em Letras da USP, por meio da professora Ana Paula Pacheco, convidaram-me para um debate sobre crítica de poesia brasileira contemporânea com Iumna Maria Simon e, na mediação, Betina Bischof, também docentes da FFLCH. Ele ocorreu no último dia 29, no âmbito do VII Seminário de Pesquisa dos Alunos de Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, que termina na próxima sexta-feira (cliquem para ver a programação).
Preparei uma fala com base nas respostas que dei a uma enquete que Tarso de Melo fez sobre poesia contemporânea. No fim, li com Fabio Weintraub uma seção de um poema do Cálcio. Iumna Maria Simon resumiu (usando para isso mais do que o dobro do tempo previsto para a exposição) o (cito das minhas anotações tomadas no calor da hora) "itinerário das formulações críticas" que ela tem feito, com foco no que chama de retradicionalização frívola, "novo regime em que entrava a poesia brasileira embalada pelo pluralismo liberal" e em que "o subdesenvolvimento é recalcado como problema estético e político".
Como outras vezes, ela criticou Carlito Azevedo e Eucanaã Ferraz por recalcarem referências ao "real, à experiência, ao presente" numa "recombinação desencantada de erudição". Criticou Paulo Henriques Britto com sua "ideologia da forma". E citou declaração de Alberto Pucheu dada a Rodrigo de Souza Leão em 2002:
Algumas palavras de muitos escritores atravessam as minhas. [Thomas Mann, Fernando Ferreira de Loanda, Maiakóvski, Juan Luis Panero, Dogen Zengi, José Severiano de Rezende, Parmênides, Machado de Assis e Aristóteles quiseram caminhar pelas páginas desse último livro. Sou levado também a exercer diálogos com outros poemas ou livros ou quadros.] Necessito de frases alheias, de obras alheias, como de comida... e elas vão deixando de ser alheias... vão sendo minhas... e eu vou deixando de me ser... vou sendo elas... as frases ganham o cheiro de minha carne, o percurso de meus intestinos e o pensamento que me quer escrever... eu apreendo cheiros alheios, não experimentados até então. São como membros que me ampliam para o mundo, as frases. Utilizo os outros apenas quando não podem deixar de ser um terceiro entre eles e mim. Criamos juntos um terceiro corpo, em cuja invenção me descubro, mais do que sozinho. Assim, como em Rimbaud, e para sempre: Eu é um outro.
Pus entre colchetes o trecho suprimido na citação de Simon. Ela acusou toda essa passagem de não passar de uma grande confusão teórica, e que Pucheu faria algo bem diferente de Rimbaud, caindo em um "elemento multiplicador da unidade do autor que liquida dentro de si a existência do conflito". Ela apontou também uma "confusão entre heterogeneidade de dicções e pluralismo político"; de fato, algo que se vê por aí.
Apesar de o tempo do evento ter quase se esgotado após a exposição, houve algumas perguntas, e Simon pôde esclarecer que nunca dissera que a retradicionalização impedisse a "feitura de bons poemas"; Cláudia Roquette-Pinto seria o exemplo.
No entanto, eu tinha que discordar do método crítico de citações casuísticas para compor panoramas ou perfis literários, desta vez empregado com a entrevista de Alberto Pucheu. Afirmei que Simon não fez jus àquele trecho, que diz respeito a uma poética que ele formou desde os anos 1990, desde Na cidade aberta (1993), muito diferente do que os poetas que ela usualmente critica estavam fazendo, um projeto que me parecia então, e continua me parecendo, único na poesia brasileira. Falei também da concepção de crítica desse autor (cuja ensaística eu não aprecio, porém), mas a hora se avançava.
No semestre passado, pediram-me uma resenha de Mais cotidiano que o cotidiano, livro de poesia que Alberto Pucheu publicou em 2013, para um portal de crítica de poesia que nunca veio à luz, e de que não tive mais notícias. Talvez ainda a publique em algum lugar. Como nela abordo o que falei na USP, respondendo no curto momento de debate, deixo aqui um curto trecho (mais longo, porém, do que o espaço que os jornais diários concedem a resenhas), o seu início: