O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

"este país não pertence/ ao futuro: os mosquitos agora/ cobrem a cidade"

As pessoas que acompanham meus livros de literatura sabem que a saúde pública é um tema constante na poesia e na prosa. Preocupam-me, por exemplo, os problemas de epidemiologia, matéria que não pode ser resolvida pela saúde privada e tem sofrido especialmente nos últimos anos com a série de governos privatistas no âmbito federal e também em diversos Estados e Municípios.
Vendo as consequências atuais da cabeça pequena dos governantes, toda dedicada a grandes lucros de empresários do setor e aos ainda maiores prejuízos da população em doença, mutilação e morte, lembrei de um pequeno poema que fiz, o inicial da primeira parte dos Cinco lugares da fúria, que saiu pela Hedra em 2008.
A maior parte das pessoas que escreveram sobre esse livro (como Fábio de Souza AndradeGustavo Dumas, Marcelo Coelho) destacaram um poema que era uma fala de um cupim, mas o livro começa com os mosquitos e a doença, ou seja, sob o signo da peste. Ou seja, aquele sob o qual vivemos.
A imagem da capa, parte de um impressionante quadro de Isaumir Nascimento, parece encarnar esses tempos. Deixo-a para o fim, como se faz com a melhor parte.




Ventre seco dos calendários

 
de que futuro é este país
ignoro, mas também o mosquito
em seu voo ignora qual pele
vai picar;

este é o país, de que futuro
ignoro, mas também a malária
no ventre do inseto não sabe onde
brotará;

não sei a quem pertence o país,
ao futuro? como a epidemia
às drogas das corporações trans-
nacionais?

(de onde vem a cidade? da febre
ou da picada? apenas do vírus
ou da decomposição? quem dela
nascerá?

ou do cruzamento entre a infecção
e a artéria nascerá novo sangue
que sairá do corpo para o fluxo
do final?)

de fato, este país não pertence
ao futuro: os mosquitos agora
cobrem a cidade, mas o sangue
secou.





segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXVIII: Polícia, repressão política e comissões da verdade

Mais uma notinha em que reproduzo coisas que escrevi para o curso de justiça de transição em que ainda estou matriculado. Como voltou o tema da polícia, escrevi algo diferente do que já havia feito, o que foi fácil, pois a questão está longe de ser esgotada.

Todos os textos da bibliografia do curso apontam continuidades, no campo da segurança pública, dos tempos da ditadura militar em relação aos dias de hoje. Há diversos exemplos na história recente, a que os colegas certamente aludirão. Basto-me com dois.
Em janeiro de 2012, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo elaborou para o seu sítio da internet uma linha de tempo em que, no ano de 1964, víamos a referência à "Revolução", que as forças públicas apoiaram em "solidariedade" ao povo.




A falsidade histórica e à louvação da ditadura militar geraram diversos protestos, que levaram ao apagamento desse texto, com o desenho que alude a uma estranha marcha militarizada da família. O episódio foi revelador de como continuaram a pensar as autoridades de segurança pública daquele Estado.
No ano seguinte, após a ocupação do Congresso Nacional pelos movimentos indígenas, os não-índios resolveram também sair às ruas, com resposta violenta da polícia. Em São Paulo, o Movimento do Passe Livre, a partir de junho, liderou diversas manifestações contra o aumento da passagem do transporte público.
Houve diversas manifestações pelo país, inclusive na capital. Em julho de 2013, a atuação de advogados e da OAB-RJ na defesa de pessoas que foram detidas pela polícia (em uma série de abusos policiais, incluindo o uso de armas de choque em pessoas desacordadas, prisão de jornalistas que tentavam acompanhar os acontecimentos e de enfermeiros que tentavam socorrer os feridos) levou a uma reclamação da Polícia Militar do Estado daquele Estado nas redes sociais:




A advocacia prejudicando a arbitrariedade... A OAB-RJ reagiu, enquanto a Associação dos Magistrados Brasileiros elogiou o trabalho da polícia em ofício de 19 de julho, assinado por Henrique Nelson Calandra, presidente da AMB, dirigido ao coronel da PM Erir Ribeiro da Costa Filho. Em 6 de agosto do mesmo ano, depois de diversas denúncias da violência, ele seria exonerado do cargo de Comandante-geral da PM.
Alberto L. Kopttke afirma, no texto "Reforma da Segurança Pública: superar o autoritarismo para vencer a violência", que "As manifestações de julho de 2013 tiveram o mérito de trazer o tema da Reforma da Segurança Pública para o debate da democracia brasileira, principalmente por meio da bandeira da Desmilitarização das Polícias Militares." De fato, esse foi um dos elementos positivos gerados pelas manifestações.
Esse autor afirma que esse debate precisa ser feito à luz da justiça de transição; concordo também, e aponto que já há movimentos que o fazem, como os das Mães de Maio. O Comitê pela Desmilitarização da Polícia e o Comitê Popular da Copa já o faziam - eu mesmo, em palestra que dei em evento que ambos organizaram em São Paulo em 29 de março de 2014, comparando a Portaria do Ministério da Defesa de dezembro de 2013 sobre "forças oponentes" (depois revogada) com documentos secretos da ditadura militar, pude insistir nesse ponto.
A Polícia Militar tentou invadir esse evento no começo das falas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2014/04/a-policia-invadindo-debates-debatedores.html  Com isso, ela confirmou o que estávamos sustentando...
"Os mais de vinte anos de ditadura militar terminaram consolidando um modelo de polícia fundado na estranheza diante do público", escreve Marcos Rolim em "Modelo de Polícia e democracia". Há mais do que isso, porém: um modelo de polícia inspirado na ideia do "inimigo interno", típica da doutrina de segurança nacional, e que explica a ideologia por trás da repressão armada às manifestações populares, o que inclui as passeatas dos alunos secundaristas em São Paulo no fim de 2015.
Trata-se do tema de Rogerio Dultra dos Santos em "A lógica do 'inimigo interno' nas Forças Armadas e nas Polícias Militares e sua impermeabilidade aos direitos fundamentais: elementos para uma emenda à Constituição"; no artigo, o autor aponta que a "verdadeira democratização" depende de uma "desvinculação completa das Forças Armadas de questões tipicamente civis e políticas", o que inclui, entre vários pontos, o fim da Polícia Militar (o que é uma das recomendações da Comissão da Verdade "Rubens Paiva": http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_1_A-militarizacao-da-seguranca-publica-no-Brasil.pdf).
Outra continuidade, anterior à própria ditadura, e que deve ser afastada para um modelo democrático de polícia, é o racismo.
Este relatório confidencial da Polícia Civil de São Paulo, de 15 de maio de 1978, é bem um sintoma do racismo das forças de segurança: http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/racismo-robson-silveira-da-luz-os1056.png
O comentário, suscitado pela tortura e assassinato do feirante negro Robson Silveira da Luz pelos policiais da 44a. DP, de que "negro tem que ir pro pau" (um dos temas do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_2_Perseguicao-a-populacao-e-ao-movimento-negros.pdf), encontra eco em diversos acontecimentos recentes. Menciono aqui apenas a execução sumária de cinco jovens negros (Wesley Castro Rodrigues, de 245 nos, Wilton Domingos Junior, com 20, Cleiton Corrêa de Souza, 18, Carlos Eduardo Souza e Roberto de Souza Penha, com 16) por policiais militares no bairro de Costa Barros, cidade do Rio de Janeiro, em 29 de novembro de 2015: "O grupo comemorava o primeiro salário recebido por Roberto, que iniciara um trabalho como “jovem aprendiz” — bem como um curso técnico de assistente administrativo — um mês antes" (http://extra.globo.com/casos-de-policia/prestes-se-formar-em-direito-soldador-lamenta-morte-de-filho-fuzilado-por-pms-nao-vai-nem-me-ver-de-beca-18196262.html).
O emprego de 111 balas no fuzilamento dos jovens dentro do carro pareceu ecoar sinistramente os 11 mortos do Carandiru.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXVII: Justiça de transição, El Salvador e Colômbia

Estou participando, sem muito sucesso, de um curso à distância sobre justiça de transição. Tive, em certo módulo, de tratar dos debates que têm como objeto memórias dos conflitos, especialmente os que foram analisados por Comissões da Verdade, incluindo "pelo menos" dois países da América Latina, passando pelos textos da bibliografia do módulo, que não tratavam especificamente do assunto, muito menos tinham como perspectiva o continente.
É claro que não consegui responder, pois a questão era imensa. Fiz apenas algumas anotações, que talvez interessem por causa das referências.


Nem todos os artigos da bibliografia do módulo lidam diretamente com essa questão. Marlon Alberto Weichert se distancia do problema desde a definição que adota para “justiça transicional”: “conjunto de medidas jurídicas e políticas destinadas a superar um legado de violações aos direitos humanos, tendo por objetivos últimos a reconciliação, a garantia de não recorrência e, em decorrência, a consolidação democrática.”, sem referência às mudanças de quadro político (mudança de regime político ou final de conflito ou guerra) e com insuficiente caracterização jurídica, uma vez que “legado de violações de direitos humanos” é o que pode ser constatado em qualquer Estado em qualquer tempo desde que esses direitos foram instituídos.
A lei brasileira que criou a Comissão Nacional da Verdade acertou ao referir-se a “graves violações de direitos humanos”. Note-se também que o autor não compreendeu a estrutura do relatório da CNV, ao afirmar que “O segundo volume é dedicado a nove textos autorais individuais de três membros da Comissão”, tendo em vista que todos esses textos vieram do trabalho de pesquisadores e não são, de forma alguma, produtos “autorais individuais” de membros da Comissão. Ademais, tudo o que está no relatório corresponde a um documento do estado brasileiro e não pode ser entendido, desde sua natureza jurídica e política, dessa forma individualista.
O texto de Weichert toca no tema ao mencionar que é a Comissão de Anistia, e não a CNV, que “enfatiza estratégias de educação e cultura”.
Cristiano Paixão e José Otávio Guimarães, em “Justiça de transição em perspectiva intergeracional: repressão e resistência nas universidades”, trata da experiência da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, pioneira entre as comissões da verdade universitárias. O trabalho enfoca as audiências públicas, a anistia de Honestino Guimarães, estudante que continua desaparecido, a realização de um dossiê sobre a morte de Anísio Teixeira (que continuou não elucidada) e a luta contra o esquecimento nas próprias atividades de ensino: “Espera-se, igualmente, que o trabalho realizado pela CATMV estimule a comunidade universitária, que interage em um local de aprendizagem, a construir práticas de conhecimento e de informação capazes de garantir visibilidade aos sofrimentos dos resistentes. A expectativa é de que não se abata sobre o campus o esquecimento descompromissado.”
O artigo também trata de continuidades da repressão estatal contra as comunidades universitárias, que exigem “reformas institucionais”:


Nossas Forças Armadas e policiais continuam estruturadas de modo muito similar aos tempos autoritários. Abusos como violência estatal e tortura continuam a ser praticados. Estudantes que protestam permanecem sofrendo todo tipo de tratamento violento – como demonstram os episódios vividos em março de 2014 por alunos e professores da Universidade Federal de Santa Catarina e como experimentado, de modo dramático, pelos estudantes da Universidade de Brasília, que organizaram o movimento “Fora Arruda” em 2009-2010.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A direita vermelha, algo como um poema





Banqueiros e motosserras,
empreiteiros e rajadas
e outros grileiros da esperança
recebem à mesa do banquete
a direita vermelha;
os não convidados
só provarão das iguarias
se caçarem as baratas
e os ratos não humanos
que sob a mesa
capturaram os fragmentos em queda;
mas a direita vermelha não veio para migalhas,
o banquete é o princípio de governo,
a administração de fome e fastio,
serviçais e seguranças,
a faca e a fogo;
e o novo convidado,
a direita vermelha,
para relembrar a cor,
vestígio arqueológico da política,
derrama vinho
da cabeça aos pés.

Os daltônicos políticos
chamam de esquerda
a direita vermelha
e ela aceita;
os daltônicos políticos
de esquerda a defendem
com argumentos da direita;
os daltônicos políticos
de direita a acusam
como se fora de esquerda,
e tudo ela aceita,
todo um arco-íris de erros
desune céu e terra
quando a direita vermelha 
preside o horizonte
e alguns tomam por aurora
o poente em desvario.

Quais deixam a pele mais vermelha,
os golpes da direita ou da esquerda?
A direita vermelha
enxerga mais adiante
e só mira nas cores mais sombrias
do hematoma
e corta a coleira da polícia
ao ver na rua
o povo não autorizado;
a direita vermelha,
ou menos do que a polícia,
apenas a coleira
que teria refreado
as mordidas da bomba,
apenas uma coleira
e partida
sempre que vê o povo
com pescoços nus, aortas acessíveis
para essa direita colorir-se como gosta.

A direita vermelha
foi admitida ao banquete,
agora evita a rua,
local de refeições ligeiras,
mas comanda os sinais de trânsito
acionados por cassetete e bomba;
sinais que avisam
por onde a democracia pode passar
sem perder os dentes,
sem perder os olhos,
sem perder o filho
que teria nascido
se não fosse a bomba
hoje senhora das ruas,
a praça é da bomba
como a explosão é do poder,
dizia o poeta,
ou a praça é do poder
como a explosão é da bomba,
não recordamos bem,
apenas ouvimos
os tiros para que o povo não invadisse a cidade,
hoje toda ela um sinal vermelho
exatamente como esta direita.

A direita vermelha
brinca com as redes
e decreta que livres
são os capturados,
e, indignos, os que escaparam
às bolsas, aos cargos,
aos prêmios, aos tiros
com que são urdidos
os furos da rede
da direita vermelha,
nela joga os dados íntimos
dos que não foram pescados,
dos que falaram mais do que os peixes,
pois a direita vermelha
ama o que é público
vendo em cada direito
uma oportunidade de concessão,
em cada concessão
um rio de oportunidades,
em cada rio
uma ocasião para a lama
em que a rede
não logra capturar mais nada,
exceto a miséria ribeirinha
e o deserto desaguando no mar
agora tão lendário quanto o vermelho
pois também aberto
em areia e fome, pedra e fuga.

Que frequência do vermelho lograria
capturar os fragmentos da queda
do desvio à direita?
A direita vermelha
voa nos jatos dos clientes
e vê no arco-íris um latifúndio
ainda a ser conquistado;
embora sobrevoe as florestas,
não entende suas cores,
manda as substituir por gado
e antevê a carne pendurada nos açougues,
manda substituir índios e seringueiros
pelos ganchos
onde os corpos pendurados
fazem o lucro dos açougues;
a política pinga
da mercadoria à venda,
mas a direita vermelha
manda limpar o chão
no fim do expediente.

Da possibilidade do arco
e da efetividade das cores
alimentam-se banqueiros e rajadas,
empreiteiros e motosserras
e a nova direita, a vermelha,
enquanto a velha não retoma o lugar,
ausente temporariamente
para vomitar-se a si mesma e a outras toxinas,
pois as bactérias
não distinguem direções
e tomaram o banquete por todos os lados,
revelaram-se o princípio do governo
e talvez possuam alguma cor
que não vemos.


P.S.: O poema foi publicado em Canção de ninar com fuzis.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Pierre Boulez, Gilberto Mendes: formas de engajamento

Morreu Gilberto Mendes no primeiro de janeiro, com 93 anos, e faleceu Pierre Boulez, com 90, no dia 5. Não vou comparar os dois, mas é claro que se trata, nos dois casos, de uma geração para a qual a proposta e a postura da vanguarda faziam sentido, o que não parece ser mais o caso para os compositores jovens de hoje.
Quando Schönberg morreu, estava lá o então enfant terrible francês para dizer que Schönberg realmente estava morto (texto publicado em 1952, recolhido nos Apontamentos de aprendiz, publicados no Brasil pela Perspectiva)... E também propor a superação tanto desse compositor (para ele, pouco avançado no elemento rítmico) quanto de Stravinsky (que seria conservador no plano da harmonia), bem como de Messiaen, de quem foi aluno, no caminho do serialismo integral.

Ele ficará como compositor? Creio que sim, porém não com a dimensão de Schönberg e de Stravinsky... Sugiro, para quem o estiver descobrindo, que ouça, em homenagem a Boulez, a que ele fez para Bruno Maderna, um impressionante Ritual fúnebre: https://www.youtube.com/watch?v=-k7EXNZqIUg
Vi, em jornal de São Paulo, Gilberto Mendes ser contestado em seu domínio da técnica musical, crítica que jamais se faria a Boulez. E também sobre a permanência de sua obra, que tinha uma dimensão performática que a torna mais aparentada, por exemplo, à imaginação artística de Cage, que chega à "negação da necessidade de compor" (cito Paul Griffiths em Modern Music: A concise history) do que com o supertécnico Boulez, que pode incorporar o acaso e a abertura da estrutura musical (como em Pli selon Pli e na terceira Sonata para piano), mas não a ponto de questionar radicalmente o papel de compositor. Há um maître por trás do marteau.
Ademais, só um brasileiro ousaria a Santos Football Music: https://www.youtube.com/watch?v=a_P_USxgGFM ; vejam que a matéria é brasileira, mas, por causa da forma, os compositores nacionalistas de que os nomes da Música Nova divergiram jamais criaram coisas assim. Compreendo perfeitamente que esse happening choque as pessoas mais presas a demarcações de gênero.

Em uma entrevista no sítio da Cité de la Musique/ Philharmonie (vejam na ligação a linha biográfica de Boulez) Boulez trata, na primeira parte, de Messiaen, de quem foi aluno, e de sua própria experiência como professor. Ele afirma que não é possível ensinar a compor (salvo a si mesmo); o que se pode ensinar é a análise musical:
[...] há certos limites para o professor de composição. Eu comparo com um choque, em geral; o professor de composição é um tipo de detonador; mas, se não há matéria, gente que possa detonar, o choque não existe. Mas, do outro lado, se não há detonador, você não sabe no que vai se tornar, o que você é, e nesse caso é bem mais difícil, bem mais longo, e, em alguns casos, bem mais incerto. Portanto, para mim a composição é um choque, em todo caso. 

Os escritos de Boulez ainda jovem são um exemplo clássico de como a vanguarda constrói um tribunal da história para entronizar-se e, desse cimo, escolher o caminho do futuro. Por vezes, o trono é muito baixo, não permite avaliar bem o espaço, e o futuro acaba escolhendo outros sentidos. Para Boulez, esse futuro viria principalmente a partir de Webern, cuja obra completa ele gravou, como maestro, pelo menos duas vezes.
Boulez, como maestro, acabou regendo parte da música que criticou, às vezes duramente, quando mais jovem. No entanto, do meu estreito ponto de vista de mero ouvinte, creio que não há tanta divergência entre Boulez como teórico, como compositor, como administrador e como regente: em todas essas atividades, seu compromisso era com a música do século XX. Ele regeu bastante Wagner, sim, mas sem esse compositor o século teria sido outro; e poucas coisas são tão permanentemente atuais quanto a montagem e a interpretação do Anel do Nibelungo que ele e Patrice Chéreau fizeram em Bayreuth no centenário da obra, em 1976. Foi um dos marcos de montagem operística do século XX, e com uma obra do XIX.
Os teatros de ópera são, em geral, espaço de conservadorismo militante, o que gerou a frase famosa, uma célebre brincadeira, de que eles deveriam ser queimados. Nesse gênero, para que ele nunca compôs, o maestro Boulez teve outro grande triunfo que marcou o século XX: a montagem integral de Lulu, obra póstuma de Alban Berg, que Friedrich Cerha completou (antes disso, era apresentada sem o terceiro e último ato). A montagem de 1979 na Ópera de Paris foi outra parceria com Chéreau.
Mozart e Beethoven foram exceções muito pontuais na regência de Boulez. Lembro de Otto Klemperer, um grande maestro que tinha ambições como compositor, pasmo porque Boulez não tinha interesse nem pelo Requiem de Verdi! A propósito, fiquei muito surpreso com a declaração de Pedro Amaral, em matéria do jornal O Público, de que Boulez passou a ter interesse pelas últimas obras de Verdi, mas já estava velho demais para regê-las.
Ao contrário de Klemperer, suas escolhas como regente eram geralmente ditadas por um compromisso com o que ele julgava que era a atualidade musical. Como administrador de instituições musicais, suas escolhas foram guiadas pelos mesmo princípios, o que levou a compositores tão diferentes quanto Dutilleux (já falecido) e Michel Legrand a criticá-lo por sectário, o que ele certamente era. No artigo que citei, ele assimila a vanguarda ao bom senso, o que não é exatamente uma postura vanguardista, nem faz muito sentido: "Ao declarar que, depois da descoberta dos vienenses, todo compositor que se situa fora das pesquisas seriais é inútil, não pretendemos manifestar um demonismo eufórico; antes, sim, demonstrar o mais banal bom senso".
No ano passado, Legrand o chamou de fascista, mas Boulez já estava doente demais para responder. Com o tempo, algumas dessas rivalidades se dissolvem. Dusapin, em matéria do Libération, aproximou Dutilleux e Boulez...

Alguns jornalistas, vejo, o chamam nas notícias necrológicas de "músico clássico". Talvez não gostasse da alcunha. Em um texto de Foucault, "Pierre Boulez, l'écran traversé", publicado em 1982 e incluído na coletânea Dits et Écrits, temos uma importante análise da relação de Boulez com a história da música:
Boulez detestava a atitude que escolhe no passado um módulo fixo e o procura variar por meio da música atual: "atitude classicizante", como ele dizia; ele igualmente detestava a "atitude arcaizante" que toma a música atual como referência e trata de nela incorporar a juventude artificial de elementos passados. Creio que seu objetivo, nessa atenção à história, era fazer de forma que nada ficasse fixo, nem o passado nem o presente. Eles os queria todos os dois em perpétuo movimento um em relação ao outro [...]
Obras como Dérive 2, uma de suas últimas composições, tentam partir desse perpétuo movimento e oferecê-lo ao ouvinte - e por isso são inacessíveis para as plateias distraídas, que buscam descansar encontrando sempre a reiteração auditiva, ou seja, que buscam não ouvir. Vejam esta interpretação regida por Daniel Barenboim, com integrantes da Orquestra West-Eastern Divan.
Boulez musicou Mallarmé, Gilberto Mendes musicou os poetas do movimento concretista. Ele via como uma retrocesso em sua escrita musical o Moteto em Ré Menor, "Beba Coca-Cola", escrito a partir do célebre poema de Décio Pignatari, e assim explicava seu sucesso. Não há problema algum em gostar dele, porém; vejam a interpretação do Coro da Osesp, regido por Naomi Munakata, no filme A odisseia musical de Gilberto Mendes: https://www.youtube.com/watch?v=6DKRtGjIaD4
A "popularidade" é um problema? Mais de uma vez, Gilberto Mendes disse que não. Por exemplo, nesta entrevista que concedeu aos 91 anos à Revista Brasileira de Música da UFRJ, fez esta autocrítica, extensiva a quase todo o grupo da Música Nova:
O grande Beethoven (1770-1827), Brahms (1833-1897), Bach (1685-1750) sempre foram admirados por todos. Essa “nossa” música não chegou às pessoas, temos que aceitar isso, apenas um compositor ou outro; ela ficou afastada e esse foi o pecado básico: se afastar totalmente da comunicação e, mais ainda, eliminar totalmente a emoção musical. Não vou dizer que não tem nada de emoção, mas é uma emoção extremamente particularizada, apenas para quem está intimamente dentro, não tem aquela emoção que vem do geral, ela não se conecta em ponto algum com o popular e a música do passado sempre se conectou com o popular, mesmo porque a música popular e a música erudita, segundo Bartók (1881-1945) são uma só.
Em Boulez também há essa, digamos, desconexão. Em uma conversação com Foucault, publicada em 1983, "La musique contemporaine et le public", Boulez escreveu que "a evolução correu no sentido de uma renovação sempre mais radical tanto na forma das obras quanto em sua linguagem. As obras tinham a tendência de se tornar eventos singulares que, realmente, têm seus antecedentes, mas são irredutíveis a qualquer esquema condutor admitido, a priori, por todos, o que cria, certamente, uma desvantagem para a compreensão imediata".
Se se tratava de um desafio recompensador para o público, a exigência era maior ainda para o criador, e quase esterilizadora. Boulez passou a compor cada vez menos e a dedicar mais tempo à revisão de suas obras (a notável reportagem do New York Times sobre a morte do compositor, assinada por Paul Griffiths, não deixa de lembrar disso).
Boulez foi um regente excepcional, porém o "homem de gelo", como foi chamado nos EUA, não era muito compatível com partituras que exigiam mais engajamento emocional do que frieza analítica: por exemplo, acho fraca sua gravação de Das Lied von der Erde, de Mahler, com Violeta Urmana, por causa da gélida direção. Com Webern, era outra coisa e ele podia ser bom em compositores distantes de seu estilo: por exemplo, no Concerto de câmara para cravo e outros instrumentos de Manuel de Falla.
O caráter de homem de gelo combinava, talvez, com a reserva sobre sua vida pessoal, necessária em um meio ainda ostensivamente dominado por homens brancos e heterossexuais. Lembro do ambíguo comentário no Diário de Robert Craft, um rival: "A natureza sexual de Boulez ou é neutra, ou muito bem escondida". Mais recentemente, recordo de uma ridícula conta falsa homofóbica no twitter.
Isso não impediu que acumulasse poder na condição de maestro, e sua impressionante carreira, especialmente nos EUA, habilitou-o a voltar para a França em uma posição de força: o IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música), o Ensemble Intercontemporain (hoje dirigido por Matthias Pintscher), a Philharmonie, por exemplo, devem-se a ele. Se ele tivesse trabalhado apenas como compositor, certamente não teria atingido toda essa influência sobre as instituições francesas.
Gilberto Mendes não fez esse tipo de carreira e nunca teve essa influência no Brasil. Foi professor, o que é motivo de opróbrio no país. No entanto, o Festival Música Nova conseguiu resistir, buscando criar novas plateias. Pois a ensurdecedora reiteração da música industrializada cria não-ouvintes ativos. Numa entrevista de 1998, perguntam-lhe sobre "É o Tchan". Ela foi recolhida no livro Gilberto Mendes da série Encontros da editora Azougue, organizado por Marcelo Ariel no ano passado:
É uma avacalhação, uma baixaria, não tem qualidade nenhuma, a música popular não tem como se salvar. Outro dia vi no canal alemão da TV a cabo um programa com a Emsemble Moderne, que já esteve aqui no Festival. Estava lá na Deustch Veller, aqui ninguém sabe o que é, muito menos o Beto Mansur e essa turma que está aí no poder. Não sabem do que se trata e nem se preocupam em saber. Eles gostam de Chitãozinho e Xororó, que não é música caipira. É uma música inventada pela indústria cultural, com um pouco do estilo de Roberto Carlos, aquela frescurada toda. A [sic] gravadoras estão interessadas em lixo que venda. O Caetano pegou uma época boa, se fosse hoje, ele não conseguia gravar. ["Ensemble" e "Deutsche Welle"; o livro não teve revisão]

É interessante a afirmação de que, se Caetano Veloso tivesse surgido no fim do século passado, não teria encontrado espaço na indústria fonográfica. Essa indústria, porém, está em crise, e os músicos de hoje lutam em outros espaços de veiculação de música, o que também é difícil.
Eu acrescentaria que boa parte dessa música de que ele não gostava (embora apreciasse bastante música popular; no lançamento paulista do livro da Azougue, ele cantou jazz dos EUA; e peças como Rastro harmônico não negam o diálogo com essa outra música) não apresentava o engajamento na linguagem musical, sendo programaticamente repetitiva, tampouco o engajamento na política, pois lucrativa para o poder.
Os dois engajamentos foram decisivos na obra de Gilberto Mendes, que é lembrado por seu compromisso socialista; nesse campo, o que dizer de Boulez, além de sua relação com a história da música, como bem delimitou Foucault? Como ele se relacionava com a história tout court?
Se ele não escreveu obras engajadas da forma que o compositor brasileiro ousou, tinha também posições políticas. A França não tem de fato uma grande tradição democrática, e imperialismo não combina com democracia em parte alguma. Durante a guerra colonialista para manter o domínio sobre a Argélia, Boulez foi signatário de um dos manifestos contra essa política francesa e, por isso, foi impedido de retornar a seu próprio país.
O Brasil também teve medidas de banimento, mas durante a ditadura militar...
Termino com esta observação, em homenagem a esse aspecto não muito conhecido do músico. Vejam que jornal foi destacar a política no necrológio de Boulez (não foi Le Monde): http://www.elmoudjahid.com/fr/actualites/88905