O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXVII: Justiça de transição, El Salvador e Colômbia

Estou participando, sem muito sucesso, de um curso à distância sobre justiça de transição. Tive, em certo módulo, de tratar dos debates que têm como objeto memórias dos conflitos, especialmente os que foram analisados por Comissões da Verdade, incluindo "pelo menos" dois países da América Latina, passando pelos textos da bibliografia do módulo, que não tratavam especificamente do assunto, muito menos tinham como perspectiva o continente.
É claro que não consegui responder, pois a questão era imensa. Fiz apenas algumas anotações, que talvez interessem por causa das referências.


Nem todos os artigos da bibliografia do módulo lidam diretamente com essa questão. Marlon Alberto Weichert se distancia do problema desde a definição que adota para “justiça transicional”: “conjunto de medidas jurídicas e políticas destinadas a superar um legado de violações aos direitos humanos, tendo por objetivos últimos a reconciliação, a garantia de não recorrência e, em decorrência, a consolidação democrática.”, sem referência às mudanças de quadro político (mudança de regime político ou final de conflito ou guerra) e com insuficiente caracterização jurídica, uma vez que “legado de violações de direitos humanos” é o que pode ser constatado em qualquer Estado em qualquer tempo desde que esses direitos foram instituídos.
A lei brasileira que criou a Comissão Nacional da Verdade acertou ao referir-se a “graves violações de direitos humanos”. Note-se também que o autor não compreendeu a estrutura do relatório da CNV, ao afirmar que “O segundo volume é dedicado a nove textos autorais individuais de três membros da Comissão”, tendo em vista que todos esses textos vieram do trabalho de pesquisadores e não são, de forma alguma, produtos “autorais individuais” de membros da Comissão. Ademais, tudo o que está no relatório corresponde a um documento do estado brasileiro e não pode ser entendido, desde sua natureza jurídica e política, dessa forma individualista.
O texto de Weichert toca no tema ao mencionar que é a Comissão de Anistia, e não a CNV, que “enfatiza estratégias de educação e cultura”.
Cristiano Paixão e José Otávio Guimarães, em “Justiça de transição em perspectiva intergeracional: repressão e resistência nas universidades”, trata da experiência da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, pioneira entre as comissões da verdade universitárias. O trabalho enfoca as audiências públicas, a anistia de Honestino Guimarães, estudante que continua desaparecido, a realização de um dossiê sobre a morte de Anísio Teixeira (que continuou não elucidada) e a luta contra o esquecimento nas próprias atividades de ensino: “Espera-se, igualmente, que o trabalho realizado pela CATMV estimule a comunidade universitária, que interage em um local de aprendizagem, a construir práticas de conhecimento e de informação capazes de garantir visibilidade aos sofrimentos dos resistentes. A expectativa é de que não se abata sobre o campus o esquecimento descompromissado.”
O artigo também trata de continuidades da repressão estatal contra as comunidades universitárias, que exigem “reformas institucionais”:


Nossas Forças Armadas e policiais continuam estruturadas de modo muito similar aos tempos autoritários. Abusos como violência estatal e tortura continuam a ser praticados. Estudantes que protestam permanecem sofrendo todo tipo de tratamento violento – como demonstram os episódios vividos em março de 2014 por alunos e professores da Universidade Federal de Santa Catarina e como experimentado, de modo dramático, pelos estudantes da Universidade de Brasília, que organizaram o movimento “Fora Arruda” em 2009-2010.

Em balanço das Comissões da Verdade realizado no IRI/USP em abril de 2015, foi destacada a grande dificuldade do trabalho da Comissão da UnB no tocante ao desaparecimento dos documentos da comunidade de informações sobre a universidade, o que limitou bastante suas descobertas, mas isso não é tocado no artigo.
Inês Virgínia do Prado Soares, em “Lugares de Memória e Memoriais: por que preservar locais que lembram o horror?”,vê a questão através da perspectiva museológica: “A transformação em Memorial permite que a História seja recontada sob outra perspectiva, com a consolidação de uma consciência cívica que não aceite a hipótese de que as graves violações ocorridas no passado voltem a se repetir.”, que ela trata como “vontade do governo em implementar políticas públicas que reposicionem a memória oficial [o que] atualiza o debate e diferencia a atuação na democracia”, adotando uma visão de cima para baixo, sem enfatizar que essa vontade governamental é fruto de debates e de ação na sociedade, especialmente de movimentos como o Fórum dos Ex-Presos Políticos e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
O artigo coletivo dos alunos da disciplina “Democracia e violência: memória, verdade e Justiça de Transição”, ministrada pelo professor José Geraldo de Sousa Junior no PPGD da UnB, com o mesmo título da disciplina, que intervieram na 73a. Caravana da Anistia em 2013 com denúncias de “violências cometidas contra estudantes, servidores/as e professores/as que se opuseram ao poder político autoritário” na UnB. A brevidade do texto não permite que sejam as denúncias sejam pormenorizadas, tampouco que sejam explicadas as condições em que se deram os debates durante a Caravana e depois.
A questão pede para que tratemos nada menos do que dois Estados da América Latina. Como passamos a maior parte do tempo nos referindo ao Brasil, não vou escolhê-lo. Incluo agora o primeiro Estado, sobre o segundo escreverei amanhã.
No caso de El Salvador, em 13 de julho de 1992 começou a funcionar a Comissão da Verdade, fruto de acordo entre o governo e a Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). Em 1993, o relatório final foi publicado, De la Locura a la Esperanza e, cinco dias depois, foi editada a “Ley de Amnistía General para la Consolidación de la Paz” (http://www.asamblea.gob.sv/eparlamento/indice-legislativo/buscador-de-documentos-legislativos/ley-de-amnistia-general-para-la-consolidacion-de-la-paz/) para impedir a responsabilização dos autores de graves violações de direitos humanos, Essa lei ampliou os termos da anistia da “Ley de Reconciliación Nacional” (http://www.asamblea.gob.sv/eparlamento/indice-legislativo/buscador-de-documentos-legislativos/ley-de-reconciliacion-nacional/), do ano anterior.
Entre 1980 e 1992, El Salvador viveu o conflito entre a FLMN e as Forças Armadas, com aproximadamente setenta e cinco mil mortos. Como no Brasil, a Corte Interamericana considerou a lei de anistia de El Salvador inválida diante da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no Caso Masacres de El Mozote y lugares aledaños vs. El Salvador, julgado em 25 de outubro de 2012. Tratou-se de um massacre de camponeses pelas Forças Armadas, perpetrado entre 11 e 13 de outubro de 1981, e que o Estado durante anos negou e tentou ocultar. Mais de trinta anos após o massacre, a decisão da Corte Interamericana incluiu a questão da memória do conflito, que foi contemplado pela Comissão da Verdade de El Salvador, e da necessidade de promoção de uma cultura de paz e defesa dos direitos humanos. Destaco estes pontos resolutivos:


(ix) publicar la Sentencia; (x) realizar un audiovisual documental sobre los graves hechos cometidos en las masacres de El Mozote y lugares aledaños; (xi) implementar un programa o curso permanente y obligatorio sobre derechos humanos, incluyendo la perspectiva de género y niñez, dirigido a todos los niveles jerárquicos de la Fuerza Armada de la República de El Salvador;
 
Trata-se de medidas de memória e voltadas para a não repetição de massacres. A Comissão Interamericana, desde os anos 1990, havia produzido informes sobre a invalidade da lei de anistia desse país, que se manteve sempre comrpometido com a impunidade. Santiago Durón pôde escrever em 2007 que “El Salvador es el país donde se registra el menor cumplimiento de las recomendaciones de la CIDH.” (em Víctimas sin mordaza. El impacto del Sistema Interamericano en la Justicia Transicional em Latinoamérica: los casos de Argentina Guatemala, El Salvador y Perú). Esse país já tinha sido condenado em casos de crianças que foram alvo de desaparecimentos forçados pelo Exército, o Caso de las Hermanas Serrano Cruz Vs. El Salvador (sentença de 1o. de março de 2005, em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_120_esp.pdf) e o Caso Contreras y Otros Vs. El Salvador (desaparecimento de outras crianças, Ana Julia Mejía Ramírez, Carmelina Mejía Ramírez, Gregoria Herminia Contreras, Julia Inés Contreras, Serapio Cristian Contreras y José Rubén Rivera Rivera, sentença de 31 de agosto de 2011).
Em 23 de fevereiro de 2012, após campanha promovida pelo Center for Justice and Accountability, o antigo Ministro da Defesa de El Salvador, General Vides Santiago, foi deportado dos Estados Unidos em razão de torturas cometidas contra salvadorenhos, o assassinato de quatro religiosas estadunideneses e outros crimes (http://www.cja.org/section.php?id=548). A Anistia Internacional viu nessa deportação uma “oportunidad al Estado salvadoreño para cumplir con su obligación de investigar los casos de violaciones graves de derechos humanos perpetradas durante el conflicto armado.” (El Salvador: Que no haya amnistía para las violaciones de derechos humanos, 15 abril de 2015, https://www.es.amnesty.org/noticias/noticias/articulo/el-salvador-que-no-haya-amnistia-para-las-violaciones-de-derechos-humanos/).
Em 2013, a Corte Suprema daquele país aceitou ação de inconstitucionalidade contra aquela lei. Cito o informe da Comissão Interamericana:


Al respecto, el Procurador para la Defensa de los Derechos Humanos expresó que “dicha Ley supone un incumplimiento al deber indelegable del Estado de El Salvador de investigar graves violaciones a los derechos humanos perpetradas durante el conflicto armado interno, lo que deviene también en una vulneración de la Constitución de la República, principalmente de los artículos 1 y 2 que consagran la dignidad humana, los derechos fundamentales de las personas y la obligación estatal de protección a los mismos. Los Acuerdos de Paz de El Salvador en ningún caso previeron una amnistía de tales características, por el contrario, tales Acuerdos establecieron la creación de una Comisión de la Verdad y consagraron en el Capítulo II de los Acuerdos de Chapultepec el principio de superación de la impunidad, el cual preveía juicios ejemplarizantes contra los responsables de graves violaciones de los derechos humanos de ambos bandos” (“Derecho a la verdad en América”, de 13 de agosto de 2014, OEA/Ser.L/V/II.152, p. 252)
 
Em 16 de janeiro de 2016, a Anistia Internacional, com “El Salvador debe abolir ley de Amnistía y enfrentar sangriento pasado” (https://www.es.amnesty.org/noticias/noticias/articulo/el-salvador-debe-abolir-ley-de-amnistia-y-enfrentar-sangriento-pasado/), reiterou a exigência de direito internacional de que “Las autoridades Salvadoreñas deben abolir la ley de Amnistía y llevar a la justicia a los responsables de las ejecuciones, torturas y desapariciones forzadas que tuvieron lugar durante el brutal conflicto armado o se arriesgan a convertirse en cómplices de aquellos crímenes”.
Se a impunidade lembra o Brasil, o fato de ela só ter sido formalizada depois do relatório da Comissão da Verdade é um elemento que diferencia El Salvador do caso brasileiro. Aqui, a Comissão da Verdade foi muito tardia.


Outro caso bem diferente do Brasil é o da Colômbia, com seus conflitos internos de décadas, que gerou uma verdadeira diáspora. A lei de criação da Comissão Nacional de Reparação e Conciliação, da Colômbia, é de 2005. Nesse país, foi criado um Centro de Memória Histórica com base na Lei de Vítimas e Restituição de Terras, de 2011.
Não há nada de parecido no direito brasileiro. Desde o artigo 1o, ela se anuncia como um conjunto de medidas de reparação “dentro de un marco de justicia transicional, que posibiliten hacer efectivo el goce de sus derechos a la verdad, la justicia y la reparación con garantía de no repetición, de modo que se reconozca su condición de víctimas y se dignifique a través de la materialización de sus derechos constitucionales”. Há normas específicas para os povos indígenas e as comunidades afrocolombianas, que deverão ser consultados previamente “a fin de respetar sus usos y costumbres, así como sus derechos colectivos” (art. 2o). O artigo 3o, na caracterização das vítimas, inclui os casais de mesmo sexo.
A lei foi criticada; a Anistia Internacional apontou “los obstáculos que las víctimas deben superar para obtener las reparaciones, el complejo proceso para identificar las tierras apropiadas indebidamente, las disposiciones que podrían conllevar la legitimación de la tenencia de tierras despojadas y el apoyo inadecuado que se da a las víctimas que regresan a sus tierras.” (Colombia: La Ley de Vítimas y de Restitución de Tierras: Análisis de Amnistía Internacional, 2012, AMR 23/018/2012).
Os processos começam a acontecer, tendo as leis de anistia sido declaradas inconstitucionais. Cito o informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:


157. […] las declaraciones hechas por miembros desmovilizados revelaron la existencia de acuerdos entre grupos paramilitares y ciertos miembros del Congreso, funcionarios públicos, miembros del Ejército, de la Policía y de entidades privadas, consecuencia de lo cual hasta agosto de 2012, más de 50 ex congresistas han sido condenados por la Corte Suprema, y tres senadores y un gobernador fueron condenados por asesinato, desapariciones forzosas, secuestro y tortura.
158. En cuanto a los actos atribuibles a oficiales del Ejército, se ha indicado que 207 miembros de las fuerzas armadas han sido condenados por asesinatos de civiles, con sentencias que van de 9 a 51 años de cárcel. Asimismo, existen 27 condenas por complicidad y encubrimiento del asesinato de civiles, con sentencias de entre 2 y 6 años de cárcel. La Unidad de DDHH y DIH del Estado está investigando 1669 casos de ejecuciones extrajudiciales de civiles atribuidas a las fuerzas del ejército y presentadas como muertes en combate, en las que el número de víctimas podría llegar a 2896.
159. Respecto a las leyes de amnistía, la Corte Constitucional de ese país señaló que “figuras como las leyes de punto final que impiden el acceso a la justicia, las amnistías en blanco para cualquier delito, las auto amnistías (es decir, los beneficios penales que los detentadores legítimos o ilegítimos del poder se conceden a sí mismos y a quienes fueron cómplices de los delitos cometidos), o cualquiera otra modalidad que tenga como propósito impedir a las víctimas un recurso judicial efectivo para hacer valer sus derechos, se han considerado violatorias del deber internacional de los Estados de proveer recursos judiciales para la protección de los derechos humanos”. (Derecho a la verdad en América, de 13 de agosto de 2014, OEA/Ser.L/V/II.152, p. 90)



Se este quadro mostra-se modesto em relação à Argentina, ele supera em muito, em termos de cumprimento dos padrões internacionais da justiça de transição, El Salvador (país em que a Comissão da Verdade atribuiu apenas 5% das violações de direitos humanos à FMLN – desmascarando o discurso oficial que demonizava a guerrilha) e o Brasil.
A interessante tese de Delphine Lecombe, “Nous sommes tous de victimes": La diffusion de la justice transitionnelle en Colombie (Nanterre: Institut Universitaire Varenne, 2014), aborda o período imediatamente anterior a essa lei. Identificando as ambiguidades da justiça de transição, estruturada como um “consenso ambíguo”, ela mostra que a caracterização de vítima, no contexto da Colômbia, tem a finalidade de desconstruir as suspeitas que recaem sobre os que sofreram ataques de paramilitares e de agentes do Estado de serem próximos da guerrilha e, por isso, terem “merecido” a agressão.
Para Lecombe, no entanto, o caso da Colômbia é um caso de “domesticação da justiça de transição”, e não um exemplo de “cascata da justiça” segundo Kathryn Sikkink, tendo em vista a capacidade do Estado colombiano de “impor suas apropriações [da justiça de transição] à comunidade internacional e a institucionalizar um setor de defesa dos direitos humanos e da causa das vítimas”, cooptando figuras da sociedade civil identificadas a essas causas.
Dessa forma, “a promoção do debate a respeito das memórias dos conflitos” teria sido capturada pelo governo nacional.



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