Quando Schönberg morreu, estava lá o então enfant terrible francês para dizer que Schönberg realmente estava morto (texto publicado em 1952, recolhido nos Apontamentos de aprendiz, publicados no Brasil pela Perspectiva)... E também propor a superação tanto desse compositor (para ele, pouco avançado no elemento rítmico) quanto de Stravinsky (que seria conservador no plano da harmonia), bem como de Messiaen, de quem foi aluno, no caminho do serialismo integral.
Ele ficará como compositor? Creio que sim, porém não com a dimensão de Schönberg e de Stravinsky... Sugiro, para quem o estiver descobrindo, que ouça, em homenagem a Boulez, a que ele fez para Bruno Maderna, um impressionante Ritual fúnebre: https://www.youtube.com/watch?v=-k7EXNZqIUg
Vi, em jornal de São Paulo, Gilberto Mendes ser contestado em seu domínio da técnica musical, crítica que jamais se faria a Boulez. E também sobre a permanência de sua obra, que tinha uma dimensão performática que a torna mais aparentada, por exemplo, à imaginação artística de Cage, que chega à "negação da necessidade de compor" (cito Paul Griffiths em Modern Music: A concise history) do que com o supertécnico Boulez, que pode incorporar o acaso e a abertura da estrutura musical (como em Pli selon Pli e na terceira Sonata para piano), mas não a ponto de questionar radicalmente o papel de compositor. Há um maître por trás do marteau.
Ademais, só um brasileiro ousaria a Santos Football Music: https://www.youtube.com/watch?v=a_P_USxgGFM ; vejam que a matéria é brasileira, mas, por causa da forma, os compositores nacionalistas de que os nomes da Música Nova divergiram jamais criaram coisas assim. Compreendo perfeitamente que esse happening choque as pessoas mais presas a demarcações de gênero.
Em uma entrevista no sítio da Cité de la Musique/ Philharmonie (vejam na ligação a linha biográfica de Boulez) Boulez trata, na primeira parte, de Messiaen, de quem foi aluno, e de sua própria experiência como professor. Ele afirma que não é possível ensinar a compor (salvo a si mesmo); o que se pode ensinar é a análise musical:
[...] há certos limites para o professor de composição. Eu comparo com um choque, em geral; o professor de composição é um tipo de detonador; mas, se não há matéria, gente que possa detonar, o choque não existe. Mas, do outro lado, se não há detonador, você não sabe no que vai se tornar, o que você é, e nesse caso é bem mais difícil, bem mais longo, e, em alguns casos, bem mais incerto. Portanto, para mim a composição é um choque, em todo caso.
Os escritos de Boulez ainda jovem são um exemplo clássico de como a vanguarda constrói um tribunal da história para entronizar-se e, desse cimo, escolher o caminho do futuro. Por vezes, o trono é muito baixo, não permite avaliar bem o espaço, e o futuro acaba escolhendo outros sentidos. Para Boulez, esse futuro viria principalmente a partir de Webern, cuja obra completa ele gravou, como maestro, pelo menos duas vezes.
Boulez, como maestro, acabou regendo parte da música que criticou, às vezes duramente, quando mais jovem. No entanto, do meu estreito ponto de vista de mero ouvinte, creio que não há tanta divergência entre Boulez como teórico, como compositor, como administrador e como regente: em todas essas atividades, seu compromisso era com a música do século XX. Ele regeu bastante Wagner, sim, mas sem esse compositor o século teria sido outro; e poucas coisas são tão permanentemente atuais quanto a montagem e a interpretação do Anel do Nibelungo que ele e Patrice Chéreau fizeram em Bayreuth no centenário da obra, em 1976. Foi um dos marcos de montagem operística do século XX, e com uma obra do XIX.
Os teatros de ópera são, em geral, espaço de conservadorismo militante, o que gerou a frase famosa, uma célebre brincadeira, de que eles deveriam ser queimados. Nesse gênero, para que ele nunca compôs, o maestro Boulez teve outro grande triunfo que marcou o século XX: a montagem integral de Lulu, obra póstuma de Alban Berg, que Friedrich Cerha completou (antes disso, era apresentada sem o terceiro e último ato). A montagem de 1979 na Ópera de Paris foi outra parceria com Chéreau.
Mozart e Beethoven foram exceções muito pontuais na regência de Boulez. Lembro de Otto Klemperer, um grande maestro que tinha ambições como compositor, pasmo porque Boulez não tinha interesse nem pelo Requiem de Verdi! A propósito, fiquei muito surpreso com a declaração de Pedro Amaral, em matéria do jornal O Público, de que Boulez passou a ter interesse pelas últimas obras de Verdi, mas já estava velho demais para regê-las.
Ao contrário de Klemperer, suas escolhas como regente eram geralmente ditadas por um compromisso com o que ele julgava que era a atualidade musical. Como administrador de instituições musicais, suas escolhas foram guiadas pelos mesmo princípios, o que levou a compositores tão diferentes quanto Dutilleux (já falecido) e Michel Legrand a criticá-lo por sectário, o que ele certamente era. No artigo que citei, ele assimila a vanguarda ao bom senso, o que não é exatamente uma postura vanguardista, nem faz muito sentido: "Ao declarar que, depois da descoberta dos vienenses, todo compositor que se situa fora das pesquisas seriais é inútil, não pretendemos manifestar um demonismo eufórico; antes, sim, demonstrar o mais banal bom senso".
No ano passado, Legrand o chamou de fascista, mas Boulez já estava doente demais para responder. Com o tempo, algumas dessas rivalidades se dissolvem. Dusapin, em matéria do Libération, aproximou Dutilleux e Boulez...
Alguns jornalistas, vejo, o chamam nas notícias necrológicas de "músico clássico". Talvez não gostasse da alcunha. Em um texto de Foucault, "Pierre Boulez, l'écran traversé", publicado em 1982 e incluído na coletânea Dits et Écrits, temos uma importante análise da relação de Boulez com a história da música:
Boulez detestava a atitude que escolhe no passado um módulo fixo e o procura variar por meio da música atual: "atitude classicizante", como ele dizia; ele igualmente detestava a "atitude arcaizante" que toma a música atual como referência e trata de nela incorporar a juventude artificial de elementos passados. Creio que seu objetivo, nessa atenção à história, era fazer de forma que nada ficasse fixo, nem o passado nem o presente. Eles os queria todos os dois em perpétuo movimento um em relação ao outro [...]Obras como Dérive 2, uma de suas últimas composições, tentam partir desse perpétuo movimento e oferecê-lo ao ouvinte - e por isso são inacessíveis para as plateias distraídas, que buscam descansar encontrando sempre a reiteração auditiva, ou seja, que buscam não ouvir. Vejam esta interpretação regida por Daniel Barenboim, com integrantes da Orquestra West-Eastern Divan.
Boulez musicou Mallarmé, Gilberto Mendes musicou os poetas do movimento concretista. Ele via como uma retrocesso em sua escrita musical o Moteto em Ré Menor, "Beba Coca-Cola", escrito a partir do célebre poema de Décio Pignatari, e assim explicava seu sucesso. Não há problema algum em gostar dele, porém; vejam a interpretação do Coro da Osesp, regido por Naomi Munakata, no filme A odisseia musical de Gilberto Mendes: https://www.youtube.com/watch?v=6DKRtGjIaD4
A "popularidade" é um problema? Mais de uma vez, Gilberto Mendes disse que não. Por exemplo, nesta entrevista que concedeu aos 91 anos à Revista Brasileira de Música da UFRJ, fez esta autocrítica, extensiva a quase todo o grupo da Música Nova:
O grande Beethoven (1770-1827), Brahms (1833-1897), Bach (1685-1750) sempre foram admirados por todos. Essa “nossa” música não chegou às pessoas, temos que aceitar isso, apenas um compositor ou outro; ela ficou afastada e esse foi o pecado básico: se afastar totalmente da comunicação e, mais ainda, eliminar totalmente a emoção musical. Não vou dizer que não tem nada de emoção, mas é uma emoção extremamente particularizada, apenas para quem está intimamente dentro, não tem aquela emoção que vem do geral, ela não se conecta em ponto algum com o popular e a música do passado sempre se conectou com o popular, mesmo porque a música popular e a música erudita, segundo Bartók (1881-1945) são uma só.Em Boulez também há essa, digamos, desconexão. Em uma conversação com Foucault, publicada em 1983, "La musique contemporaine et le public", Boulez escreveu que "a evolução correu no sentido de uma renovação sempre mais radical tanto na forma das obras quanto em sua linguagem. As obras tinham a tendência de se tornar eventos singulares que, realmente, têm seus antecedentes, mas são irredutíveis a qualquer esquema condutor admitido, a priori, por todos, o que cria, certamente, uma desvantagem para a compreensão imediata".
Se se tratava de um desafio recompensador para o público, a exigência era maior ainda para o criador, e quase esterilizadora. Boulez passou a compor cada vez menos e a dedicar mais tempo à revisão de suas obras (a notável reportagem do New York Times sobre a morte do compositor, assinada por Paul Griffiths, não deixa de lembrar disso).
Boulez foi um regente excepcional, porém o "homem de gelo", como foi chamado nos EUA, não era muito compatível com partituras que exigiam mais engajamento emocional do que frieza analítica: por exemplo, acho fraca sua gravação de Das Lied von der Erde, de Mahler, com Violeta Urmana, por causa da gélida direção. Com Webern, era outra coisa e ele podia ser bom em compositores distantes de seu estilo: por exemplo, no Concerto de câmara para cravo e outros instrumentos de Manuel de Falla.
O caráter de homem de gelo combinava, talvez, com a reserva sobre sua vida pessoal, necessária em um meio ainda ostensivamente dominado por homens brancos e heterossexuais. Lembro do ambíguo comentário no Diário de Robert Craft, um rival: "A natureza sexual de Boulez ou é neutra, ou muito bem escondida". Mais recentemente, recordo de uma ridícula conta falsa homofóbica no twitter.
Isso não impediu que acumulasse poder na condição de maestro, e sua impressionante carreira, especialmente nos EUA, habilitou-o a voltar para a França em uma posição de força: o IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música), o Ensemble Intercontemporain (hoje dirigido por Matthias Pintscher), a Philharmonie, por exemplo, devem-se a ele. Se ele tivesse trabalhado apenas como compositor, certamente não teria atingido toda essa influência sobre as instituições francesas.
Gilberto Mendes não fez esse tipo de carreira e nunca teve essa influência no Brasil. Foi professor, o que é motivo de opróbrio no país. No entanto, o Festival Música Nova conseguiu resistir, buscando criar novas plateias. Pois a ensurdecedora reiteração da música industrializada cria não-ouvintes ativos. Numa entrevista de 1998, perguntam-lhe sobre "É o Tchan". Ela foi recolhida no livro Gilberto Mendes da série Encontros da editora Azougue, organizado por Marcelo Ariel no ano passado:
É uma avacalhação, uma baixaria, não tem qualidade nenhuma, a música popular não tem como se salvar. Outro dia vi no canal alemão da TV a cabo um programa com a Emsemble Moderne, que já esteve aqui no Festival. Estava lá na Deustch Veller, aqui ninguém sabe o que é, muito menos o Beto Mansur e essa turma que está aí no poder. Não sabem do que se trata e nem se preocupam em saber. Eles gostam de Chitãozinho e Xororó, que não é música caipira. É uma música inventada pela indústria cultural, com um pouco do estilo de Roberto Carlos, aquela frescurada toda. A [sic] gravadoras estão interessadas em lixo que venda. O Caetano pegou uma época boa, se fosse hoje, ele não conseguia gravar. ["Ensemble" e "Deutsche Welle"; o livro não teve revisão]
É interessante a afirmação de que, se Caetano Veloso tivesse surgido no fim do século passado, não teria encontrado espaço na indústria fonográfica. Essa indústria, porém, está em crise, e os músicos de hoje lutam em outros espaços de veiculação de música, o que também é difícil.
Eu acrescentaria que boa parte dessa música de que ele não gostava (embora apreciasse bastante música popular; no lançamento paulista do livro da Azougue, ele cantou jazz dos EUA; e peças como Rastro harmônico não negam o diálogo com essa outra música) não apresentava o engajamento na linguagem musical, sendo programaticamente repetitiva, tampouco o engajamento na política, pois lucrativa para o poder.
Os dois engajamentos foram decisivos na obra de Gilberto Mendes, que é lembrado por seu compromisso socialista; nesse campo, o que dizer de Boulez, além de sua relação com a história da música, como bem delimitou Foucault? Como ele se relacionava com a história tout court?
Se ele não escreveu obras engajadas da forma que o compositor brasileiro ousou, tinha também posições políticas. A França não tem de fato uma grande tradição democrática, e imperialismo não combina com democracia em parte alguma. Durante a guerra colonialista para manter o domínio sobre a Argélia, Boulez foi signatário de um dos manifestos contra essa política francesa e, por isso, foi impedido de retornar a seu próprio país.
O Brasil também teve medidas de banimento, mas durante a ditadura militar...
Termino com esta observação, em homenagem a esse aspecto não muito conhecido do músico. Vejam que jornal foi destacar a política no necrológio de Boulez (não foi Le Monde): http://www.elmoudjahid.com/fr/actualites/88905
obrigado, pádua, pelo texto!
ResponderExcluirObrigado a você.
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