O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Desarquivando o Brasil XLVII: Citações desconcertantes

De 1965 a 1985, alguns exemplos de como certos nomes que o Estado brasileiro elevou foram capazes de sínteses inesperadas que definiram um momento político da pobre nação.

"A ninguém, satisfeito atualmente com atual situação nacional ou fazendo restrições a ela, deve deixar de ser grata a idéia de que o regime democrático volta a vigorar em sua plenitude num país que há bem poucos meses esteve à beira do caos." "Às urnas", Editorial da Folha de S.Paulo, 19 de março de 1965.
Neste caso, temos a negação da realidade como um dos recursos argumentativos mais comuns para justificar o poder.
"A liberdade de associação é plenamente assegurada, mas não é possível que se pretenda restaurar o funcionamento de uma associação como a UNE, que teve o seu funcionamento proibido" Gama e Silva, Ministro da Justiça. Diário da Tarde, 26 de agosto de 1967.
Exemplo típico do arrazoado jurídico autoritário: enunciar um princípio (liberdade de associação) e fingir que ele está plenamente assegurado por meio de sua violação (a proibição da UNE).
"Não há presos políticos no Brasil. Ninguém é detido por ser contrário à política do governo. Os que se acham presos são terroristas, cujo número, como assinalou o general Muricy, não ultrapassa a 500. O tratamento que recebem esses presos não fere os princípios da humanidade" O Ministro da Justiça e seu chefe de gabinete (Alfredo Buzaid e Manoel Gonçalves Ferreira Filho), em nome do governo brasileiro. Jornal da Tarde, 23 de julho de 1970.
Mais um exemplo notável de negação da realidade, esporte em que muitos juristas são recordistas.

"Hoje, repito, todos os Estados adotam a forma jurídica para exprimir os seus comandos aos cidadãos. Assim, se não se levar em conta o conteúdo desses comandos, tanto são estado de direito os Estados Unidos ou França, como a União Soviética de ontem, a Alemanha nazista ou a Itália fascista." Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em entrevista publicada no Jornal do Brasil, 29 de maio de 1978.
Exemplo de formalismo jurídico levado ao paroxismo (outra forma de negar a realidade), combinado com o desconhecimento das peculiaridades do direito no totalitarismo.
"A vitória da ARENA, dadas as garantias já restituídas ao Poder Legislativo, e como resultado dos reclamos gerais da opinião pública, não significará, portanto,a consagração do statu quo, mas antes o aperfeiçoamento de nosso sistema democrático, sem saltos bruscos e abstrações infecundas." Miguel Reale, "Por que votar na ARENA?", Folha de S.Paulo, 12 de novembro de 1978.
Abstração infecunda, no vocabulário desse jurista, como já expliquei em um pequeno artigo, tem o significado de luta pela liberdade.

"[...] sem liberdade o homem é apenas uma aspiração de engordar." José Sarney, "Maranhão reelege Sarney para o Senado", Jornal do Brasil, 18 de novembro de 1978.
Nesses momentos de inspiração, não se pode esquecer de que ele é membro da Academia Brasileira de Letras.

"O inquérito do Riocentro está encerrado. Tentar reabri-lo não consulta os superiores interesses do país. [...]
Pois a democracia não se quer desarmada, nem tampouco se quer a segurança inibida em suas ações preventivas em favor da ordem." Roberto Marinho, "Riocentro", O Globo, 29 de setembro de 1985.
Ameaça velada sob a capa de jornalismo.


No entanto, talvez os carimbos da época, que destaquei abaixo de um documento do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), já desde sua forma cartorial e oficial, definam com mais eloquência o discurso do poder. O hobbesiano lema "Nossa vigilância é sua segurança" e "A Revolução de 64 é irreversível e consolidará a Democracia no Brasil", em que a negação da realidade irrompe desde a segunda palavra, parecem-me o horizonte estilístico e político almejados pelas frases que antes destaquei.


A metamorfose em carimbo oficial é aquela almejada pelos homens do poder? Se assim for, é mesmo revestido de uma grande dignidade o inseto de Kafka.



quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"Junco", de Nuno Ramos

Já escrevi nota anterior que anunciava um texto que me encomendaram sobre Nuno Ramos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/08/nuno-ramos-e-o-trabalho-do-informe.html
O livro ainda não saiu e o escritor lançou novo livro, Junco. Por esse motivo, fiz este breve adendo ao texto, que deve ser publicado em 2013:



No ano seguinte a este artigo ter sido terminado, Nuno Ramos lançou Junco (São Paulo: Iluminuras, 2011), seu primeiro livro de poesia todo composto em versos. As imagens das águas e da praia e dos fragmentos poderiam levar a crer que o escritor tivesse desejado criar um The Waste Land particular ("These fragments I have shored against my ruins"). No entanto, a realização literária afasta o paralelo.
Se O mau vidraceiro já mostrava uma dissolução da complexidade de Ó, o livro novo decepciona por levar adiante essa facilitação. A antes complexa interação entre texto e imagem cedeu lugar a écfrases simples. Alguns poemas parecem meras ilustrações das foto reproduzidas. Certos momentos assemelham-se a cópias dulcificadas de Manoel de Barros ("aqui dois pardais se amaram/ antes da minha chegada", p. 23; "Mas já velho e navegado/ desejoso apenas de contar/ os grãos de chão mais reles", p. 111). O espírito da autoajuda paira perigosamente sobre "O chão é a grande pergunta/ haver chão/ se tudo voa/ e quer cantar." (p. 53).
Reiterações dos outros livros podem ser identificadas, com os corvos (“os alicates das mandíbulas/ em pequenas bicadas”, p. 39), os urubus, em previsíveis aliterações com u (“Procuro no núcleo/ azul o útero exato/ que exala essa fornalha/ até mim// o último urubu do mundo.”, p. 51), os cães (“O cão, velho cão/ é tempo/ intervalo/ entre duas chuvas.”, p. 73), e momentos que parecem esboços para Ó (“Um poema se fez!, aviso/ num pito/ voltem à praia onde juncos/ moles, brancos/ aspargos sobre carvalhos mortos/ boiam formando palavras”, p. 89; “Dizemos ó/ e nosso corpo/ expande a baía”, p. 102-3). Não há novos territórios conquistados.
O último poema emprega trechos de “A máquina do mundo” de Carlos Drummond de Andrade. Seu interesse está em revelar as diferenças entre os dois escritores. A “máquina”, em Drummond, está fora do sujeito: ele a encontra na estrada pedregosa de Minas, mas recusa olhar “a estranha ordem geométrica de tudo” e segue adiante. No poema de Nuno Ramos, o sujeito não só não deixa de olhar os “fantasmas”, “texturas, corpos sólidos” (p. 114), como essas imagens são dadas pela lágrima dele mesmo, que as reflete num “espelho enciclopédico” (p. 115) e acaba por cair e se misturar às ondas na “praia, praia, praia, praia” (o verso final, p. 115). A autoconfiança do poeta Nuno Ramos chega ao ápice nesse ponto. O gesto de baixar o rosto, em Drummond, que vem no momento de recusa à revelação da máquina, é o mesmo gesto que permite à lágrima onisciente no poema de Nuno Ramos cair e revelar-se “numa glória transparente” (p. 114).
Há problemas de versificação. A forma, em geral, não é feliz, e certas tentativas de quebrar os versos são canhestras: “Rep/ ara/ nada para/ até a casca/ das árvores e a pedra”, p. 81). A rima, quando aparece, também é primária (“O chão sob a cal/ tem a língua de sal.// A enguia de areia/ presa na rede// seca de sede.”, p. 31; “Por isso durmo e não pergunto/ junto aos juncos.”, p. 11). Alguns poemas, porém, salvam-se do naufrágio involuntário, como o 17º (“Ama, disse meu olho/ os dois íntimos contrários/ areia e mar”).
Note-se também que a modesta qualidade gráfica desta edição da Iluminuras prejudica bastante o livro, pois as imagens que os poemas espelham não são bem reproduzidas.
Parece-me significativo que, ao tentar deixar bem nítida a marca de gênero, escrevendo em verso, Nuno Ramos tenha feito seu livro mais fraco. Sua força, que é a do informe, perde-se. Alberto Tassinari, em texto publicado numa obra essencial para a compreensão do artista plástico Nuno Ramos, escreveu, contrastando-o com Hélio Oiticica, que “Em Nuno, ao contrário, não há um teste dos limites da arte além de cada gênero.” 18 O comentário não é verdadeiro para a literatura.


18 TASSINARI, Alberto. O caminho dos limites. Nuno Ramos. Org. de Ricardo Sardenberg. Rio de Janeiro: Cobogó, p. 21.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Cidade bloqueada: Ruínas de Janeiro


O Rio de Janeiro recebeu em 17 de dezembro deste ano o título de patrimônio mundial da Unesco na categoria da paisagem cultural urbana, e se tornou a primeira cidade do mundo com essa distinção: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=17097&sigla=Noticia&retorno=detalheNoticia
Distinção? Uma responsabilidade, a que o Município certamente não fará jus, pelo menos ainda dentro dos próximos quatro anos.
O IPHAN, que divulga a notícia é um exemplo das Ruínas de Janeiro: o palácio Gustavo Capanema chegou a ter seus elevadores interditados neste ano: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=16504&sigla=Noticia&retorno=detalheNoticia 
E a Biblioteca Nacional está exposta aos cupins e ao incêndio: http://oglobo.globo.com/rio/funcionarios-da-biblioteca-nacional-farao-protesto-no-centro-contra-condicoes-precarias-7094884
Não é apenas no plano das instituições federais que o descalabro reina na "paisagem cultural urbana". Em 2010, escrevi uma nota neste blogue sobre as más condições de conservação dos painéis do Profeta Gentileza, no Rio de Janeiro: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/09/gentileza-e-rio-de-janeiro.html

Fotografei de novo alguns dos painéis na véspera do primeiro turno das eleições de 2012. Eles estão melhores, mas não os arredores: o entorno continua sujo e descuidado, apresentando ao turista que chega na Rodoviária Novo Rio o que ele terá pela frente.
Os candidatos em que votei, por sinal, tinham compromissos firmes e explícitos com a preservação do meio ambiente natural e humano. Um deles foi Marcelo Freixo, do PSOL.
Entre os cinquenta motivos para votar em Freixo, lemos o de Cristiane Fontes, que é o da sustentabilidade: http://fechocomfreixo.com/2012/09/02/motivo-35/
Freixo sempre se comprometeu com a economia limpa, ao contrário de ex-ambientalistas como o atual secretário estadual de meio-ambiente (e deputado estadual eleito) Carlos Minc (suas convicções ecológicas não sobreviveram ao governismo e aos estímulos do capital), que chegou a enviar para a ALERJ projeto para flexibilizar toda a legislação ambiental estadual em nome de novos investimentos. Vejam este discurso de Freixo demonstrando que o governo do Estado está "na contramão do mundo, na contramão do planeta", e argumentando que o fato de Minc ter enviado novo projeto contrário à lei ambiental de que ele mesmo tinha sido autor pode ser o sinal de que não foi a lei que melhorou, mas o deputado que piorou... http://www.youtube.com/watch?v=67MtueKdmlU
Trata-se de um projeto enviado às pressas, para ser aprovado no apagar das luzes do ano legislativo. Freixo denunciou o fato. Ademais, ele tem se manifestado contra a política autoritária de remoções que tem imperado na cidade neste período de Paes Cabralina.
Votei, em 2012, na vereadora Sonia Rabello; como em 2008, primeiro ano em que se candidatou, ela se tornou a primeira suplente do PV. Espero que também desta vez consiga chegar à Câmara.
Fui aluno dela no mestrado em direito da cidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e fui seu assessor na prefeitura, há mais de dez anos. Ficou dessa época uma admiração não só pelo seu grande saber jurídico como pelo seu espírito público. Ela, que foi procuradora-chefe e diretora de patrimônio imaterial do IPHAN, além de procuradora-geral do município, e segue como professora titular de direito administrativo da UERJ, além de lecionar direito público urbano, é um exemplo  de que o advogado não pode encastelar-se nem teoricamente (daí seu diálogo com educadores, arquitetos e urbanistas) nem socialmente, o que a motivou a entrar na política.
Tempos atrás, fiz esta entrevista com ela: http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=93400502 ou http://soniarabello.com.br/biblioteca/a_clareza_das_regras_juridicas_e_o_exercicio_da_liberdade.pdf
Nas respostas, a professora reitera que o direito não é monopólio dos juristas e que se deve trabalhar pela "apreensão coletiva" das regras jurídicas, para que o direito deixe de ser um privilégio.
Outras ideias imperam nas Ruínas do Ano Inteiro, no entanto. A privatização da cidade, regra de ouro da Paes Cabralina, isto é, a apropriação do que é comum por interesses privados, tem feito que as audiências públicas existam só como formalidade. Vejam este discurso de Freixo a respeito do aventado campo de golfe em terreno juridicamente contestado, da descaracterização do Maracanã e da destruição da Escola Friedenreich e do Museu do Índio em nome da eikização da cidade: http://www.youtube.com/watch?v=6qR5cdpXoJ0
Sonia Rabello, que também se opôs a esse tipo de Paes, bem escreveu que a privatização de bens públicos está no cerne da corrupção no Brasil: http://www.soniarabello.com.br/parque-do-flamengo-e-o-maracana-patrimonio-publico-que-se-esvai/
Projetos de última hora, votados às escondidas da população, não faltaram também na Gaiola Dourada (também conhecida como Câmara dos Vereadores). "Grilagem institucional" foi a alcunha que Sonia Rabello concedeu ao impressionante presente que a Câmara concedeu à especulação imobiliária, às ocultas do público, no apagar das luzes deste parlamento: http://www.soniarabello.com.br/saqueando-o-rio-institucionalmente/
A ainda vereadora conta também da vergonhosa fuga de vários de seus colegas no momento da votação do Museu do Índio:
http://www.soniarabello.com.br/tarde-negra-no-parlamento-carioca/

Um dos vereadores fujões foi apanhado bem perto da Câmara, bebendo na Cinelândia (tal é a paisagem cultural do Rio de Janeiro de hoje): http://www.jb.com.br/rio/noticias/2012/12/20/sessao-da-camara-sobre-antigo-museu-do-indio-termina-em-confusao-na-rua/.
Esse nobre legislador, que se evadiu da atividade legislativa, foi reeleito, o que bem condiz com o Rio atual: http://www.eleicoes2012.info/luiz-carlos-ramos-do-chapeu-27027/
No entanto, como há aqueles que se revoltam contra o estado de coisas (o vereador foi interpelado), é possível que renasça algo das Ruínas de Janeiro, que se fortaleça uma verdadeira luta que vença a Paes Cabralina, que é nada menos do que um estado de guerra contra o urbano. Algo que o Profeta Gentileza, nos painéis, já caracterizava como uma praga que cega, mata e conduz.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Desarquivando o Brasil XLVI: A ditadura nas ruas da USP

O professor de ciência política Raphael Neves (@politikaetc) chamou a atenção no twitter para a moção de apoio da Congregação da FFLCH/USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) à criação de uma comissão da verdade na Universidade de São Paulo: http://twitpic.com/bnf6ft
O presidente da Congregação é ninguém menos do que Sérgio Adorno, um dos principais pesquisadores brasileiros na área de violência e direitos humanos. Sua posição em prol da responsabilização dos agentes de abusos contra esses direitos é bem conhecida: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-01/para-especialistas-brasil-precisa-responsabilizar-torturadores-para-evitar-repeticao-de-atos
O reitor e o Conselho Univeristário faltaram ao ato de entrega das assinaturas pela criação da Comissão da Verdade, em novembro, deixando aproximadamente cem cadeiras vazias: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2012/11/reitoria-falta-a-ato-pela-comissao-da-verdade-na-usp/
Talvez quisessem, dessa forma, homenagear os desaparecidos? Se assim foi, ocorreu um sugestivo happening que pouca gente entendeu...
No entanto, penso que a melhor homenagem, hoje, é outra: fazer-se presente nas campanhas e iniciativas pela memória e a verdade.

Já mencionei neste blogue o problema do expurgo de professores durante a ditadura militar (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/desarquivando-o-brasil-xlii.html) e a vigilância exercida sobre as aulas (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/desarquivando-o-brasil-xxxvi-comissao.html).
Quero agora lembrar de uma Informação de 16 de agosto de 1974, da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura, na época dirigido pelo político e militar Ney Aminthas de Barros Braga, que sucedeu Jarbas Passarinho.
Na administração pública, durante a ditadura militar, proliferaram essas divisões de segurança e informações. O antigo decreto-lei n. 200 de 1967 (art. 29, inciso III) previu que os ministérios civis seriam assessorados por esses órgãos que respondiam ao SNI e ao Conselho de Segurança Nacional. Com o decreto nº 60940 de 1967, as antigas seções de segurança nacional, criadas no governo de Gaspar Dutra, com o decreto-lei nº 9775 de 1946, foram transformadas nas DSI.
A partir de 1970, essas divisões ficaram vinculadas ao SNI e duraram até a extinção desse órgão, no governo Collor, em 1990. O regulamento imposto pelo Decreto nº 37325, desse ano, previa que, por intermédio delas, a administração direta e a indireta se integrariam ao Sistema Nacional de Informações (SISNI). Por conseguinte, não se tratava apenas de  infiltrar a administração pública com espiões oficiais, e sim de subordinar as finalidades da administração à segurança do governo, tornar tal segurança na finalidade principal das instituições públicas. O decreto-lei nº 200 apontava para essa direção.
No documento que aparece na imagem, denuncia-se a formação, nos meios ligados à educação, de uma frente de "propaganda adversa" (isto é, a primeira fase da guerra subversiva, de acordo com a doutrina de segurança nacional, que se daria por meio da contestação dos valores sociais), na qual aparecia o CEBRAP, que continua sendo uma referência para a pesquisa brasileira.
Reclamava-se da venda de livros soviéticos a preços baixos:

Em si, um livro técnico russo pode possuir a mesma isenção e objetividade científica de um livro técnico de outro país qualquer. Somente adquire conotação tendenciosa em decorrência da simpatia filo-comunista que desperta, especialmente, por seu aspecto de preço acessível.
Nem todas editoras de esquerda seguem hoje essa lição. A DSI terminava o documento com uma "apreciação" da conjuntura, cujo início transcrevo:

É verdade que a propaganda adversa interna, estudantil, não é realizada pela massa de alunos e não gera efeitos na classe toda.
Entretanto, convém obsevar que ela é desenvolvida justamente por elementos líderes e sobre eles exerce influência. Sabemos que um líder é mais importante do que muitos elementos amorfos. E, a médio prazo, eles acabam influenciando a massa toda, caso não se tomem medidas oportunas.
Prova do resultado de medidas oportunas encontramo-la em algumas Universidades, onde a vigilância firme e corajosa das respectivas autoridades conseguiu reduzir, ou mesmo extinguir, os processos de propaganda adversa. As próprias autoridades universitárias da USP estão começando a tomar medidas saneadoras, cujos efeitos benéficos já se fazem sentir.

O reitor da época em que as "medidas saneadoras" estavam sendo tomadas era Orlando Marques de Paiva, professor da Veterinária, que acabou dando o nome da rua onde se situa essa faculdade. Entre as razões para merecê-lo, provavelmente está o calamitoso depoimento que deu a comissão especial de inquérito aberta na ALESP em 1977, em razão do controle ideológico sofrido pela USP, relatado em O livro negro da USP. Quem não o leu pode fazê-lo por meio desta ligação: http://www.adusp.org.br/files/cadernos/livronegro.pdf
O reitor, diante dos deputados estaduais, negou que houvesse ingerência dos órgãos de informação sobre a Universidade, tomando para si a autoria das várias arbitrariedades nas contratações. A ADUSP ressaltou nesse livro, com propriedade, o descalabro institucional por que passava a Universidade:

Assim, desconhecendo todas as evidências, contrariando o que é de conhecimento geral de toda a Universidade, o Reitor insiste em negar o controle ideológico exercido sobre o processo de contratações. Nesse processo acaba admitindo o exercício de um arbítrio pessoal absoluto sobre todas as admissões e expõe abertamente o grau de autoritarismo a que se chegou na Universidade. [p. 84]
Simpática matéria do Jornal da USP, da semana de 3 a 9 de junho de 2002, explicou como eram escolhidos os nomes das ruas no campus: "A história contada nas ruas", de Sylvia Miguel: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2002/jusp599/pag12.htm 
Uma passagem, porém, deve ser posta entre parênteses:


Foi em 1969, no auge dos “anos de chumbo”, que o Conselho Universitário decidiu aprovar essa regra. Hoje, a resolução pode parecer um tanto anacrônica ou, talvez, restritiva. Mas há quem diga que foi uma atitude preventiva para evitar que generais “invadissem” o campus por meio de nomenclaturas de ruas. Já imaginou praças e avenidas chamadas general Golbery do Couto e Silva, Nilton Cruz, Costa e Silva...? 

Há várias dessas ruas no país (http://www.correiodeuberlandia.com.br/wp-uploads/2011/11/desvio.jpg). No entanto, a resolução não impediu as deferências à ditadura, uma vez que ela já era homenageada por diversos professores, alunos e funcionários que com ela colaboravam em seu tempo (e talvez ainda agora, se é que há quem esteja a obstruir a criação de uma comissão da verdade na instituição) e pelo antigo reitor que dá nome à rua da faculdade de Veterinária.





segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Desarquivando o Brasil XLV: Perseguidos de ontem e de hoje: As Caravanas da Anistia e as Mães de Maio

Esta nota foi elaborada para o tuitaço #MemoriaDH e #DesarquivandoBR que ocorrerá hoje, a partir das 20:00h, em homenagem ao dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A 66ª Caravana da Anistia ocorreu no Memorial da Resistência, com o presidente da Comissão de Anistia e Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão. Consegui assistir à primeira parte do evento, em que se concedeu postumamente anistia política ao padre José Eduardo Augusti, cuja imagem foi projetada na foto abaixo. Estava previsto que às 13 horas começaria a sessão solene de julgamento da anistia dos militantes da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, mas somente nesse horário acabou a primeira parte, e eu tinha que ir embora.



Gostaria de lembrar que o Sindicato dos Metalúrgicos em São Paulo estava engajado nas lutas de sua época. O ano de 1979, em que houve intervenção no sindicato, foi o da aprovação do projeto governista de anistia, e os metalúrgicos estavam engajados na campanha desde pelo menos o ano anterior. 
Destaco aqui relatório do DEOPS de São Paulo sobre a cerimônia de fundação da seção paulista do Comitê Brasileiro pela Anistia, na Câmara Municipal de São Paulo em 12 de maio de 1978. Além de Ruth Escobar, Franco Montoro, Hélio Bicudo, Mário Simas e outros, falou um representante, não identificado no relatório, dos Metalúrgicos do ABC:




Manoel Fiel Filho, metalúrgico comunista assassinado poucos meses depois de Herzog, foi um dos exemplos. No mesmo dossiê, há uma transcrição da fala, que também deixa de indicar o nome do orador.




Após o orador ter dito que a luta pela anistia pertencia também aos metalúrgicos, lemoseste compromisso:
[...] vamos retomar essa luta, partindo [de] querer uma anistia ampla e irrestrita a todos os companheiros que estão fora do país, que estão presos ou em memória dos que já foram mortos, lutando pela nossa anistia, nós não vamos mais querer que tenhamos companheiros como Manoel Fiel Filho, mortos assassinados quando lutavam por nós [...]
Além de outros metalúrgicos perseguidos, são citados torturados e mortos de outras classes: o jornalista Herzog e o estudante Alexandre Vannucchi Leme. Celso Brambilla, deve-se lembrar, havia sido um dos presos antes da comemoração do primeiro de maio em 1977.

Enfm, tratava-se de uma luta comum. Aqui, pode-se ler a matéria da EBC sobre a últiam edição do ano da Caravana da Anistia: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-12-08/caravana-da-anistia-reconhece-em-sao-paulo-perseguicao-ao-padre-augusti
A matéria do Jornal do Brasil, feita ainda durante os acontecimentos (http://www.jb.com.br/pais/noticias/2012/12/08/caravana-da-anistia-reconhece-em-sao-paulo-perseguicao-ao-padre-augusti/)  deixou de mencionar que Paulo Abrão, de manhã, exibiu e sugeriu fortemente a leitura do livro das Mães de Maio, lançado na última quarta-feira no Sindicato dos Jornalistas, em São Paulo.
Na foto, ele mostra a publicação:




Paulo Abrão ressaltou a continuidade dos abusos contra os direitos humanos da ditadura militar até hoje, e creio que ele tem razão.
Estive no lançamento do Periferia grita: Mães de Maio Mães do Cárcere. Abaixo, vê-se Débora Maria, membro do movimento e também um dos editores do livro, falando nessa ocasião.


O livro é composto de textos variados, de diversos gêneros, e de qualidade também variada. É um documento, porém, e deve ser lido por isso, por testemunhar os assassinatos na periferia, especialmente de jovens negros. Os números são abusivos: "em 2008, por exemplo, o número de homicídios cometidos por policiais supostamente durante confrontos no estado de São Paulo (397) é superior ao número total de  homicídios cometidos por policiais em toda a África do Sul (351), um país com uma taxa de homicídio superior a de São Paulo." (p. 22-23).

A situação se repete neste ano, como alerta o movimento na Carta do Comitê Ampliado contra o Genocídio: http://maesdemaio.blogspot.com.br/2012/11/carta-do-comite-ampliado-contra-o.html

Em razão desta violência, começou um ato, hoje às 17:30h, no vão do MASP.



No livro das Mães de Maio, lemos que "Assim como aconteceu durante a Ditadura Civil-Militar brasileira, e tantas outros episódios violentos cometidos pelo Estado, os Crimes de Maio de 2006 cometidos por agentes policiais também permanecem impunes [...]" (p. 25).
Nessa lacuna da democracia brasileira, temos um dos nós a desatar na justiça de transição.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Universos paralelos da educação VIII: Formação humanística no Direito e Ministro do STF em 3 lições


A impressionante entrevista que Mônica Bergamo fez com o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux (http://www.osconstitucionalistas.com.br/luiz-fux-querem-me-sacanear-o-pau-vai-cantar), publicada no último 2 de dezembro, tão reveladora do que é o Judiciário brasileiro, pareceu-me ecoar a que foi publicada há pouco, também na Folha de S.Paulo, com Ayres Britto, aposentado compulsoriamente quando era presidente daquela corte.
A entrevista de Ayres Britto gerou reações contra o que se caridosamente chamou de "analfabetismo científico" do magistrado (em texto do físico Marco Knobel: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/81335-abuso-quantico-e-pseudociencia.shtml). Mariano Amaro já havia escrito a respeito um "Memorial de Ayres" no mau sentido: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-72/esquina/memorial-de-ayres. Também no caso de Fux, carreirismos à parte na sua busca ecumênica de padrinhos políticos (ele é um homem que bem representa o espírito de seu tempo), temos a puerilidade intelectual, explícita na leitura e estudo de algo como Nietzsche para estressados.
A respeito do nível intelectual não exatamente notável de magistrados no STF, já mencionei aqui e alhures erros primários de história do Brasil (com alta gravidade política e jurídica: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/03/desarquivando-o-brasil-xxviii-anistia.html) e de filosofia do direito (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/08/kelsen-contra-toffoli-e-o-supremo.html).
Pessoas que não conhecem os meios jurídicos poderiam pensar que essa fraqueza decorre simplesmente de aqueles excelentíssimos Ministros serem indicados pelo Presidente da República e confirmados pelo Senado Federal. No entanto, os outros meios não costumam ser muito melhores, o que inclui os espaços do ensino jurídico.
Já mencionei aqui textos sobre o preocupante iletramento dos bacharéis em direito: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/09/universos-paralelos-da-educacao-iv.html. O problema, claro, surge em todas as carreiras, eis que os poderes políticos geralmente atuam contra a educação fundamental. Seria tolo imaginar que o Direito sairia incólume desse descalabro, desse grande fracasso do Brasil.
Em reação à má formação dos bacharéis, concursos das profissões jurídicas passaram a incluir disciplinas como filosofia, o MEC tentou instituir diretrizes de "formação humanística" dos bacharelandos em direito, e até mesmo a OAB passou a se preocupar com o assunto, decidindo que incluirá questões de filosofia em seu exame a partir de 2012, medida que provavelmente será inócua no tocante ao problema. Compartilho a opinião de Frederico de Almeida: http://politicajustica.blogspot.com.br/2012/05/va-filosofia_30.html); Murilo Duarte Costa Corrêa julga que ela será um golpe nas potencialidades críticas do direito (http://murilocorrea.blogspot.com.br/2012/05/pensar-refem-da-tecnica-o-exame-de.html), o que considerei exagerado ou precipitado. De qualquer forma, é a efetiva prática que nos permitirá avaliar os efeitos dessa medida.
Eu achava que uma das consequências dessas medidas seria a produção em série de ainda mais subliteratura didática para graduandos em Direito. Como os estudantes são muito fracos, e não poderia ser diferente em um Estado que decidiu ao mesmo temo expandir as matrículas no ensino superior e sabotar o ensino fundamental, essa produção voltada para graduandos decaiu de manuais simplificadores para resumos, sinopses e até folhas dobradas com esquemas gerais de tudo.
Um exemplo é a curiosa publicação Noções gerais de direito e formação humanística (ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; SERAFIM, Antonio de Pádua; ASSIS, Olney Queiroz; KÜMPEL, Vitor Frederico. Noções Gerais de Direito e Formação Humanística. São Paulo: Saraiva, 2012), que veio preencher este novo nicho do mercado editorial.
Lenio Streck apontou diversos equívocos desse manual nos textos O triste fim da ciência jurídica em terrae brasilis (http://www.conjur.com.br/2012-set-20/senso-incomum-triste-fim-ciencia-juridica-terrae-brasilis) e A hermenêutica e o cadáver plantado no jardim (http://www.conjur.com.br/2012-out-04/senso-incomum-hermeneutica-cadaver-plantado-jardim). O professor chega a dizer que "seguindo o que consta na obra, com certeza piorará o nível dos concursos e dos seus utentes". Essa opinião, no entanto, pode ser repetida para grande parte das publicações de editoras especializadas em Direito: o nível baixo dos estudantes gera tais publicações que, por sua vez, reforçam o colapso intelectual, em um sistema de retroalimentação.
Streck disseca os diversos erros em Hermenêutica cometidos pelos autores (o que é preocupante, já que dirigido para leitores que desejam interpretar e aplicar normas jurídicas), sua impressionante falta de atualização com a matéria (Kelsen, que é apresentado erroneamente, seria a última palavra...) e a metodologia equivocada - até a página 130, não há menção a autor algum: "É como um fiat lux. Não há fontes. Não há origem. Parece que os autores criaram tudo. No princípio, eram eles, os quatro autores. Deles veio a iluminação."
Aconselho a leitura desses textos de Lenio Streck, que bem analisam um exemplo da falência intelectual que tem servido de bibliografia básica para a cultura jurídica nacional. No entanto, a magnitude da obra (tem mais de 580 páginas) fez com que ele conseguisse apresentar somente  alguns dos defeitos do livro. Lembrarei de alguns outros, apenas, que a tarefa é vasta para minha curta pena.
Livros são escritos; esta obra faz-nos lembrar disso todo o tempo, pois o estilo não é apenas deselegante, e sim também infenso a qualquer exposição intelectual mais profunda. Ele foi elaborado como uma coletânea de fichamentos que se enfileiram sem uma coordenação, sem propósito exceto o de apresentar, talvez, palavras-chave ou frases que devem ser ligadas a determinado autor.
Um exemplo é a impactante seção com o título "Contribuição da antropologia jurídica", com três parágrafos, um pouco mais de meia página, em que descobrimos que "a sociologia e a antropologia jurídicas têm colocado em evidência o fenômeno conhecido como pluralismo jurídico" (p. 464). Deve ser essa a tal "contribuição". No entanto, na seção seguinte, "pluralismo jurídico", temos simplesmente um resumo da antiga e importante pesquisa do sociólogo do direito Boaventura de Sousa Santos no Rio de Janeiro... E só! No último parágrafo dessa seção, faz-se uma passagem teoricamente sem sentido para introduzir a teoria da decisão jurídica de Tércio Sampaio Ferraz Jr., como se este autor realmente tivesse alguma afinidade intelectual com Boaventura, ou fosse um pesquisador do pluralismo jurídico.
Depois de fichamentos da obra de Tércio Sampaio Ferraz Jr., volta Boaventura de Sousa Santos, com o fichamento de obra mais recente, Um discurso sobre as ciências que, naturalmente, não está no mesmo campo da teoria do professor Tércio. Tal salada de fragmentos teóricos é nada menos do que o capítulo que encerra a parte III ("Sociologia do Direito"), curiosamente chamado de "Novos rumos".
No entanto, esse rumo de vacuidade teórica é velho e o Direito brasileiro o segue há muito.
O livro, de fato, não é bom para os novos ventos teóricos. É assustador, por exemplo, que a parte II ("Filosofia do Direito"), que simplesmente apresenta fichamentos de autores em ordem mais ou menos cronológica (porém Locke vem antes de Hobbes), termine com um capítulo de "Filosofia do Direito contemporâneo" que trata apenas de três autores: Hans Kelsen (1881-1973), Miguel Reale (1910-2006) e Theodor Viehweg (1907-1988). Mesmo que alguém realmente ache que se poderia fazer um capítulo com esse título só com eles (ou, então, com eles), essa pessoa teria que reconhecer que ele tem erros. Além das impropriedades sobre Kelsen escritas, que Lenio Streck bem apontou, faço notar que as meras quinze linhas dedicadas a Miguel Reale não fazem justiça à obra desse autor brasileiro, quer gostemos dele ou não. É evidente que Reale está ali apenas para constar como um nome de prestígio. Daí para lê-lo...
A versão de Kelsen apresentada neste capítulo é mais bem aquinhoada e ganha um pouco mais de duas páginas; muito mais atenção recebe Viehweg com pouco mais de oito, superando não só outros dois únicos autores contemporâneos (segundo os autores deste livro), como também Hobbes, Locke, Tomás de Aquino, Platão, Montesquieu, Rousseau... Somente Aristóteles, Cícero e Kant ganham mais espaço como filósofos do direito!
Alguém que não conhecesse a área certamente julgaria que Viehweg não é somente o mais importante dos três únicos filósofos contemporâneos (e concluiria que não há nenhum autor relevante vivo), como um dos maiores de toda a história da humanidade. Creio que esse destaque, um tanto exagerado na minha opinião, decorre do fato de o livro ter como fonte recorrente um conhecido orientando brasileiro desse professor alemão, o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. (que, creio, não aprovaria a estrutura desta obra), que aparece como base teórica até mesmo em áreas que não são exatamente sua especialidade, como a Sociologia do Direito (embora a tenha lecionado nos anos 1970). O mencionado capítulo "Novos rumos" é um sintoma disso, mas também a terceira seção, "Sociologia e direito" (p. 328-331), da parte III. É coerente, pois, que, nas referências do livro, seja ele o autor com maior número de entradas: oito, contra cinco de Weber, duas de Aristóteles e zero de Rousseau.
Se os novos ventos teóricos não puderam soprar nesta obra, que manteve as janelas fechadas para diversas correntes contemporâneas, devemos reconhecer que os antigos ventos, nela, também deixaram de movimentar o pensamento. Vejamos Platão, sucintamente apresentado das páginas 209 a 213. O capítulo, além de passar ao largo da filosofia política desse autor, necessária para entender seu pensamento sobre a justiça, foge do desse filósofo também ao não citá-lo. Somente são referidas obras de comentadores, que se resumem a cinco, todas elas ou brasileiras ou encontradas em português. Faço notar que a primeira é o livro de divulgação sobre Nietzsche (!!!) escrito por Oswaldo Giacoia Junior para a coleção de livros de bolso da Publifolha. Outra é a Teoria da norma jurídica de Bobbio, que também não se dedica especificamente à filosofia daquele autor. Por sinal, nem mesmo os de Kelsen e Eduardo Bittar aí referidos. Esse nível ínfimo de pesquisa não deveria ser aceito nem mesmo em trabalhos de graduação em Direito - afinal, há, mesmo no Brasil obras recentes e de fácil acesso como O direito natural em Platão (Juruá, 2009), de Bruno Amaro Lacerda.
A escassa pesquisa e a metodologia falha do livro certamente geraram os erros que Streck encontrou e apontou, a que podem ser somados outros. Para Kant, por exemplo, o imperativo categórico é apenas um, apesar de ter mais de uma formulação. Nesse ponto, que está equivocado, (p. 289), o livro apresenta como solitária fonte Joaquim Carlos Salgado. Se as próprias obras de Kant tivessem sido consultadas, ou se os autores tivessem tido um pouco mais de curiosidade pelo vasto número de comentadores deste filósofo  (J. C. Salgado, acreditem, não é o único e, creio, não é nem mesmo o melhor), talvez não tivessem cometido o equívoco. No caso de Platão, Hobbes, Locke e Rousseau (embora ele mesmo seja citado, mas sem indicação alguma de obra), notemos que eles estão ausentes até mesmo das referências bibliográficas...
Por sinal, ainda na seção de Kant, que é mais longa do que a dedicada a Theodor Viehweg, mais adiante aparecem as três formulações do imperativo categórico na Fundamentação da metafísica dos costumes, e só no final surge a da Metafísica dos costumes (que é um livro posterior), mas o leitor não saberá que se trata da formulação para o direito.
As referências, além de lacunosíssimas, pois não incluem nem mesmo todos os autores estudados, são inconsistentes com a estrutura do livro, dividido em quatro partes: Teoria Geral do Direito, Filosofia do Direito, Sociologia do Direito e, por fim, Psicologia do Direito e Formação Humanística. As referências só possuem duas: Psicologia jurídica (que não inclui nenhuma obra de Freud, apesar de ele ser um autor com certa relevância, é até mesmo mencionado neste livro) e Filosofia.
A Filosofia ganha, dessa forma, ares de rainha absolutista das ciências, e obras específicas de Sociologia, Antropologia, Direito do Cosumidor e Direito de Família são incluídas nesta parte. Entre as obras aqui listadas, está o livro para o ensino médio "Convite à filosofia", de Marilena Chauí.
Streck já bem escreveu que o livro traz mensagens intelectualmente muito graves: a de supor que a Teoria Geral do Direito não possui autores (tudo decorreria dos quatro que assinam o livro, pois ninguém mais é citado) e que ela é uma decorrência de um artigo da lei brasileira de introdução ao Código Civil... Há outras, certamente não previstas pelos autores da obra. O leitor incauto poderia entender equivocadamente que seguir estes passos corresponde a uma "formação humanística":

  • De preferência, ignorar a literatura primária; se vamos tratar de Platão, para que citar alguma obra de Platão? Assumamos que o que esses autores escrevem, no fundo, não interessa, e vamos direto para os resumos.
  • Em relação aos comentadores, escolher também obras de divulgação, inclusive coleções de bolso - se forem sobre outro assunto, não há problema, tudo seria uma coisa só.
  • Escolher pouquíssimos comentadores, afinal, tudo teria um sentido só, não existiriam divergências teóricas na recepção, por exemplo, de Montesquieu.
  • Dar preferência a autores com formação em direito; afinal, eles dominariam todos os assuntos; seria tolo achar que algum filósofo teria algo a dizer sobre Hobbes.
  • Citar apenas obras publicadas em português, pois nada de relevante se escreveu em outra língua (ao menos antes da tradução; faz-se uma pequena exceção para o espanhol, que possui a virtude de ser bem parecido).
Em relação a uma das exceções em espanhol, faço notar que a única obra de Carlos Nino referida já tem tradução e edição no Brasil.
Creio que o desastre intelectual deste livro decorre, em parte, de ele ter nascido não como uma empreitada intelectual (não há nenhum impulso teórico por trás dele, nenhuma tese), e sim como produto para ocupação de um nicho de mercado: o Conselho Nacional de Justiça editou resolução sobre os concursos para a magistratura (http://t.co/vSPabobp) prevendo questões de formação humanística na primeira fase, a OAB resolveu incluir questões congêneres em seu exame para 2013...
E assim, criou-se rapidamente este livro, que pretende ser comprado não só por concursandos, mas por "professores e estudantes de cursos jurídicos" - vastíssima clientela no Brasil. Trata-se da pura lógica das mercadorias, trabalhando contra o tempo, mais longo, exigido pelo trabalho intelectual.
O livro, por nascer e seguir a regulamentação do CNJ é fruto de uma deformação profissional comum na área do Direito que é o de enxergar a realidade via os olhos do direito escrito. A Saraiva decidiu que a formação humanística merecia um livro por causa da resolução. Como deve ser o livro? O que espelhe a norma. Dessa forma, temos mais um exemplo do"secreto ódio à realidade" (como expliquei nesta nota, a expressão é de Sérgio Buarque de Holanda: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/jornalismo-versus-direito-ii-kelsen-onu.html) do meio jurídico nacional.
Se é a norma (e que norma, uma simples resolução!) que deve "formar" a "formação", logo a verdadeira "formação" é simplesmente a leitura do Diário Oficial. Essa deve ser a lição mais profunda deste livro da Saraiva, cuja vacuidade reflete com nítida exatidão e ratifica o problema que talvez quisesse resolver.
Dessa forma, explica-se que a arte tenha sido alijada de um livro de formação humanística. Também a história, antecipando o projeto corporativista da ANPUH. As humanidades foram trocadas pelo legalismo puro e simples.
Ademais, a noção presssuposta por estes autores de que uma formação pode se resumir a um livro só (que é o que esta obra tenta fazer, apresentando resumos sobre tudo que acha que cairá nos concursos) contraria a própria ideia de formação, que deve incitar a busca pela experiência - e por outros livros. Temos aí uma contradição performativa...
O que se pode imaginar a partir e abaixo disso, já que o ensino superior continuará mais gerações rolando abismo abaixo com a destruição sustentada do ensino fundamental? Concebo duas possibilidades para o médio prazo.
Talvez faculdades criem uma disciplina com o título "formação humanística", extinguindo cadeiras como Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito, Lógica, Hermenêutica... Será lecionada, naturalmente, por meio de educação a distância. Bastará tutores on line para um conteúdo tão vastamente mínimo. O twitter seria o futuro dos manuais de direito.
Virando Ministro do STF em 3 lições, obra ainda a ser escrita nesse futuro pouco distante (primeiro, surgirá uma com 10 lições), será uma das mais vendidas, lida até mesmo por assessores de alguns futuros magistrados para aperfeiçoar a elaboração das sentenças.