O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 30 de dezembro de 2012

Desarquivando o Brasil XLVII: Citações desconcertantes

De 1965 a 1985, alguns exemplos de como certos nomes que o Estado brasileiro elevou foram capazes de sínteses inesperadas que definiram um momento político da pobre nação.

"A ninguém, satisfeito atualmente com atual situação nacional ou fazendo restrições a ela, deve deixar de ser grata a idéia de que o regime democrático volta a vigorar em sua plenitude num país que há bem poucos meses esteve à beira do caos." "Às urnas", Editorial da Folha de S.Paulo, 19 de março de 1965.
Neste caso, temos a negação da realidade como um dos recursos argumentativos mais comuns para justificar o poder.
"A liberdade de associação é plenamente assegurada, mas não é possível que se pretenda restaurar o funcionamento de uma associação como a UNE, que teve o seu funcionamento proibido" Gama e Silva, Ministro da Justiça. Diário da Tarde, 26 de agosto de 1967.
Exemplo típico do arrazoado jurídico autoritário: enunciar um princípio (liberdade de associação) e fingir que ele está plenamente assegurado por meio de sua violação (a proibição da UNE).
"Não há presos políticos no Brasil. Ninguém é detido por ser contrário à política do governo. Os que se acham presos são terroristas, cujo número, como assinalou o general Muricy, não ultrapassa a 500. O tratamento que recebem esses presos não fere os princípios da humanidade" O Ministro da Justiça e seu chefe de gabinete (Alfredo Buzaid e Manoel Gonçalves Ferreira Filho), em nome do governo brasileiro. Jornal da Tarde, 23 de julho de 1970.
Mais um exemplo notável de negação da realidade, esporte em que muitos juristas são recordistas.

"Hoje, repito, todos os Estados adotam a forma jurídica para exprimir os seus comandos aos cidadãos. Assim, se não se levar em conta o conteúdo desses comandos, tanto são estado de direito os Estados Unidos ou França, como a União Soviética de ontem, a Alemanha nazista ou a Itália fascista." Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em entrevista publicada no Jornal do Brasil, 29 de maio de 1978.
Exemplo de formalismo jurídico levado ao paroxismo (outra forma de negar a realidade), combinado com o desconhecimento das peculiaridades do direito no totalitarismo.
"A vitória da ARENA, dadas as garantias já restituídas ao Poder Legislativo, e como resultado dos reclamos gerais da opinião pública, não significará, portanto,a consagração do statu quo, mas antes o aperfeiçoamento de nosso sistema democrático, sem saltos bruscos e abstrações infecundas." Miguel Reale, "Por que votar na ARENA?", Folha de S.Paulo, 12 de novembro de 1978.
Abstração infecunda, no vocabulário desse jurista, como já expliquei em um pequeno artigo, tem o significado de luta pela liberdade.

"[...] sem liberdade o homem é apenas uma aspiração de engordar." José Sarney, "Maranhão reelege Sarney para o Senado", Jornal do Brasil, 18 de novembro de 1978.
Nesses momentos de inspiração, não se pode esquecer de que ele é membro da Academia Brasileira de Letras.

"O inquérito do Riocentro está encerrado. Tentar reabri-lo não consulta os superiores interesses do país. [...]
Pois a democracia não se quer desarmada, nem tampouco se quer a segurança inibida em suas ações preventivas em favor da ordem." Roberto Marinho, "Riocentro", O Globo, 29 de setembro de 1985.
Ameaça velada sob a capa de jornalismo.


No entanto, talvez os carimbos da época, que destaquei abaixo de um documento do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), já desde sua forma cartorial e oficial, definam com mais eloquência o discurso do poder. O hobbesiano lema "Nossa vigilância é sua segurança" e "A Revolução de 64 é irreversível e consolidará a Democracia no Brasil", em que a negação da realidade irrompe desde a segunda palavra, parecem-me o horizonte estilístico e político almejados pelas frases que antes destaquei.


A metamorfose em carimbo oficial é aquela almejada pelos homens do poder? Se assim for, é mesmo revestido de uma grande dignidade o inseto de Kafka.



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