O livro ainda não saiu e o escritor lançou novo livro, Junco. Por esse motivo, fiz este breve adendo ao texto, que deve ser publicado em 2013:
No ano seguinte a este artigo ter sido terminado, Nuno Ramos lançou Junco (São Paulo: Iluminuras, 2011), seu primeiro livro de poesia todo composto em versos. As imagens das águas e da praia e dos fragmentos poderiam levar a crer que o escritor tivesse desejado criar um The Waste Land particular ("These fragments I have shored against my ruins"). No entanto, a realização literária afasta o paralelo.
Se O mau vidraceiro já mostrava uma dissolução da complexidade de Ó, o livro novo decepciona por levar adiante essa facilitação. A antes complexa interação entre texto e imagem cedeu lugar a écfrases simples. Alguns poemas parecem meras ilustrações das foto reproduzidas. Certos momentos assemelham-se a cópias dulcificadas de Manoel de Barros ("aqui dois pardais se amaram/ antes da minha chegada", p. 23; "Mas já velho e navegado/ desejoso apenas de contar/ os grãos de chão mais reles", p. 111). O espírito da autoajuda paira perigosamente sobre "O chão é a grande pergunta/ haver chão/ se tudo voa/ e quer cantar." (p. 53).
Reiterações dos outros livros podem ser identificadas, com os corvos (“os alicates das mandíbulas/ em pequenas bicadas”, p. 39), os urubus, em previsíveis aliterações com u (“Procuro no núcleo/ azul o útero exato/ que exala essa fornalha/ até mim// o último urubu do mundo.”, p. 51), os cães (“O cão, velho cão/ é tempo/ intervalo/ entre duas chuvas.”, p. 73), e momentos que parecem esboços para Ó (“Um poema se fez!, aviso/ num pito/ voltem à praia onde juncos/ moles, brancos/ aspargos sobre carvalhos mortos/ boiam formando palavras”, p. 89; “Dizemos ó/ e nosso corpo/ expande a baía”, p. 102-3). Não há novos territórios conquistados.
O último poema emprega trechos de “A máquina do mundo” de Carlos Drummond de Andrade. Seu interesse está em revelar as diferenças entre os dois escritores. A “máquina”, em Drummond, está fora do sujeito: ele a encontra na estrada pedregosa de Minas, mas recusa olhar “a estranha ordem geométrica de tudo” e segue adiante. No poema de Nuno Ramos, o sujeito não só não deixa de olhar os “fantasmas”, “texturas, corpos sólidos” (p. 114), como essas imagens são dadas pela lágrima dele mesmo, que as reflete num “espelho enciclopédico” (p. 115) e acaba por cair e se misturar às ondas na “praia, praia, praia, praia” (o verso final, p. 115). A autoconfiança do poeta Nuno Ramos chega ao ápice nesse ponto. O gesto de baixar o rosto, em Drummond, que vem no momento de recusa à revelação da máquina, é o mesmo gesto que permite à lágrima onisciente no poema de Nuno Ramos cair e revelar-se “numa glória transparente” (p. 114).
Há problemas de versificação. A forma, em geral, não é feliz, e certas tentativas de quebrar os versos são canhestras: “Rep/ ara/ nada para/ até a casca/ das árvores e a pedra”, p. 81). A rima, quando aparece, também é primária (“O chão sob a cal/ tem a língua de sal.// A enguia de areia/ presa na rede// seca de sede.”, p. 31; “Por isso durmo e não pergunto/ junto aos juncos.”, p. 11). Alguns poemas, porém, salvam-se do naufrágio involuntário, como o 17º (“Ama, disse meu olho/ os dois íntimos contrários/ areia e mar”).
Note-se também que a modesta qualidade gráfica desta edição da Iluminuras prejudica bastante o livro, pois as imagens que os poemas espelham não são bem reproduzidas.
Parece-me significativo que, ao tentar deixar bem nítida a marca de gênero, escrevendo em verso, Nuno Ramos tenha feito seu livro mais fraco. Sua força, que é a do informe, perde-se. Alberto Tassinari, em texto publicado numa obra essencial para a compreensão do artista plástico Nuno Ramos, escreveu, contrastando-o com Hélio Oiticica, que “Em Nuno, ao contrário, não há um teste dos limites da arte além de cada gênero.” 18 O comentário não é verdadeiro para a literatura.
18 TASSINARI, Alberto. O caminho dos limites. Nuno Ramos. Org. de Ricardo Sardenberg. Rio de Janeiro: Cobogó, p. 21.
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