O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 31 de agosto de 2019

Desarquivando o Brasil CLVI: Os povos indígenas no Brasil, os 40 anos da lei de anistia e o governo anti-indígena de hoje

Acabou no dia 28 de agosto o Seminário "Os 40 anos da anistia e os legados das ditaduras na América Latina". Quase toda a programação foi filmada pelo CAAF da Unifesp e pode ser vista por meio desta ligação: https://m.facebook.com/CAAFUnifesp01/?locale2=pt_BR
[Nota: o CAAF não incluiu a primeira parte da mesa, com a minha fala, a de Yamila Goldfarb e de Marisa Fernandes entre os vídeos. Porém lea pode ser vista nesta ligação.]
Foi a primeira vez que ajudei na curadoria de uma exposição, que contou com homenagens a Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, e a Therezinha Zerbini, fundadora do Movimento Feminino pela Anistia.
Participei de uma mesa sobre os "não sujeitos da anistia". Como se sabe, apesar das informações falsas, a lei 6683 de 1979 deixou várias pessoas de lado, entre elas vários presos políticos, estrangeiros que foram expulsos e também diversos militares.
Nenhuma dessas categorias foi objeto da mesa, porém, e sim os povos indígenas, os camponeses, homossexuais e negros. Com a coordenação de Desirée Azevedo, Yamila Goldfarb tratou da violência no campo (ela integrou o grupo de trabalho que elaborou o capítulo sobre a "repressão no campo" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" e foi autora colaboradora da Comissão Camponesa da Verdade), Marisa Fernandes falou de seu capítulo na obra pioneira Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (organizado por James Green e Renan Quinalha; pode-se também ver sua apresentação em vídeo na Comissão "Rubens Paiva": http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap7.html) e Amauri Mendes apresentou seu testemunho como um negro universitário e de esquerda na época da ditadura.
Eu quis tratar de como o movimento para a anistia, nos anos 1970, não se ocupou dos povos indígenas. Referi-me a Ailton Krenak e a União das Nações Indígenas, e ao fato de a Comissão de Anistia ter recebido questões desses povos apenas nesta década.
Não pude chegar à análise das decisões da Comissão, tampouco analisar as recomendações do volume II do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, pois havia pouco tempo. Concentrei-me em mostrar e explicar documentos, enfatizando que cada afirmação feita nos relatórios era respaldada por provas (não eram informações falsas presidenciais), para demonstrar o caráter político dos crimes cometidos contra aqueles povos.
O governo dos Estados Unidos sabia dos crimes cometidos para a "colonização" do interior do Brasil. Neste telegrama de 1968, um dos documentos que incluímos no relatório da Comissão "Rubens Paiva", relata-se que as atrocidades eram ainda piores do que aquilo que fora noticiado e fora objeto de rumores, segundo o que uma fonte não identificada do Itamaraty contou ao embaixador dos EUA no Brasil, John Tuthill.


Alguns documentos sobre que falei estão no relatório da Comissão "Rubens Paiva", onde trabalhei. Outros, fui descobri-los depois. Já escrevi sobre este relatório da DSI (Divisão de Segurança e Informações, um braço do Serviço Nacional de Informações - SNI) do Ministério da Justiça, elaborado em 1984, perto do fim do governo do ditador Figueiredo. É chocante ler, neste documento confidencial, que as "entidades de apoio à causa indígena" adotariam a "teoria foquista", como se os índios e os indigenistas fossem guerrilheiros que lessem muito as obras de Che Guevara. Quando mencionei mais esse momento em que os povos indígenas e seus apoiadores eram considerados ameaças à segurança nacional, houve historiadores e militantes na plateia que riram.


Era ridículo, mas era oficial. Outro documento confidencial sobre que já escrevi, do governo Sarney, tutelado pelos militares, era esta memória da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional. Tive de enfatizar que os "temas de maior interesse da SG/CSN" na Assembleia Nacional eram o Conselho de Segurança Nacional, a Energia Nuclear (previsivelmente) e... "Indígenas":


Nesse tema, porém, o CSN e o governo foram derrotados pela mobilização indígena, conforme conto neste artigo, "Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Constituinte", que escrevi a partir desses documentos confidenciais da época de Sarney.
A mentalidade anti-indígena das Forças Armadas, no entanto, parece ter permanecido. As declarações militares repletas de absurdos antropológicos na época do julgamento no Supremo Tribunal Federal da demarcação da TI Raposa Serra do Sol lembraram-nos cruelmente da profunda ignorância oficial sobre os povos originários. Agora, essa ignorância e esse absurdo estão na presidência da república - e continuam oficiais, evidentemente.
Lembrei de antigas declarações anti-indígenas do atual ocupante da presidência, Jair Bolsonaro (como a fantasia de que as terras indígenas, que ele, ignorantemente, chama de reservas, formariam "novos países"). Aquelas palavras estão sendo convertidas em atos neste governo, que tem priorizado os ataques àqueles povos (no dia anterior, a Folha de S.Paulo havia publicado a matéria "Em meio a crise, Bolsonaro prioriza ataques a reservas indígenas em reunião com governadores da Amazônia"). Mencionei também os documentos vazados pela Open Democracy que revelam os "planos devastadores para a Amazônia". Vejam a matéria e o ataque ao "indigenismo", ao "quilombolismo", ao "ambientalismo"; levando em conta que hoje há questões tecnológicas novas, como defesa cibernética, parece que estamos no CSN dos anos 1970, inclusive na chamada "integração da Calha Norte".
Como será publicado um livro do Seminário dos 40 anos da lei de anistia, espero escrever um capítulo sobre essas questões.

P.S.: Escrevi um breve texto para o Brasil De Fato anunciando o seminário, "40 anos da Lei de Anistia e as continuidades do autoritarismo".
Falei com a repórter Marcella Fernandes do HuffPost Brasil, em matéria que provavelmente deve seu interesse às declarações de Edson Teles: "Por que a memória da ditadura no Brasil é diferente de outros países da América Latina"

P.S.2: O vídeo da plaestra: Seminário "Os 40 anos da anistia e os legados das ditaduras na América Latina" (2019). Vídeo do CAAF-Unifesp.

sábado, 24 de agosto de 2019

Uma nota sobre o fim da Arlequim e os encontros não mediados por algoritmos

Acho que a última vez que escrevi neste blogue sobre o Rio de Janeiro foi por causa do incêndio do Museu Nacional. Normalmente menciono essa cidade, na qual não moro mais, por causa de eventos de terrorismo de Estado ou de lugares que fecharam ou foram destruídos. Isto é, sobre perdas e danos. Desta vez, rascunho esta nota sobre o encerramento da Arlequim, que ocorreu em maio de 2019. Na época, não consegui fazê-lo.
Há alguma importância no encerramento de uma loja? Creio que sim, porque o seu perfil era único naquela cidade; no plano pessoal, para mim, há uma memória afetiva. Nela fiz quase todas minhas compras do Natal de 2018. Lembro quando começou, pois eu trabalhava no Centro do Rio de Janeiro, perto do Paço Imperial. Lembro também quando ela teve uma filial em Ipanema, que acabou fechando anos atrás.
A Blooks, que é uma ótima livraria, passou a ocupar o lugar, ao qual ainda não voltei.
Estas fotos do Guia Cultural do Centro do Rio dão certa ideia do que foi a Arlequim na época em que ela ocupava toda a parte do Paço Imperial, este sítio histórico do Brasil, voltada para a Primeiro de Março. A definição é exata: "Inserida no histórico Paço Imperial, a Arlequim, que na época de sua inauguração, em 1993, era apenas uma conceituada loja de CDs, cresceu e se transformou em um conjunto harmônico de livraria, café e restaurante com ares de bistrô." Além disso, havia as apresentações de música e recitais de literatura.
Tratava-se, principalmente, de um local de encontro. O sítio virtual da livraria apresentava a extensa agenda cultural; poeticamente, nele restou apenas esta interpretação de "Lamento no morro" por Tomas Improta, Fredo Gomes, Ricardo Pontes, José Arimatéia e Rodrigo Villa: https://www.arlequim.com.br/. O canal no youtube ainda traz algumas das apresentações: https://www.youtube.com/user/1Arlequim/videos
Para mim, Arlequim foi principalmente um local de música, para descobrir o Conjunto de Música Antiga da UFF, o Anima, o Diego Schissi Quinteto, o Ensemble Clément Janequin e uma longa série.
Acreditem que era um lugar com música de diversos séculos e estilos. Aqui, alguns dos discos que comprei no fim de 2018, de Steve Reich (por Kristyan Järvi; apesar do grande maestro, não gostei muito) a música de terreiro (Glória Bonfim), mas também Franco Fagioli cantando árias de Rossini e a ópera Serse de Händel. Além destes, faltam o Sidney Miller nas vozes de Joyce Moreno e Alfredo Del-Penho e o disco Puccini de Roberto Alagna e Alexsandra Kurzak, que estão em outro lugar.


Como livraria, havia muitas obras sobre a cidade do Rio de Janeiro, música e cinema, embora não se limitasse a essas áreas. Por exemplo, comprei para sobrinhas no fim do ano Valsa brasileira, da economista Laura Carvalho e A descoberta do mundo, de Clarice Lispector.
O que o livreiro Márcio Pinheiro, um dos sócios da loja, disse em 2018 para a Associação Estadual das Livrarias do Rio de Janeiro parece-me importante:
Houve os 130 anos da Abolição da Escravatura e fora o dicionário da Lilia Schwarcz pouca coisa foi  reeditada. Montamos uma seção grande sobre a Abolição, até porque a Lei Áurea foi assinada no Paço Imperial. Estou em contato com a editora Escrituras para montar uma seção sobre cangaço; esse ano há a efeméride de nascimento e morte de Lampião. Vamos dar destaque às obras já lançadas, não são novas edições. Mas o cangaço é um tema importantíssimo na nossa história. Montamos a livraria pelo interesse e pela importância do assunto. Se me pautasse pelos números colocaria o Augusto Cury na frente, mas para nós é muito mais importante ter o dicionário da Lilia Schwarcz, a biografia que saiu do Rafael Rabelo [Raphael Rabello]. É um comércio de fato; nossa questão aqui é a venda, mas tem uma questão cultural; o papel cultural que as livrarias acabam desempenhando.
Ele achava que a livraria se adaptaria ao mercado digital se a economia brasileira melhorasse, o que não pôde ocorrer. O eleitorado brasileiro escolheu em 2018 não só a idolatria aos crimes de lesa-humanidade, mas a recessão e o desmantelamento do Estado.
O mencionado papel cultural desempenhado pelas livrarias físicas dessa natureza, com eventos culturais, inclui propiciar encontros que não são determinados por algoritmos. Trata-se não só de encontrar mercadorias sem essa mediação automática, mas de ver pessoas. A insociabilidade das redes sociais, fomentada pelas bolhas ideológicas, não é de forma alguma contrabalançada pelas lojas virtuais. Pois o algoritmo não serve apenas para reduzir as relações interpessoais (considerando ainda que boa parte das pessoas são robôs) a transações e valores de troca, mas para transformar as pessoas (que alegremente, docilmente apresentam e oferecem seu preço) em bens avaliados em termos financeiros.
Escrever sobre o Rio de Janeiro, falar sobre a perda. Desta lista de 2016 (não faz tanto tempo assim, embora já fosse a derrocada do país) de cinco livrarias do centro do Rio, vejam que oitenta por cento já fechou: https://diariodorio.com/as-5-melhores-livrarias-do-centro-do-rio/. Não cliquem na ligação indicada da Folha Seca, que parece estar caindo em um sítio malicioso. Esta livraria, porém, continua a existir.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Desarquivando o Brasil CLV: Continuidades do autoritarismo e o Seminário sobre os 40 anos da Lei de Anistia


O jornal Brasil de Fato publicou há poucos dias um texto meu que anuncia o Seminário Os 40 Anos da Lei de Anistia e o Legado das Ditaduras na América Latina, que será realizado no Centro Universitário Maria Antônia, da Universidade de São Paulo, de 26 a 28 de agosto. Em "40 anos da Lei de Anistia e as continuidades do autoritarismo", digo que "Este Seminário, um exemplo de esforço conjunto de militantes, movimentos e da academia, procurará, portanto, entender a relação das graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar com as continuidades autoritárias do presente, que hoje ameaçam a democracia e os movimentos sociais."
Uma dessas continuidades está na questão dos desaparecidos, tanto no aspecto das vítimas da ditadura que não foram encontradas, tanto na permanência do crime de desaparecimento forçado no repertório de ação das forças do Estado. O problema foi percebido já com a aprovação da lei n. 6683, de 28 de agosto de 1979, a lei de anistia. Três anos após, Suzana Lisboa, viúva de Luiz Eurico Tejera Lisboa, um dos poucos desaparecidos da ditadura cujos restos mortais haviam sido encontrados (eles foram escondidos na Vala de Perus), deu entrevista a Rádio Capital sobre a Semana Mundial do Preso Desaparecido, que ocorreria entre 25 e 31 de maio de 1982.
Como se tratava de assunto de segurança nacional para o governo, o DEOPS/SP fez a transcrição da entrevista (o documento, como outros aqui reproduzidos, estão no acervo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo).


Trata-se de uma situação que não foi resolvida pela lei de anistia. O que Suzana Lisboa declarou na entrevista, que "A barreira no encontro dos desaparecidos está no próprio governo, que é o responsável pelos desaparecimentos e não quer assumir que foi responsável pelos assassinatos.", continua a valer para os desaparecidos da democracia e, mesmo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, voltou a ser plenamente vigente com o governo Bolsonaro, que, incorrendo em crime de responsabilidade, tem espalhado notícias falsas sobre os que foram atingidos pela repressão, seja os mortos, como Fernando Santa Cruz, seja os vivos, como Miriam Leitão (os ataques à imprensa têm sido uma constante deste governo) e Dilma Rousseff.
A campanha pela anistia começou efetivamente entre as mulheres com o Movimento Feminino pela Anistia. Quando escrevi sobre Therezinha Zerbini, a fundadora do Movimento, citei o Boletim Maria Quitéria, que era o seu órgão de imprensa. O jornal feminista Nós Mulheres também incluía a anistia entre suas pautas:


Neste número de 1978, que tomo como um exemplo entre outros, além de matéria que tratava do Movimento Feminino pela Anistia, publicou-se esta nota sobre o lançamento do Comitê Brasileiro pela Anistia:


A ampliação do movimento e desta demanda social, a que se juntaram o movimento sindical e o estudantil, causou inquietação na ditadura. Este relatório do Centro de Informações da Aeronáutica, de "subversão no Brasil desde o exterior" documenta a preocupação oficial com os exilados, seu possível retorno e sua articulação por, entre outras bandeiras, a anistia:


Esta movimentação gerou reação do governo. Já escrevi, como outros, que a lei foi imposta pela ditadura por meio de sua maioria parlamentar, sendo completamente falso o "consenso nacional" de que falaram ministros do Supremo Tribunal Federal na aberração jurídica e histórica que foi o julgamento de 2010 em que validaram os efeitos da lei para os torturadores e assassinos do regime (não vou repetir aqui o que escrevi em "Nem justiça nem transição: a lei brasileira de anistia e o Supremo Tribunal Federal"). Como a anistia não foi "ampla, geral e irrestrita", muitos presos continuaram e muitos que foram afastados do serviço público não puderam retornar. Vejam a preocupação do delegado Romeu Tuma com esta visita a presos políticos não anistiados feita por Teotônio Vilela, político que tinha sido da situação, mas acabou se filiando ao PMDB em 1979) e havia participado da campanha pela anistia:


Um dos temas do Seminário deste mês será justamente o dos sujeitos que ficaram fora da lei de anistia, o que inclui, entre outros que não serão acolhidos pela comissão bolsonariana de anistia de hoje, os povos indígenas, que foram vítimas de remoção forçada, genocídio e etnocídio.
Essas e outras questões, articuladas às ameaças de hoje à democracia e aos movimentos sociais, serão discutidas no Seminário, cuja programação pode ser vista nesta ligação: http://www.mariantonia.prceu.usp.br/seminario-internacional-os-40-anos-da-anistia-e-o-legado-da-ditadura-na-america-latina/

terça-feira, 6 de agosto de 2019

O poeta deve aluguel ou Gilcevi versus a extrema-direita

Nesta década, alguns poetas brasileiros têm colocado o tema da falta de dinheiro, ainda mais atual com a extrema-direita no poder, no centro de seus livros. Embora a questão não seja nova na poesia deste país, nem sempre se tiram consequências formais disso. O conhecido poema de Álvares de Azevedo, "Minha desgraça", avisa que "Minha desgraça, não, não é ser poeta", e sim, revela-o no final, "É ter para escrever todo um poema/ E não ter um vintém para uma vela."
A experiência do poeta e a da precariedade material encontram-se, dessa forma, apenas acidentalmente conjugadas. Outra postura é a de ver na própria poética uma experiência de precariedade. Creio que alguns poetas que têm apontado para essa direção, como Heyk Pimenta (A serpentina nunca se desenrola até o fim, 7 Letras, 2015). Outro autor, que somente li agora, e cujo primeiro livro ainda não encontrei, é Gilcevi, com seu Retrato do poeta quando devedor de aluguel ou poeta bom é poeta morto (Letramento, 2018).
O livro começa com "exú tranca-rua", que diz "deixe a poesia a putarya de lado um tempo/ e se concentre em ganhar e guardar dinheiro" (p. 15), mas ele não fez isso e escreveu este livro... Note-se já desde esse primeiro poema um uso idiossincrático da ortografia, com y e k em algumas palavras, esse acento em Exu e até um acento nostálgico em diarreia, em outro poema. Na primeira parte, "Perypheréias (T.E.A.)", o autor parece aludir a uma ortografia antiga para sugerir o caráter histórico do racismo.
Assim, em "Linhagem", "BR/ Beira-de-estrada", o final é um canto de calango: "ele era zé pinguela"; uma outra tessitura, com esta marca de classe social, é acolhida por esta poesia. Em "retrato do poeta pardo tentando escapar do navio negreiro que ficou encalhado no subúrbio", temos a questão do racismo: "acabou de chegar mais um carregamento/ a fila começa a se formar nas bocas/ pombos e anjos com diarréia se empuleiram nos barracos/ um deus brasileiro - botokudo kaboklo yorubanto/ te dá a mão e te aponta o caminho" (p. 29, que termina com citação que já virou clichê, "o mantra roseano/ o que a vida quer da gente é coragem" (p. 30).
O clichê, porém, torna-se outra coisa nesta poesia: depois da descrição de uma família em que "seu tio está fumando crack e roubou todos os seus discos" e "o pai está desmaiado sobre o próprio vômito" (p. 29), bem como do sistema racista que leva a esses destinos individuais, a experiência periférica transforma a citação de Guimarães Rosa e a coloca sob a luz da ironia.
Creio que se pode ler nesse mesmo diapasão a paródia periférica de Drummond, o poema "um varão que acaba de nascer ou da meritocracia": "quando nasci/ um anjo brasileiro saiu da sombra/ me deu 10 reais/ um revólver/ um livro// e disse/ bicho, agora é contigo" (p. 28).
Ainda nesta primeira parte, o poema "Travessia" (p. 21), com grande economia verbal, conta uma história listando o nome de rios, do Aqueronte ao Rio das Mortes. Nela temos também uma paródia de documento oficial, "registrado em cartório", que termina inconcluso, embora notemos que se trata de uma falência de alguém que perdeu os brilhantes e os escravos "aos cinco dias de janeiro de 1884/ nesse distrito de diamantina" (p. 25).
A consciência do racismo aparece como um elemento da formação pessoal, além da coletiva, em "retrato do poeta em 1992": "precoce pária fuça afundada na zona oeste/ melhor evitar o beco dos pretos/ jurado de morte na praça do cristo/ olhos de índios/ mirando sóis noturnos no cortiço" (p. 32). Problemas dos movimentos de identidade também são aludidos nesta seção do livros: "os pretos me aceitam branco/ os brancos me tratam servo/ a certidão atesta pardo" (p. 34).
A segunda parte do livro, "A manada de búfalos", ressalta o caráter autoritário do atual momento político no Brasil: "tudo aconteceu muito rápido/ numa semana/ os fascistas tomaram o poder/ na outra ana foi embora" (p. 41, "2016"). Por sinal, a obra termina com uma "oração do cidadão de bem", que parece um texto para performance que consiste em longa invocação a epítetos de Deus até o fim em caixa alta: "VAMOS MATAR A TODOS!/ QUE ASSIM SEJA MESSIAS BOLSONARO 2018" (p. 167). Este, com outros poemas do livro, foi publicado pelo blogue Escamandro, que os chamou erroneamente de inéditos. Os comentários aos poemas são negativos - problema estético e político desses leitores daquele blogue. Outros poemas saíram na Mallarmargens.
Há muitas referências à literatura, como no poema título, que são bem divertidas: "não tinha prendas/ ouro gado fazendas/ entre a rosa/ e a promissória/ tinha 52 kilos/ (será que fui eu/ quem enterrou o/ senhorio?)/ e um velho exemplar/ de crime e castigo" (p. 42). Às vezes há um ar drummondiano: "os homens que têm fome e são mansos/ esquecidas do molotov e da pedra/ suas mãos forjam versos/ fabricam notícia/ empilham caixas" (p. 44). No entanto, a linhagem assumida é a de Roberto Piva (p. 32).
A linguagem de Gilcevi pode ser bem crua, o que talvez venha daquela poética da precariedade: "já ada gostava era de homo/ cuspia na pica e dizia/ se é cu eu arrombo" (p. 67; notem a sutileza da rima toante). Há alguns poemas curtos com título "koraçãunm", com imagens que descrevem a víscera, como "rapariga-sem-prega" (p. 70); "caixa de esgoto/ descarga estragada" (p. 87). No entanto, o lirismo não lhe é desconhecido: "um cheiro ruim que deve ser o cheiro do medo dos pássaros" (p. 66).
A terceira seção "guimbas" do livro, toda de poemas curtos, também apresenta essa linguagem, como em "muito prazer" (p. 93), praticamente um cartão de visitas do autor:

eu sou poeta
pau no seu cu
etcetera

Uma das coisas mais simpáticas neste livro é o humor: "antena da raça" que descreve um homem saindo da prisão e confirmando que o irmão é um poeta: "ele sorriu e disse sempre soube/ que você era um covarde" (p. 50); outro exemplo: "leminski cachorro louco de calças arriadas/ e penso/ agora só falta escrever uma obra-prima" (p. 60); "e troque esses lençóis/ não vou me deitar em cima do cheiro/ dessas suas vadias" (p. 65); ou a história do cara que só consegue escrever o romance depois de abandonar o casamento, mas o poema termina com o parecer de recusa da editora ("237 páginas", p. 81-85); ou, em outro momento de deboche com o meio literário, "fez uma suruba de dois dias/ com aquelas estudantes de letras que te achavam genial" (p. 89).
"Histórias de Geová" contém historias privadas de perda da fé cristã; algumas têm humor, como a lista de lembranças em "geová souvenirs II": "os duzentos prepúcios de mical/ dentro do ventre da baleia/ jonas não ouviu as sereias/ a pedra - única/ pontiaguda -/ que atingiria o rosto da puta" (p. 132).
Algumas das imagens são bem surpreendentes: "mesmo faminta/ a lagarta hesita/ ante à árvore da vida" (p. 138, "éden"), ou todo o poema "a festa", que descreve uma execução por enforcamento que faz a morte fugir dos homens "que gargalham atiram/ ovos tomates" (p. 139).
As últimas seções são curtas. "Noturno 4pontozero" compõe-se de um só poema, um "poema dos quarenta anos"; naturalmente, um quarteto. "A Rainha" compõe-se de dois poemas, que acabam se revelando de amor.
No fim, a oração do homem de bem cristão que ganhou a eleição em 2018.
Eu não gostei de tudo. Às vezes, a influência de Piva é pesada demais, como em "retrato do poeta pensando sozinho" (p. 54-56); "retrato do poeta recebendo a notícia da morte do pai" seria uma versão fraca e heterossexual daquele poeta (p. 78-79). Ademais, nem sempre o humor funciona; o poema pode ser só uma piada velha, como o do idoso que morre trepando: "mas que gozada fulminante" (p. 130).
Pequenos senões de um livro vivo como um testemunho destes tempos. Nesta entrevista dada a Jéssica Malta, Gilcevi confessa que "Achei que não estaria vivo para assistir novamente a ascensão da extrema direita e do fascismo e tem uma parte do livro que fala disso". Esta perplexidade está viva neste livro. Ela integra a precariedade que mencionei, condição necessária para que se possa reagir, na política e/ou na poética, ao estado de coisas.