O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 25 de julho de 2010

Inaudição de hoje: Don Giovanni no Colón

Récitas de Don Giovanni no Colón com certo maestro brasileiro; não fui ver. Claro que adoro essa ópera de Mozart.
O silêncio foi proveitoso. Segundo Ernesto Castagnino, além de fraquezas de alguns cantores, a regência foi superficial e sem clareza:
http://www.tiempodemusica.com.ar/noticia/noticia.ver.php?idpost=615

sábado, 24 de julho de 2010

Impressões latino-americanas: Extermínio e matrimônio igualitário

Li no jornal argentino El Tiempo, de 21 de julho de 2010, que o velho chefe de registro civil da cidade de Concordia (e único advogado canônico de toda a província, ele mesmo ressalta), Alberto Arias, preferiria casar Alfredo Astiz (conhecido como "anjo loiro da morte" da ditadura argentina), um "pobre homem" segundo o funcionário, a casais do mesmo sexo.
Simples demonstração de velhos sentimentos contrários aos direitos humanos? Talvez, porém a observação é reveladora: parece denotar que, na oposição à lei do matrimônio igualitário e no apoio ao genocida, encontra-se em certos corações mais pios a mesma lógica: a do extermínio, tão presente na formação da sociedade argentina.
Afinal, foi a "solução" dada aos negros (há mesmo quem ignore que houve escravos negros aqui, e que foram mortos) e à grande maioria das comunidades indígenas. Uma "solução" condizente com o antigo mirar portenho para a Europa.
O matrimônio igualitário não deixa de ser também um fruto desse mirar, já que alguns países europeus precederam a Argentina nessa matéria - porém resulta de uma visão que contraria a velha lógica, e é a isso que os conservadores se opõem.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Impressões latino-americanas: Digerir a fome

No dia 19 de julho de 2010, ocorreu no Centro Cultural de la Cooperación, em Buenos Aires (um centro de esquerda), debate Elecciones en Brasil: la integración regional en disputa? com Atilio Boron, Carlos Escudé e Gonzalo Rojas.
As declarações do candidato do PSDB contra o Mercosul foram destacadas, claro, e se falou da posição de Lampreia, ex-ministro das relações exteriores de FHC, no mesmo sentido.
No entanto, Escudé destacou, com a anuência dos outros membros da mesa, que a oposição argentina ficava à direita dos candidatos de oposição do Brasil, pois nunca admitiria continuar um programa como o Bolsa-Família, ao contrário do que José Serra afirmou. A ideia de pobres poderem comer todo dia, embora elogiada por The Economist, lembrou Escudé, não o era pela elite portenha. Parece que se trata de algo que a direita daqui não digere bem.

domingo, 18 de julho de 2010

Evento: Seminário Justiça e Razão Prática em Aristóteles

O professor Nuno Coelho, da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, pede divulgação do Seminário Justiça e Razão Prática em Aristóteles: Livros V e VI da Ética a Nicômaco. Ele ocorrerá em 30 e 31 de agosto de 2010 na Escola de Enfermagem do campus da USP de Ribeirão Preto.
Além deste professor, o evento contará com Antônio de Castro Caeiro (Universidade Nova de Lisboa), Diego Poole (Universidade Rey Juan Carlos) e Marco Zingano (FFLCH-USP).
Eis o cartaz do evento:
http://www.usp.br/fdrp/noticias/pag_folder_aristoteles.htm
Abaixo, envio a ligação para a chamada dos resumos de comunicações; o prazo vai até 8 de agosto. Os textos dos artigos completos deverão ser encaminhados posteriormente.
http://www.usp.br/fdrp/noticias/chamada_de_trabalhos_aristoteles.doc

sábado, 17 de julho de 2010

Leitura do Dia: Às hordas teocráticas

Em homenagem à horda teocrática que ora se levanta na Argentina e alhures:

O fato é que qualquer religião só pode influir na sociedade de um modo que chame as vistas do governo pela força de sua moral.
Ora, esta é progressiva, como as ciências e as artes; não tem pois cabimento uma religião de Estado que se pressupõe competente para dar satisfação a todas as aspirações morais, por meio de seus princípios consagrados, quando aliás o coração humano é sempre maior que todos os dogmas, e Deus maior que o coração do homem. Notemos ainda:
A Igreja católica já não pode ensinar e dirigir as inteligências, porque ela precisa aprender, não pode moralizar e polir os espíritos, porque a sua moral é hoje muito inferior à moral social aumentada, como esta se acha, de sentimentos novos que a Igreja não conhece.


Assim escreveu Tobias Barreto (1839-1889), o jurista e poeta (melhor jurista do que poeta) brasileiro, em notas de 1870 divulgadas nos Estudos de Direito I, volume das Obras Completas publicado pela Record e pelo Governo do Sergipe em 1991 (organização de Paulo Mercadante, Antonio Paim e colaboração de Luiz Antonio Barreto).

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Algo como um poema: Dentes com metacarpos

Algo como um poema, que fiz para o poeta argentino Julián Axat, sobre quem escrevi na primeira postagem deste blogue. O título disto é um dos versos do poema dele que lá traduzi.


Dentes com metacarpos

Para Julián

Meu amigo para diante do abismo,
procura os pais desaparecidos;
o que encontrará, não sabemos,
o quanto suas mãos mergulharão
na matéria viscosa do nada, ignoramos,
que tipo de nada, porém humano,
dele retirarão, resta saber,
embora imaginemos
que no fundo do abismo
outro se abra
e depois outro
indefinidamente.

Vejo que meu amigo murmura,
mas não comigo;
fala com suas mãos,
ensina-lhes que o abismo é uma terra
sobre a qual pisamos
todos os dias
e que pode ser escavado
da mesma forma que o tutano
dentro dos ossos.
Ele sussurra para as mãos
No mundo inteiro
quase só há desabrigo,
todos os refúgios da humanidade
compõem-se principalmente do abismo.
Os felizes que nele caem
parecem crer
que nada há mais profundo
do que o humano
e que os homens
desde sempre
foram filhos da queda.


Suas próprias mãos não acreditam nele.

Meu amigo salta para o abismo;
grito, mas a queda não ocorre,
retém-no na superfície
a superfície do nada.

Ainda a inexistência de Alberto Pimenta


Na extinta revista portuguesa Ciberkiosk, publiquei em 2002 um ensaio sobre o grande escritor português Alberto Pimenta. Os arquivos da revista foram mantidos por algum tempo no sítio da Universidade de Coimbra (a que pertenciam muitos de seus editores, como Fernando Matos Oliveira) e depois foram apagados.
Publiquei uma segunda versão deste ensaio, bem modificada, na antologia que organizei da poesia de Pimenta, A encomenda do silêncio, publicada em 2004 por Fabio Weintraub e Tarso de Melo na Odradek Editorial. No Café Moçambique, (http://silenciodospoetas.wordpress.com/), resgataram, sem que eu de nada suspeitasse, a primeira versão, que passa a aparecer aqui também. Honrou-me que ela tenha sido citada por Maria Irene Ramalho em Século de Ouro: Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX (organizada por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra, publicação de 2002 da Angelus Novus).
Não atualizei nada, embora Pimenta, com sua fecundidade invejável, já tenha lançado vários livros desde então; o último, o impressionante Que lareiras na floresta pela editora 7 Nós em 2010.
No entanto, a confirmar a atualidade da inexistência, foi lançado recentemente o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins (São Paulo: Leya, 2010). Conquanto Pimenta seja um dos colaboradores, a referência que Marco Alexandre Rebelo lhe faz é atribuída pela editora, no índice onomástico, ao escritor e historiador Alfredo Pimenta...
A foto, tirei-a em julho de 2007, em Lisboa, no pátio homônimo.



DA INEXISTÊNCIA DE ALBERTO PIMENTA
por Padua Fernandes

INEXISTÊNCIA, PARTE I:

Recente investigação científica realizada no Brasil demonstrou cabalmente a inexistência de Alberto Pimenta. A primeira fase da pesquisa foi encetada a partir do livro publicado desse autor nesse país, Discurso sobre o filho-da-puta, pela editora Codecri do Rio de Janeiro em 1983. A publicação possuía um posfácio de Eduardo Kac, que considerava “monumental” a “pequena obra”, “uma das mais iconoclastas do século” (p. 77). Decerto que sim. Completava o volume uma lista de publicações de Pimenta, em cinco partes: poesia, textos e textículos, espetáculos, ensaios e edições de textos e textículos.
Entretanto, a editora – pequena e ousada – deixou de existir. Vítima de contaminação do autor (inexistente) publicado, assim como o contato com a anti-matéria destrói a matéria? É preciso lembrar que esse foi o único livro de Alberto Pimenta já publicado no Brasil. A segunda verificação parece demonstrar que a fatal contaminação ocorreu.

INEXISTÊNCIA, PARTE 2:

Em 1999, foi publicada uma Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea pela Lacerda Editores do Rio de Janeiro, de pouco mais de quatrocentos e cinqüenta páginas, em que os organizadores [1] incluíram setenta e dois poetas (em que lugar do mundo verdadeiramente houve setenta e dois neste século?) poetas nascidos entre 1900 e 1965. O critério de contemporaneidade foi o de ter nascido do último ano do século XIX, 1900, em diante – questão cartorial.
A antologia, com essa estrutura, não poderia mesmo ser boa e quando os organizadores, no diálogo que faz as vezes de introdução, começam a discutir sobre Mário de Andrade, o leitor sabe que uma boa oportunidade de publicação foi desperdiçada. A já antiga Antologia de Poesia Portuguesa 1940-1970 de Maria Alberta Menéres e de E. M. de Melo e Castro (lançada pela Moraes Editores de Lisboa em 1979) era bem mais interessante e mostrava muito mais cuidado nos dados biobibliográficos (apesar de erros, como o nascimento de Pimenta posterior à publicação de Labirintodonte).
Na antologia brasileira, Alberto Pimenta não é sequer mencionado (conquanto já houvesse participado de Processo Lírico em Literatura Portuguesa, outra publicada no Brasil, organizada por Júlio Carvalho e Antônio Basílio Rodrigues, que abrangia de Martin Codax até autores do século XX), preterido por José Augusto Seabra, Fernando Assis Pacheco, Diogo Alcoforado e Maria Teresa Horta, que nasceram no mesmo ano. É possível que os organizadores, donos de versos que almejam o equilíbrio, tenham sentido que já havia poetas demais em 1937?
Creio que não, pois o ano de 1928 foi agraciado com cinco poetas (Fernando Guimarães, Fernando Guedes, Alberto de Lacerda, António Maria Lisboa e João Rui de Sousa), um a mais que 1937; a resposta reside na inexistência do aludido autor: a antologia, a editora e os próprios organizadores, para continuarem a existir, evitaram referir-se ao antiautor.

INEXISTÊNCIA, PARTE 3:

Declamei, no ano de 2000, o seguinte poema diante de professores brasileiros de poesia e literatura, bem como de poetas da mesma nacionalidade de consagração variada:

Sobretema a Alberto Pimenta

a puta
que ama todos os clientes

(o poeta
dentro da jaula dos macacos
via
os humanos aprisionados)

a puta
que faz o próprio amor seu cliente

(um soneto com quatorze cômodos
ou uma jaula com quatorze versos?
onde mora o ser, a linguagem,
é de onde o poeta foge)

a puta,
ou o amor cobra-te e não te devolve como troco

(chega de ofertas!
os macacos não riem para quem pagou entrada;
o preço do verso
não compra a poesia)

a puta diz
a metade do cu igual à metade do eu
é a metade do nu – o eu inteiro

(- mamãe, é tão lindo! por que tem que ficar preso?
- filhinho, você não sabe o que é bonito,
se estivesse solto seria horrendo;
a beleza é a própria jaula.)

o poeta é a puta
e não cobra de seus próprios filhos

mas o amor dentro da jaula
mas a poesia instalada nos cômodos
o poeta não tem nada que ver com isso
beija os clientes e foge com os macacos

Perguntaram-se: quem é Alberto Pimenta? Ignoravam. Não há como duvidar dos doutos e dos poetas. Ele, evidentemente, não era.

INEXISTÊNCIA, PARTE 4:

O último livro do poeta brasileiro Alberto Pucheu, A Vida é Assim (Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2001), que mereceu pré-publicação na edição 2000 de Ciberkiosk, foi posfaciado por Alberto Pimenta: “Assim é também a poesia…” [2] ; porém, como o livro termina com “Tradução livre de um poema inexistente de Lyn Hejinian”: “Comece aqui, para aprender a gostar de uma perda/…”, o posfácio acaba, destarte, por provar a inexistência de Alberto Pimenta.
Confirma-a ainda a referência, já no posfácio, ao “memento da liquidação lenta do eu” (p. 58).

INEXISTÊNCIA, PARTE 5:

Mas eis que Alberto Pimenta lança livro novo: Grande Colecção de Inverno 2001-2002 (Lisboa, &etc, 2001). Há que se conciliar tal fato com a pesquisa científica já terminada.
Fácil: em quase todo o Brasil, nessa mesma época, é verão; logo, Pimenta, comprova-se por essa última obra, não existe no hemisfério sul.
Já delimitado cientificamente o objeto da pesquisa, pode-se partir para a comprovação das hipóteses.

APLICAÇÕES METONÍMICAS DA INEXISTÊNCIA:

A inexistência, desde o início da obra de Alberto Pimenta, é uma estratégia poética. Alguém já viu O Labirintodonte? O bicho não existe, mas a obra sim: o primeiro livro de poesia do autor, publicado em 1970. Bicho, bípede, candidamente definido como “é um bicho/ de seu natural pensativo/ pois precisa/ de pensar/ para saber/ que está vivo.” (p. 51). Como insinua o autor em “Biografia” (p. 68), um animal pensativo como esse não é coisa que existisse em Portugal (o exílio é refúgio habitual do pensamento) no ano de 1970:

colaborou
manifestou
apreciou
indagou
condenou rezou
assinou rezou
defecou rezou
e assim passou
os seus dias
e as noites
quentes e frias

Logo, a inexistência é escolhida como estratégia poética por ser a estratégia política que melhor denuncia a falta de sentido, a burrice e a vacuidade desses anos autoritários. Veja-se o “teatro de guerra” (p. 62), em que a desaparição (isto é, a morte) corresponde a uma ascese degradada para a inexistência:

no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor esse fenece
esse fenece com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda hora
muda de artista.

mas de hora a hora deus melhora

Poética e política são irmãs siamesas na múltipla obra de Pimenta no âmbito de uma tradição contestatória (mais do que, na expressão de Eduardo Lourenço, uma tradição provocatória) [3]. E, por vezes, o melhor a fazer para contestar é nada dizer: a greve de palavras, que pode ser tão contundente quanto uma greve de fome, não significa uma greve de discurso. Em Ainda há muito para fazer (Lisboa, &etc, 1998), o autor deixa circular os clichês da propaganda, da política, da imprensa, em poemas “read & mad”, isto é, ready-made [4]. Pelo silêncio, por vezes, os poetas podem ser mais críticos.
Não era mesmo de se espantar que o silêncio, como estratégica política e poética de inexistência do autor, gerasse O Silêncio dos Poetas (Lisboa, A Regra do Jogo, 1978), ensaio que tem como principal referência teórica Adorno, que na sua célebre (e um pouco tonta) frase sobre a impossibilidade de poesia depois de Auschwitz, teve o mérito de destacar o caráter político do silêncio na arte. Não se esqueça o final (p. 185) desse livro que é um dos clássicos de Alberto Pimenta:

O caminho do verdadeiro silêncio vai pela recusa da palavra segura de si, da palavra auto-suficiente, da palavra que fala do seu falar: mas passa através da palavra que fala em busca de silêncio, em busca da sua morte.

O discurso agônico da palavra que busca inexistir. Por conseguinte, os acadêmicos que louvam O Silêncio dos Poetas e rejeitam ou ignoram a obra poética de Alberto Pimenta parecem-me não ter entendido nem o ensaio nem a poesia, pois ambos se encontram integrados na mesma estratégia. Por sinal, os gêneros tendem a desaparecer – outro momento da estratégia da inexistência – em vários pontos dessa múltipla obra (que inclui happenings e performances), como em 4 sonetos sobre o soneto, original combinação de ensaio, tradução e poesia visual, que culmina com “4 sonetos sem palavras, ou com ‘palavras silenciosas’” [5] : plantas de casas com quatorze cômodos.
Lembremos do segundo livro, Os entes e os contraentes (1971), que começa com o “discurso preliminar” (p. 7-14). Esse clássico poema tira o seu poder corrosivo do fato de ser composto de notas de rodapé a um texto feito apenas de sinais ortográficos; a vacuidade do discurso satirizado é notada tanto no fato de não existir o texto anotado e na presença das exuberantes e sarcásticas notas – uma dialética da inexistência, gargalhada sobre o nada.
Outro caso de uso estratégico e dialético da inexistência, e de caráter mais abertamente político, é o do poema anti-colonialista “lembranças da pátria” (p. 51), em que o enunciador lembra “a voz da pátria” nas vozes dos bichos que, ao contrário dos homens, continuam “fiéis a si mesmos”! Depois da cegonha, da abelha, do boi, do gato, “prossigamos a nossa evoca/ ção lembrando o elefante a urrar a u/ rrar além-mar como um desesperado.” A inexistência do elefante na Europa, no entanto relacionado por Pimenta aos animais europeus, confere todo o caráter contestatório do poema, denunciando a retrógrada apropriação portuguesa das terras e riquezas das então colônias africanas.
É de lembrar-se ainda o “retrato do soldado desconhecido” (p. 92) : corta-se uma árvore para fazer a escultura do soldado desconhecido, porém todas as tentativas saem irreconhecíveis; no fim, “a/ cabou-se-lhe a madeira. ficou só c/ om uma cavaca na mão. deitou fora.” ; a pungência do poema não advém simplesmente de a escultura não chegar a ter existido, mas de ela não poder existir e ser reconhecida como retrato, simultaneamente. A guerra, lucrativo exercício do nada, desafia a representação, ou melhor: representa-se pelo nada, pelo descarte do homem.
ascensão de dez gostos à boca (1977), outro clássico da poesia, demonstra como a estratégia da inexistência pode ser expressa por meio da repetição: “convival” (p. 14-17) revela o cotidiano agendado e repetido: “os pais de família vão trabalhar./ ao almoço vêm almoçar, e à tarde,/ tontos e tristes, vêm todos jantar.”, com duas variações no fim de semana e uma seqüência “ao gosto do leitor”. O trabalho do poeta foi praticamente nenhum no sentido da arte como artesanato; aqui, a arte é conceito. No entanto, a agenda repetitiva tem o valor contestatório de crítica ao cotidiano, muito mais eficiente do que se fizesse um soneto do tipo “Ó pais de família portugueses, acordai ou suicidai-vos! etc”, o que demonstra o acerto da inexistência (seja do autor, seja do convencional “poético”) como estratégia poética e política.
Curioso caso é o de “semiótica” (p. 107):

metade da palavra cu
é como metade da palavra nu.
mas a outra metade da palavra cu
não é como a outra metade da palavra nu.

segue-se portanto que metade do cu deve ser
diferente de metade do nu
enquanto metade do nu deve ser
semelhante a metade do cu

e do mesmo modo metade do nu deve ser
diferente da metade do cu
enquanto metade do cu deve ser
semelhante a metade do nu

também se poderia afirmar que metade do nu deve ser
semelhante a metade do cu
enquanto metade do cu deve ser
diferente de metade do nu

repetir, repetir e exercitar.

A estratégia da inexistência manifesta-se na aparência e na afirmação de que isto não é um poema, e sim um exercício de semiótica! Com a denegação (pois a negação é usada para afirmar o que aparentemente se nega), além da semiótica mesma, criticam-se as convenções sociais sobre nudez e pudor – vazias. O nenhum poema na verdade significa a nenhuma verdade dessas convenções – e o poema existe, pois, por transladar a sua inexistência na inconsistência do objeto criticado.
“paixão, morte e 1.ª aparição de frankenstein” (p. 57) realiza uma importante reviravolta no fim; Frankenstein, como se sabe, não existe, trata-se de personagem ficcional. O poema imagina-o, entretanto, preso e condenado não por um tribunal, mas pela manipulação televisiva da opinião pública do país. Morre na prisão e ressurge depois de morto:

como se sabe: frankenstein foi preso por denúncia,
[...]
eu não sei como frankenstein morreu. mas a nação
e o seu jornal (a « sua imagem ») sabem como frankenstein morreu.
corre agora o boato que o colapso do antigo
chefe da polícia foi causado pela aparição de fran
kenstein. mas quem garante que assim tenha sido?
bom, um tipo como frankenstein talvez. mas um tipo
como eu e tu que chances tem de aparecer depois
de morto? não, um tipo como eu e tu não sei que
chances tem depois de morto, para dizer a verdade, nesta nação
nem sei que chances tem depois de vivo, um tipo
como eu e tu, de resto era isso que frankenstein
não se cansava de dizer, todo o tempo, todo o tempo.

Revela-se, por conseguinte, que a invocação do personagem serviu para ressaltar a inexistência dos cidadãos comuns, “um tipo como eu e tu” “nesta nação”, em que não há chances durante a vida – coisa que a simples aparição do morto-vivo já denunciava: são todos menos do que mortos-vivos.
A multifacetada obra de Pimenta oferece diversos exemplos da estratégia da inexistência. Busquemos apenas mais um: “as notas da carraça” (Bestiário Lusitano, 1980) é composto apenas das palavras que rimam das quinze primeiras estrofes do Canto I dos Lusíadas, e de notas ao curioso poema assim formado, que o referem como descrição da vida dos piratas… A inexistência de Camões nas próprias palavras camonianas fez com que a voz anti-colonialista de Pimenta reverberasse na velha trombeta épica e imperialista.
Mais radical ainda foi outro experimento anti-camoniano, a "Metástase n.º 1" [6]; por meio da “transfusão’ como poética, o clássico soneto de Camões “Transforma-se o amador na cousa amada” foi convertido em outro soneto por meio de anagrama verso por verso. Assim, “Transforma-se o amador na cousa amada” foi convertido em “Ousa a forma, cantor! Mas se da namorada”; “Como a matéria simples busca a forma” em “ímpio amor mata o ser e busca famas. L. C.”.
Todas as letras do poema estão presentes no de Pimenta (deixando um L.C., sarcasticamente, como assinatura); Camões, porém, desapareceu; a estratégia da inexistência aqui advém de uma operação de desaparecimento. Afinal, o sentido do poema está em Camões não estar mais presente em suas próprias letras.


OUSA A FORMA CANTOR! MAS SE DA NAMORADA
NUA D’IMAGEM, TIDO RIO POR VIR TU
NÃO TENS, OH JOGA, SEM QUE IDE
IA E MENTE PASSEM, ADMITO, D’HARPEJO,

NADA, TERNO MAR, FALSAMENTE ILHAS. AMAS
DESEJANDO AMOR QUE CALE CIO, PARCAS
RIMAS E OS DESENCANTOS PEDEM
ODI ET AMO, CAOS, SIGLA. ALI PLANTAS

SETAS EM IDEIA, AINDA MEL, PURAS,
SEMENTE QUE CAÍDO SUJEITO COMO EU,
A LAMA MINHA INFORMAM. COM ACESSOS

TE PENSO E CATO O MÍNIMO. SE NADA
MUDA, VÊ QUE FRIO E PÓ E RISO E VOTO OU
ÍMPIO AMOR MATA O SER E BUSCA FAMAS.

L. C.


Veja-se a sátira ao lirismo camoniano em “namorada/ nua d’imagem” e “amor que cale cio, parcas/ rimas”; nas “falsamente ilhas”, alusão à Ilha de Vênus, e o verso final denuncia, enfim, a inexistência, por faltos de corpo (calam o cio), dos amores cantados por Camões. Nesse ponto, Pimenta faz com o bardo português o mesmo que Brecht com Dante em “Sobre os poemas de Dante a Beatrice”; a crítica de Pimenta, todavia, é muito mais radical do que a de Brecht, embora ambos usem o soneto, devido ao peculiar emprego da estratégia da inexistência. Brecht tão-somente comenta Dante, e por isso Benjamin [7] pode afirmar que o poeta alemão lançou um olhar “descontraído” ao passado no poema aludido; Pimenta, por sua vez, anula Camões ao conservar-lhe as letras; há humor, também, mas letal.
O pior para Camões, entretanto, talvez seja o próprio início, pois, como é sabido, a lírica desse autor raramente apresenta alguma ousadia formal, por muito dependente dos modelos italianos. Por essa razão, não era admirada por Fernando Pessoa; demonstra-o, entre outros, este excerto de texto de 1935 – um dos três últimos que publicou, lembra Robert Bréchon [8] – de Álvaro de Campos:

Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? [...] Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas – tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto em vida. [9]

Enfim, fala-se do último livro de Alberto Pimenta, a Grande Colecção de Inverno 2001-2002. A inesperada delicadeza do poema inicial, “a filha de Maria” (p. 12), não engana:


passo as mãos pelas pernas
a língua pelo lábio de cima
não sabe a nada

Alberto Pimenta não existe; quem existe, então? Neste livro dos prazeres (entende-se por que desejou chamá-lo de “flores do bem”), em que Catulo, Petrarca, Sade (e Mallarmé a reboque), Marcial, Wagner (a partir de O Ouro do Reno: “os sábios, honestos e santos/ entram nus/ e saem doirados”), Shakespeare são convocados, uma pista aparece na página 23: o bom bec de Paris, Villon. Ele retorna em trecho de um dos melhores poemas de Pimenta, “da ‘teoria dos conjuntos’, com brio” (p. 69):

se 1 é igual a 3
e a teologia
cristã
está certa
então
a pomba
tinha mesmo bom bec
e vinha
mesmo de Paris

Não comentemos a bela blasfêmia desse excerto, pois a teologia em Pimenta, por si só, daria um livro. Avancemos: após a belíssima tradução de trecho do segundo ato de Henrique IV, em que o Príncipe desanca Falstaff, “Thou art violently carried away from grace” [10], encerra-se o livro com “como diz o outro vilão (o François):/ …dont il me poise…”
Ora, não há dúvidas: trata-se do famoso quarteto escrito por Villon (Je suis François…), em que lamenta ser francês, pois a nacionalidade o fez poder ser condenado à morte pelo ferimento de François Ferrebouc; o verdadeiro agressor escapou dessa sentença porque era da Savóia [11] – questões de territorialidade e de estatuto pessoal da lei penal. Como se sabe, Villon apelou da sentença, comutada para o banimento por dez anos, e desapareceu de vista e da história. Há duas interpretações possíveis: ou Pimenta revela não existir e ser, na verdade, Villon ou…
Caso Villon tivesse se mantido escondido por todo esse tempo (desde 1463) para reaparecer como Alberto Pimenta (hipótese comprovável apenas por via de regressão), teríamos que falar antes numa estética do aparecimento do que numa da inexistência neste último livro.
Não creio ser esse o caso, porém. Na verdade, o autor que escreveu A arte de ser português identifica-se com Villon por sentir na sua pátria uma condenação injusta; a condenação à morte, sofrida pelo francês, já aparece em “desenvolvimentos operacionais” (p. 65-66):


filósofo A:
nada diz nada
nada diz nadas
nada diz pequenos nadas
nada diz grandes nadas
nada diz nada
e só acidentalmente o conhecimento se ocupa dos corpos

filósofo B:
tudo diz nada
tudo diz nada de nada
tudo diz tudo de nada
tudo diz tudo de tudo
tudo diz nada de tudo
e só acidentalmente o conhecimento se ocupa dos corpos
[...]
bom, o melhor é mesmo mandar os filósofos todos à merda
e procurar qualquer coisa mais interessante para ler:

Ay, but to die, and go we know not where;
To lie in cold abstruction and to rot


“Pois, mas morrer e ir não se sabe para onde,
Jazer em inerte frio e apodrecer;
[...]


Ao nada dos filósofos, Pimenta contrapõe a morte, a inexistência imposta como uma propriedade dos corpos; pois o excerto traduzido é a fala de Claudio em Medida por Medida, em que declara preferir uma vida em vergonha à sentença de morte. Uma alusão de Pimenta à arbitrariedade do Estado na existência da pena de morte ( um nada que é mais radical do que o dos filósofos!) Outra crítica a essa pena encontra-se em “Current issues in Community work”, um dos últimos poemas do livro (p. 79-87), em que Pimenta imagina o “dia internacional do condenado à morte” (p. 84):

Directores, Legisladores, Assistentes
conciliam
tradição
e modernidade
dedicam ao condenado a vida inteira.

E os portugueses, diz, já estão a trabalhar lá nos institutos de execução… Não há dúvidas: Pimenta, como Villon, também foi condenado à morte por sua pátria, e sua estratégia de sobrevivência foi a da inexistência, expressa por meio do milenar recurso do exílio. É sabido que o exílio, o desterro são formas de morte civil do indivíduo [12] e, por isso, devem ser enquadrados dentro da estratégia da inexistência.
Villon a seguiu de forma um pouco mais literal, pois desapareceu fisicamente e deixou sua obra, uma das maiores da língua francesa.
Pimenta, por alguns anos, teve que fazer o mesmo devido às conhecidas circunstâncias do longo período ditatorial português, e pôde voltar a seu país somente alguns anos depois da Revolução dos Cravos. Como o seu passaporte já havia sido cancelado, solicitou naturalização como cidadão alemão, que foi deferida; no entanto, ele declinou, devido à Revolução em Portugal, tornar-se o maior poeta alemão de língua portuguesa. Voltou a seu país e foi considerado apto para o serviço militar, apesar dos problemas de saúde e:

[...] claro que voltei para a Alemanha e claro que fiquei pela segunda vez refractário. Ou seja, fui refractário antes e depois do 25 de Abril. Com estas coisas todas, a relação com a pátria foi ficando um pouco abalada. [13]

Disse acima que Alberto Pimenta pertence a uma tradição contestatória; Pimenta cumpre o seu papel de contestador com uma estratégia da inexistência, que assume diversas facetas: desaparecimento do poético, do autor, do gênero, a repetição, o exílio.
A sua inexistência, lembra-se, é uma estratégia poética e política, contestatória nos dois campos; nesse sentido, pode-se bem dizer que Pimenta assume o papel daquele que contraria, ou seja, do Diabo, na concepção que Pessoa expôs em A Hora do Diabo (p. 28): [14]

« Mas o senhor vira tudo do avesso….
« É o meu dever, minha senhora. Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas o espírito que contraria.

É interessante nos referirmos neste momento ao conceito de sombra do psicólogo suíço Jung; a sombra, que representa os conteúdos psíquicos que são reprimidos porque inaceitáveis e que, conscientemente, não se percebe existirem – ou se prefere que não existam. Talvez seja esse o arquétipo que Pimenta represente hoje na literatura de língua portuguesa.
A inexistência, lembremos, é a finalidade do filho-da-puta, segundo o célebre Discurso, citado aqui da publicação brasileira (p. 64-65):

Na verdade, a vida do filho-da-puta

só é verdadeiramente compreensível em função da morte, só em função da morte é que se compreende tudo o que o filho-da-puta faz durante a vida, tudo o que faz ao longo da vida, o que faz ou não deixa fazer, ou finge que faz ou que deixa fazer; na verdade, só em função da morte é que tudo isso é compreensível. Na verdade, o filho-da-puta não vive para a vida, vive para a morte, vive para depois da vida e portanto para a morte, vive para a salvação da alam não durante a vida mas depois dela, ou vive o filho-da-puta, gosta de deixar, e até de fazer morrer, porque isso faz parte da sua disposição de espírito, da sua fatal disposição de espírito para não viver nem deixar viver.

A poesia, certamente, é algo que o filho-da-puta não quer deixar fazer. Portanto, a estratégia da inexistência, com sua relação metonímica com o exílio, a denegação, o desaparecimento, a morte, a sombra, mostra-se apropriada para indicar o papel social do poeta no presente estágio do capitalismo contemporâneo e nas presentes modas acadêmicas, como diz em Ode Pós-Moderna (Lisboa, &etc, 2000, p. 48), livro que é uma espécie de leitura pós-moderna do filho-da-puta:

fugir
……………………………………………..
método confirmado por estatísticas e astrólogos
gesto pós-moderno modista simbólico
por dentro e por fora
apreciado pelas delegações
do beiço esticado para a beleza do gesto
para o hipotético lugar que estava lá antes e onde agora
não está mais nada
…………………………………………
……………………………………………….

No entanto, a inexistência que lhe é atribuída por literatos, brasileiros ou não, é revidada pela ação do próprio Pimenta: a estratégia da inexistência. Aquilo que se reprime à luz do dia retorna a cada vez que um gesto, diante do brilho, produz a sombra. A inexistência, por conseguinte, e isto constitui a faceta heróica da poética de Pimenta, corresponde também a uma estratégia de permanência da poesia, como indica no seu último livro (p. 89):

um raio sedutor, um título de esperança
UM MORTO
JÁ NÃO PODE
MORRER

Como Frankenstein, segundo o poema antes citado, reaparece após a morte, ela não consegue morrer. Pois, ausente do mercado, do hit-parade, ela melhor pode, pois não comprometida (exceto, é claro, nos casos de ligações mais ou menos espúrias com o mundo acadêmico, com a imprensa, órgãos oficiais de financiamento e a música pop – nesses casos, porém, mal se trata de literatura, como recentes antologias de poesia contemporânea brasileira demonstram-no) formular críticas aos discursos oficias, da cultura de massa, morais, teológicos…
E os demonológicos? Voltemos ao Diabo: ele é uma das figuras arquetípicas relacionados à Sombra. Lembremo-nos de que a maior astúcia Dele está em convencer-nos de que não existe:

E Dante chamará por Homero poeta soberano e o diabo dará uma gargalhada e dirá que também já não há.[15]


NOTAS:

[1] Chamam-se Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno; o primeiro é o atual presidente da Academia Brasileira de Letras, que muito bem abrigaria o segundo, se este ainda não estivesse (biologicamente) longe de freqüentar geriatras. Pois, como bem disse Josué Montello, acadêmico que é um provecto romancista de livros idem: “Somos quarenta pessoas envelhecendo juntas. Não podemos escolher alguém muito diferente de nós.” (“Por que, afinal, a Academia Brasileira de Letras seduz tanta gente?”, reportagem de Eliane Azevedo para o Jornal do Brasil de 7/12/2001).
[2] O posfácio, bem como alguns poemas do livro, podem ser lidos na página de Alberto Pucheu: www.sites.uol.com.br/albertopucheu .
[3] A Nau de Ícaro, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17.
[4] Procedimento, aliás, que ocorre em sua obra inteira. Basta lembrar do final paradisíaco de A Visita do Papa (Lisboa, &etc, 1982 e na página O Silêncio dos Poetas: www.terravista.pt/mussulo/1917/apimenta.html ) , que ironicamente lembra que a igreja é um produto.
[5] Espacio/ Espaço Escrito, Badajoz, n. 11/12, otoño/invierno 1995, p. 79-83.
[6] Espacio/Espaço Escrito, Badajoz, n. 2, primavera/verano 1988, p. 13-15.
[7] Comentário aos poemas de Brecht, Inimigo Rumor, Rio de Janeiro; Lisboa: Viveiros de Castro Editora; Livros Cotovia, tradução de Marcus Vinicius Mazzari, 11: 151-179, 2.º semestre de 2001, p. 169.
[8] Étrange Étranger: une biographie de Fernando Pessoa. Paris: Christian Bourgois éditeur, 1996, p. 538.
[9] PESSOA, Fernando. Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1986, p. 270.
[10] Já “desenvolvimentos operacionais” (p. 65-66) termina com uma tradução de excerto de Medida por Medida, em que Claudio fala do temor à morte – foi condenado, veja-se que Pimenta simpatiza com os fornicadores shakespearianos – e “imprisonment” é traduzido como “EUA”, o que tem muita relação com as políticas de segurança pública adotadas por esse país – além, é claro, de sua política externa.
[11] Conforme H. B. McCaskie em sua tradução The Poems of François Villon, London: The Cresset Press, p. 234, 1946.
[12] Diferentemente do ostracismo, o desterro na Grécia Clássica gerava a morte civil (ERRANDONEA, Ignacio (dir.) Diccionario del Mundo Clásico, Madrid: Editorial Labor, vol. II, p. 1228-1229, 1954).
[13] Entrevista concedida ao DNA, suplemento do Diário de Notícias, p. 18, 18/04/2000.
[14] Lisboa, Assírio e Alvim, 1997.
[15] As 4 Estações: Discurso Muito Íntimo, Lisboa, &etc, 1984, p. 82.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Julián Axat e a pele viva da voz


O poeta e jurista Julián Axat nasceu em 1976, ano do último golpe militar na Argentina. Quando tinha sete meses de idade, seus pais foram sequestrados por agentes da repressão e nunca foram encontrados. Esse fato marca sua literatura e sua ação política: além de escrever e editar literatura relativa ao terror de Estado, ele integra a organização HIJOS, que reúne os descendentes dos desaparecidos políticos.
Desde 2008, trabalha como Defensor Público em La Plata, onde se ocupa do direito da infância e da adolescência. Na condição de editor, coordena um projeto de recuperação de documentos literários chamada Los detectives salvajes da editora de la Talita Dorada, de City Bell. Nela, foram publicados autores desaparecidos como Carlos Aiub (Versos aparecidos, 2007) e Joaquín Areta (siempre tu palabra cerca, 2010), o assassinado pela Triple A (o equivalente argentino do Comando de Caça aos Comunistas) Jorge Money (En la exacta mitad de tu ombligo, 2009). Também poetas contemporâneos foram incluídos, entre eles o próprio Axat e seu último livro, ylumynaria (2008).
Tirei esta foto enquanto Axat falava em São Paulo sobre essa experiência no Seminário Internacional Exílio e Migrações Forçadas: América Latina e Europa, em mesa com as professoras e historiadoras Priscila Ferreira Perazzo e Maria Luiza Tucci Carneiro (organizadora do evento, que ocorreu em abril de 2010 na ECA/USP).
Descobri a poesia de Axat em viagem à Argentina, vasculhando as estantes de poesia das livrarias. No número 22 de K Jornal de Crítica, publiquei resenha sobre os dois últimos livros desse autor ylumynarya e médium (Poética belli). Além desses, Axat lançou Los albañiles (La Plata, 1994), Peso formidable (Buenos Aires: Zama, 2003) e servarios (Buenos Aires: Zama, 2005).
Com a resenha, saiu a minha tradução deste poema de médium:


diário de viagem v.


às vezes
me meto no cemitério
e mergulho nos ossários

desesperado
navego
nado o nada

me afogo
me afogo entre fêmures e mandíbulas

armo puzzles impossíveis
dentes com metacarpos
omoplatas com espinhas

e assim passo a noite
escondido
cansado
de tanta originalidade
para armar elos perdidos

porém antes de converter-me
na fracassada “equipe-de-mim-mesmo-legista”

deixo os ossos de lado
e escrevo um poema

que me devolve
a pele viva de sua voz


Aqui pode-se ler o blogue da coleção Los detectives salvajes:
http://www.coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com/

A resenha que escrevi ainda pode ser lida na Weblivros, no número 22 do K:
http://www.weblivros.com.br/k-jornal-de-cr-tica/index.php

Realizei com o poeta a entrevista Julián Axat: Poesia e desaparição, editada por Fabio Weintraub, que pode ser vista no YouTube. Ele trata da memória, desaparecimento e poesia, testesmunho, luto e impunidade. Trata-se de uma literatura que dialoga com a justiça de transição, portanto, mas também com a biopolítica, pois o direito à memória e à verdade é configurado como a recuperação e a reconstrução dos corpos desfigurados pelo terror do Estado. Apresentei um trabalho sobre isto na UFSC, e logo que estiver disponível, deixo aqui a ligação. Por enquanto, fica apenas mais esta, a da entrevista:



http://www.youtube.com/watch?v=_suAfSOzr3U