A declaração, dada neste contexto de ataque oficial às garantias individuais (uma das previsões da lei de impeachment, por sinal, além da quebra de decoro do cargo), é muito séria porque Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, o mencionado pai, é um dos desaparecidos da ditadura militar.
A OAB publicou no mesmo dia uma nota que, entre outras coisas, expressa "solidariedade a todas as famílias daqueles que foram mortos, torturados ou desaparecidos, ao longo de nossa história, especialmente durante o Golpe Militar de 1964, inclusive a família de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, pai de Felipe Santa Cruz, atingidos por manifestações excessivas e de frivolidade extrema do Senhor Presidente da República.". A Associação Juízes para a Democracia publicou nota exigindo "a apuração e responsabilização do Presidente da República pelo cometimento do crime de responsabilidade por atentar contra a Constituição Federal, nos termos do artigo 85, inciso V":
A declaração do Presidente da República não somente escancara mais uma vez a sua total carência de valores e princípios éticos e inabilidade para o exercício do mais alto cargo do Poder Executivo, mas, concretamente, configura crime de responsabilidade nos termos do artigo 85, V da Constituição Federal.Deve-se lembrar que a indignidade oficial, neste campo, não se circunscreve a declarações, pois inclui ações e omissões do governo, como a intervenção na Comissão de Anistia, que de março a julho de 2019 apenas indeferiu pedidos (1381, segundo esta reportagem de jornal da direita, O Globo) e só reconheceu alguns poucos (26) porque foi judicialmente obrigada a fazê-lo. Inclui também o descumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, entre elas a demarcação, desintrusão e a recuperação ambiental das terras indígenas.
Entre essas recomendações, há esta que foi uma das determinações da condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (o da Guerrilha do Araguaia), que é a busca e a identificação dos desaparecidos da ditadura, bem como a responsabilização dos agentes responsáveis. Trata-se do que sofreu, entre outros, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira. Vejam o perfil biográfico do desaparecido político no portal da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/fernando-augusto-santa-cruz-de-oliveira.
Além dos documentos, ele inclui o vídeo da audiência pública realizada sobre este caso. Ele era um militante do grupo clandestino Ação Popular Marxista-Leninista, sequestrado pelo DOI-Codi do Rio de Janeiro com seu companheiro Eduardo Collier Filho. Quando foi vítima da ação criminosa do Estado brasileiro, era funcionário público do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo. Estava no Rio para visitar seu irmão.
Bolsonaro alegou à tarde daquele dia que a própria Ação Popular tê-lo-ia assassinado. A declaração causa estupor em razão de o próprio governo federal, por meio da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos ter reconhecido que o militante foi assassinado pelo Estado (ademais, ele já constava da relação de desaparecidos da lei 9140 de 1996), e que há documento da Aeronáutica, já descoberto, que informa sobre sua prisão, desmentindo completamente a versão falsa espalhada pelo ocupante da presidência. Vejam a matéria de Guilherme Amado.
Esse tipo de indignidade não é novo na carreira desse político, evidentemente. Apenas em relação a Santa Cruz, o atual ocupante da presidência da república, em 2011, na Universidade Federal Fluminense, havia declarado que "deve ter morrido bêbado em algum acidente de carnaval", o que já havia motivado um repúdio do filho do desaparecido (matéria do Vermelho).
A dignidade, hoje, chama-se impeachment.
Faço notar que se trata de um dos casos mais conhecidos dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar. A denúncia do desaparecimento em fevereiro de 1974 foi divulgada pela campanha da anistia. O Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1978 em São Paulo. Entre as resoluções do Congresso, estava "Publicar um dossiê com todas denúncias que foram trazidas ao Congresso"; os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos fariam-no anos depois:
Destaco, entre tantos outras fontes, este documento está preservado no acervo DEOPS-SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo porque, em agosto de 2019, completam-se quarenta anos da aprovação da lei de anistia, que veio para tentar calar a mobilização social que a campanha pela anistia conseguiu acender pelo país, que incluía, entre suas bandeiras, a localização dos desaparecidos. Esse era um dos pontos do "programa mínimo" da campanha, e que até hoje o Estado brasileiro não cumpriu. Faltou a justiça de transição.
A denúncia relativa a Fernando Santa Cruz trazia os dados conhecidos à época:
Notem as declarações de parlamentares e do célebre advogado de presos políticos Sobral Pinto.
Felipe Santa Cruz escreveu uma série de tweets falando do ataque feito por Bolsonaro à memória de seu pai (e dos combatentes contra a ditadura), destacando o recente falecimento de sua avó paterna, Elzita Santos Santa Cruz, que morreu aos 105 anos sem saber do paradeiro do filho, e sem desistir de tentar descobrir o que realmente ocorreu: https://twitter.com/felipeoabrj/status/1155918245687365633
Nestes casos, o luto suspenso, além dos efeitos familiares, gera nefastas consequências sociais (estamos as sofrendo no Brasil agora). Tais dimensões cruzam-se, em verdade, às vezes até nos próprios nomes dos integrantes da família diretamente atingida pelo terror de Estado. O presidente do Conselho Federal da OAB foi registrado com o codinome de outro desaparecido político. Pode-se ler a respeito no relatório da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, de Pernambuco: "Ainda em vida, Fernando Santa Cruz e Ana Lúcia Valença deram ao seu único filho o nome que Umberto Albuquerque Câmara Neto usava na clandestinidade: Felipe.". Este é outro dos desaparecidos políticos; vejam seu perfil no acervo da Comissão Dom Hélder Câmara: https://www.comissaodaverdade.pe.gov.br/index.php/umberto-albuquerque-camara-neto-pdf. Felipe Santa Cruz carrega tanto em seu nome quanto no sobrenome a memória dos desaparecidos políticos. Nomes e memórias não se calam, eles conclamam à ação.
A dignidade, hoje, chama-se impeachment. Entre as razões, está o respeito pelos mortos e desaparecidos, pelas suas famílias e a sociedade brasileira; ressalto que foi exatamente esse um dos motivos, envolvendo a mesma pessoa que ora ocupa a presidência da república, pelo qual o processo de impeachment de 2016, triste momento de homenagem à tortura e à execução extrajudicial, foi indigno.
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