O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Desarquivando o Brasil CLIV: Desaparecidos: Fernando Santa Cruz e a dignidade da presidência da República

A dignidade, hoje, chama-se impeachment. O atual ocupante da presidência da república, Jair Bolsonaro, atacou em 29 de julho de 2019 Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Indignado porque a OAB conseguiu impedir a violação do sigilo profissional dos advogados, necessário para o direito de defesa, ele afirmou que, se Santa Cruz "quisesse saber como é que o pai dele desapareceu durante o período militar, conto pra ele. ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele." (nesta ligação, a matéria da Folha de S.Paulo; nesta outra, o vídeo).
A declaração, dada neste contexto de ataque oficial às garantias individuais (uma das previsões da lei de impeachment, por sinal, além da quebra de decoro do cargo), é muito séria porque Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, o mencionado pai, é um dos desaparecidos da ditadura militar.
A OAB publicou no mesmo dia uma nota que, entre outras coisas, expressa "solidariedade a todas as famílias daqueles que foram mortos, torturados ou desaparecidos, ao longo de nossa história, especialmente durante o Golpe Militar de 1964, inclusive a família de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, pai de Felipe Santa Cruz, atingidos por manifestações excessivas e de frivolidade extrema do Senhor Presidente da República.". A Associação Juízes para a Democracia publicou nota exigindo "a apuração e responsabilização do Presidente da República pelo cometimento do crime de responsabilidade por atentar contra a Constituição Federal, nos termos do artigo 85, inciso V":
A declaração do Presidente da República não somente escancara mais uma vez a sua total carência de valores e princípios éticos e inabilidade para o exercício do mais alto cargo do Poder Executivo, mas, concretamente, configura crime de responsabilidade nos termos do artigo 85, V da Constituição Federal.
Deve-se lembrar que a indignidade oficial, neste campo, não se circunscreve a declarações, pois inclui ações e omissões do governo, como a intervenção na Comissão de Anistia, que de março a julho de 2019 apenas indeferiu pedidos (1381, segundo esta reportagem de jornal da direita, O Globo) e só reconheceu alguns poucos (26) porque foi judicialmente obrigada a fazê-lo. Inclui também o descumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, entre elas a demarcação, desintrusão e a recuperação ambiental das terras indígenas.
Entre essas recomendações, há esta que foi uma das determinações da condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (o da Guerrilha do Araguaia), que é a busca e a identificação dos desaparecidos da ditadura, bem como a responsabilização dos agentes responsáveis. Trata-se do que sofreu, entre outros, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira. Vejam o perfil biográfico do desaparecido político no portal da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/fernando-augusto-santa-cruz-de-oliveira.
Além dos documentos, ele inclui o vídeo da audiência pública realizada sobre este caso. Ele era um militante do grupo clandestino Ação Popular Marxista-Leninista, sequestrado pelo DOI-Codi do Rio de Janeiro com seu companheiro Eduardo Collier Filho. Quando foi vítima da ação criminosa do Estado brasileiro, era funcionário público do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo. Estava no Rio para visitar seu irmão.
Bolsonaro alegou à tarde daquele dia que a própria Ação Popular tê-lo-ia assassinado. A declaração causa estupor em razão de o próprio governo federal, por meio da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos ter reconhecido que o militante foi assassinado pelo Estado (ademais, ele já constava da relação de desaparecidos da lei 9140 de 1996), e que há documento da Aeronáutica, já descoberto, que informa sobre sua prisão, desmentindo completamente a versão falsa espalhada pelo ocupante da presidência. Vejam a matéria de Guilherme Amado.
Esse tipo de indignidade não é novo na carreira desse político, evidentemente. Apenas em relação a Santa Cruz, o atual ocupante da presidência da república, em 2011, na Universidade Federal Fluminense, havia declarado que "deve ter morrido bêbado em algum acidente de carnaval", o que já havia motivado um repúdio do filho do desaparecido (matéria do Vermelho).
A dignidade, hoje, chama-se impeachment.
Faço notar que se trata de um dos casos mais conhecidos dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar. A denúncia do desaparecimento em fevereiro de 1974 foi divulgada pela campanha da anistia. O Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1978 em São Paulo. Entre as resoluções do Congresso, estava "Publicar um dossiê com todas denúncias que foram trazidas ao Congresso"; os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos fariam-no anos depois:


Destaco, entre tantos outras fontes, este documento está preservado no acervo DEOPS-SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo porque, em agosto de 2019, completam-se quarenta anos da aprovação da lei de anistia, que veio para tentar calar a mobilização social que a campanha pela anistia conseguiu acender pelo país, que incluía, entre suas bandeiras, a localização dos desaparecidos. Esse era um dos pontos do "programa mínimo" da campanha, e que até hoje o Estado brasileiro não cumpriu. Faltou a justiça de transição.
A denúncia relativa a Fernando Santa Cruz trazia os dados conhecidos à época:



Notem as declarações de parlamentares e do célebre advogado de presos políticos Sobral Pinto.
Felipe Santa Cruz escreveu uma série de tweets falando do ataque feito por Bolsonaro à memória de seu pai (e dos combatentes contra a ditadura), destacando o recente falecimento de sua avó paterna, Elzita Santos Santa Cruz, que morreu aos 105 anos sem saber do paradeiro do filho, e sem desistir de tentar descobrir o que realmente ocorreu: https://twitter.com/felipeoabrj/status/1155918245687365633
Nestes casos, o luto suspenso, além dos efeitos familiares, gera nefastas consequências sociais (estamos as sofrendo no Brasil agora). Tais dimensões cruzam-se, em verdade, às vezes até nos próprios nomes dos integrantes da família diretamente atingida pelo terror de Estado. O presidente do Conselho Federal da OAB foi registrado com o codinome de outro desaparecido político. Pode-se ler a respeito no relatório da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, de Pernambuco: "Ainda em vida, Fernando Santa Cruz e Ana Lúcia Valença deram ao seu único filho o nome que Umberto Albuquerque Câmara Neto usava na clandestinidade: Felipe.". Este é outro dos desaparecidos políticos; vejam seu perfil no acervo da Comissão Dom Hélder Câmara: https://www.comissaodaverdade.pe.gov.br/index.php/umberto-albuquerque-camara-neto-pdf. Felipe Santa Cruz carrega tanto em seu nome quanto no sobrenome a memória dos desaparecidos políticos. Nomes e memórias não se calam, eles conclamam à ação.
A dignidade, hoje, chama-se impeachment. Entre as razões, está o respeito pelos mortos e desaparecidos, pelas suas famílias e a sociedade brasileira; ressalto que foi exatamente esse um dos motivos, envolvendo a mesma pessoa que ora ocupa a presidência da república, pelo qual o processo de impeachment de 2016, triste momento de homenagem à tortura e à execução extrajudicial, foi indigno.

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