Nesta década, alguns poetas brasileiros têm colocado o tema da falta de dinheiro, ainda mais atual com a extrema-direita no poder, no centro de seus livros. Embora a questão não seja nova na poesia deste país, nem sempre se tiram consequências formais disso. O conhecido poema de Álvares de Azevedo, "Minha desgraça", avisa que "Minha desgraça, não, não é ser poeta", e sim, revela-o no final, "É ter para escrever todo um poema/ E não ter um vintém para uma vela."
A experiência do poeta e a da precariedade material encontram-se, dessa forma, apenas acidentalmente conjugadas. Outra postura é a de ver na própria poética uma experiência de precariedade. Creio que alguns poetas que têm apontado para essa direção, como Heyk Pimenta (A serpentina nunca se desenrola até o fim, 7 Letras, 2015). Outro autor, que somente li agora, e cujo primeiro livro ainda não encontrei, é Gilcevi, com seu Retrato do poeta quando devedor de aluguel ou poeta bom é poeta morto (Letramento, 2018).
O livro começa com "exú tranca-rua", que diz "deixe a poesia a putarya de lado um tempo/ e se concentre em ganhar e guardar dinheiro" (p. 15), mas ele não fez isso e escreveu este livro... Note-se já desde esse primeiro poema um uso idiossincrático da ortografia, com y e k em algumas palavras, esse acento em Exu e até um acento nostálgico em diarreia, em outro poema. Na primeira parte, "Perypheréias (T.E.A.)", o autor parece aludir a uma ortografia antiga para sugerir o caráter histórico do racismo.
Assim, em "Linhagem", "BR/ Beira-de-estrada", o final é um canto de calango: "ele era zé pinguela"; uma outra tessitura, com esta marca de classe social, é acolhida por esta poesia. Em "retrato do poeta pardo tentando escapar do navio negreiro que ficou encalhado no subúrbio", temos a questão do racismo: "acabou de chegar mais um carregamento/ a fila começa a se formar nas bocas/ pombos e anjos com diarréia se empuleiram nos barracos/ um deus brasileiro - botokudo kaboklo yorubanto/ te dá a mão e te aponta o caminho" (p. 29, que termina com citação que já virou clichê, "o mantra roseano/ o que a vida quer da gente é coragem" (p. 30).
O clichê, porém, torna-se outra coisa nesta poesia: depois da descrição de uma família em que "seu tio está fumando crack e roubou todos os seus discos" e "o pai está desmaiado sobre o próprio vômito" (p. 29), bem como do sistema racista que leva a esses destinos individuais, a experiência periférica transforma a citação de Guimarães Rosa e a coloca sob a luz da ironia.
Creio que se pode ler nesse mesmo diapasão a paródia periférica de Drummond, o poema "um varão que acaba de nascer ou da meritocracia": "quando nasci/ um anjo brasileiro saiu da sombra/ me deu 10 reais/ um revólver/ um livro// e disse/ bicho, agora é contigo" (p. 28).
Ainda nesta primeira parte, o poema "Travessia" (p. 21), com grande economia verbal, conta uma história listando o nome de rios, do Aqueronte ao Rio das Mortes. Nela temos também uma paródia de documento oficial, "registrado em cartório", que termina inconcluso, embora notemos que se trata de uma falência de alguém que perdeu os brilhantes e os escravos "aos cinco dias de janeiro de 1884/ nesse distrito de diamantina" (p. 25).
A consciência do racismo aparece como um elemento da formação pessoal, além da coletiva, em "retrato do poeta em 1992": "precoce pária fuça afundada na zona oeste/ melhor evitar o beco dos pretos/ jurado de morte na praça do cristo/ olhos de índios/ mirando sóis noturnos no cortiço" (p. 32). Problemas dos movimentos de identidade também são aludidos nesta seção do livros: "os pretos me aceitam branco/ os brancos me tratam servo/ a certidão atesta pardo" (p. 34).
A segunda parte do livro, "A manada de búfalos", ressalta o caráter autoritário do atual momento político no Brasil: "tudo aconteceu muito rápido/ numa semana/ os fascistas tomaram o poder/ na outra ana foi embora" (p. 41, "2016"). Por sinal, a obra termina com uma "oração do cidadão de bem", que parece um texto para performance que consiste em longa invocação a epítetos de Deus até o fim em caixa alta: "VAMOS MATAR A TODOS!/ QUE ASSIM SEJA MESSIAS BOLSONARO 2018" (p. 167). Este, com outros poemas do livro, foi publicado pelo blogue Escamandro, que os chamou erroneamente de inéditos. Os comentários aos poemas são negativos - problema estético e político desses leitores daquele blogue. Outros poemas saíram na Mallarmargens.
Há muitas referências à literatura, como no poema título, que são bem divertidas: "não tinha prendas/ ouro gado fazendas/ entre a rosa/ e a promissória/ tinha 52 kilos/ (será que fui eu/ quem enterrou o/ senhorio?)/ e um velho exemplar/ de crime e castigo" (p. 42). Às vezes há um ar drummondiano: "os homens que têm fome e são mansos/ esquecidas do molotov e da pedra/ suas mãos forjam versos/ fabricam notícia/ empilham caixas" (p. 44). No entanto, a linhagem assumida é a de Roberto Piva (p. 32).
A linguagem de Gilcevi pode ser bem crua, o que talvez venha daquela poética da precariedade: "já ada gostava era de homo/ cuspia na pica e dizia/ se é cu eu arrombo" (p. 67; notem a sutileza da rima toante). Há alguns poemas curtos com título "koraçãunm", com imagens que descrevem a víscera, como "rapariga-sem-prega" (p. 70); "caixa de esgoto/ descarga estragada" (p. 87). No entanto, o lirismo não lhe é desconhecido: "um cheiro ruim que deve ser o cheiro do medo dos pássaros" (p. 66).
A terceira seção "guimbas" do livro, toda de poemas curtos, também apresenta essa linguagem, como em "muito prazer" (p. 93), praticamente um cartão de visitas do autor:
eu sou poeta
pau no seu cu
etcetera
Uma das coisas mais simpáticas neste livro é o humor: "antena da raça" que descreve um homem saindo da prisão e confirmando que o irmão é um poeta: "ele sorriu e disse sempre soube/ que você era um covarde" (p. 50); outro exemplo: "leminski cachorro louco de calças arriadas/ e penso/ agora só falta escrever uma obra-prima" (p. 60); "e troque esses lençóis/ não vou me deitar em cima do cheiro/ dessas suas vadias" (p. 65); ou a história do cara que só consegue escrever o romance depois de abandonar o casamento, mas o poema termina com o parecer de recusa da editora ("237 páginas", p. 81-85); ou, em outro momento de deboche com o meio literário, "fez uma suruba de dois dias/ com aquelas estudantes de letras que te achavam genial" (p. 89).
"Histórias de Geová" contém historias privadas de perda da fé cristã; algumas têm humor, como a lista de lembranças em "geová souvenirs II": "os duzentos prepúcios de mical/ dentro do ventre da baleia/ jonas não ouviu as sereias/ a pedra - única/ pontiaguda -/ que atingiria o rosto da puta" (p. 132).
Algumas das imagens são bem surpreendentes: "mesmo faminta/ a lagarta hesita/ ante à árvore da vida" (p. 138, "éden"), ou todo o poema "a festa", que descreve uma execução por enforcamento que faz a morte fugir dos homens "que gargalham atiram/ ovos tomates" (p. 139).
As últimas seções são curtas. "Noturno 4pontozero" compõe-se de um só poema, um "poema dos quarenta anos"; naturalmente, um quarteto. "A Rainha" compõe-se de dois poemas, que acabam se revelando de amor.
No fim, a oração do homem de bem cristão que ganhou a eleição em 2018.
Eu não gostei de tudo. Às vezes, a influência de Piva é pesada demais, como em "retrato do poeta pensando sozinho" (p. 54-56); "retrato do poeta recebendo a notícia da morte do pai" seria uma versão fraca e heterossexual daquele poeta (p. 78-79). Ademais, nem sempre o humor funciona; o poema pode ser só uma piada velha, como o do idoso que morre trepando: "mas que gozada fulminante" (p. 130).
Pequenos senões de um livro vivo como um testemunho destes tempos. Nesta entrevista dada a Jéssica Malta, Gilcevi confessa que "Achei que não estaria vivo para assistir novamente a ascensão da extrema direita e do fascismo e tem uma parte do livro que fala disso". Esta perplexidade está viva neste livro. Ela integra a precariedade que mencionei, condição necessária para que se possa reagir, na política e/ou na poética, ao estado de coisas.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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