O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 31 de agosto de 2019

Desarquivando o Brasil CLVI: Os povos indígenas no Brasil, os 40 anos da lei de anistia e o governo anti-indígena de hoje

Acabou no dia 28 de agosto o Seminário "Os 40 anos da anistia e os legados das ditaduras na América Latina". Quase toda a programação foi filmada pelo CAAF da Unifesp e pode ser vista por meio desta ligação: https://m.facebook.com/CAAFUnifesp01/?locale2=pt_BR
[Nota: o CAAF não incluiu a primeira parte da mesa, com a minha fala, a de Yamila Goldfarb e de Marisa Fernandes entre os vídeos. Porém lea pode ser vista nesta ligação.]
Foi a primeira vez que ajudei na curadoria de uma exposição, que contou com homenagens a Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, e a Therezinha Zerbini, fundadora do Movimento Feminino pela Anistia.
Participei de uma mesa sobre os "não sujeitos da anistia". Como se sabe, apesar das informações falsas, a lei 6683 de 1979 deixou várias pessoas de lado, entre elas vários presos políticos, estrangeiros que foram expulsos e também diversos militares.
Nenhuma dessas categorias foi objeto da mesa, porém, e sim os povos indígenas, os camponeses, homossexuais e negros. Com a coordenação de Desirée Azevedo, Yamila Goldfarb tratou da violência no campo (ela integrou o grupo de trabalho que elaborou o capítulo sobre a "repressão no campo" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" e foi autora colaboradora da Comissão Camponesa da Verdade), Marisa Fernandes falou de seu capítulo na obra pioneira Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (organizado por James Green e Renan Quinalha; pode-se também ver sua apresentação em vídeo na Comissão "Rubens Paiva": http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap7.html) e Amauri Mendes apresentou seu testemunho como um negro universitário e de esquerda na época da ditadura.
Eu quis tratar de como o movimento para a anistia, nos anos 1970, não se ocupou dos povos indígenas. Referi-me a Ailton Krenak e a União das Nações Indígenas, e ao fato de a Comissão de Anistia ter recebido questões desses povos apenas nesta década.
Não pude chegar à análise das decisões da Comissão, tampouco analisar as recomendações do volume II do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, pois havia pouco tempo. Concentrei-me em mostrar e explicar documentos, enfatizando que cada afirmação feita nos relatórios era respaldada por provas (não eram informações falsas presidenciais), para demonstrar o caráter político dos crimes cometidos contra aqueles povos.
O governo dos Estados Unidos sabia dos crimes cometidos para a "colonização" do interior do Brasil. Neste telegrama de 1968, um dos documentos que incluímos no relatório da Comissão "Rubens Paiva", relata-se que as atrocidades eram ainda piores do que aquilo que fora noticiado e fora objeto de rumores, segundo o que uma fonte não identificada do Itamaraty contou ao embaixador dos EUA no Brasil, John Tuthill.


Alguns documentos sobre que falei estão no relatório da Comissão "Rubens Paiva", onde trabalhei. Outros, fui descobri-los depois. Já escrevi sobre este relatório da DSI (Divisão de Segurança e Informações, um braço do Serviço Nacional de Informações - SNI) do Ministério da Justiça, elaborado em 1984, perto do fim do governo do ditador Figueiredo. É chocante ler, neste documento confidencial, que as "entidades de apoio à causa indígena" adotariam a "teoria foquista", como se os índios e os indigenistas fossem guerrilheiros que lessem muito as obras de Che Guevara. Quando mencionei mais esse momento em que os povos indígenas e seus apoiadores eram considerados ameaças à segurança nacional, houve historiadores e militantes na plateia que riram.


Era ridículo, mas era oficial. Outro documento confidencial sobre que já escrevi, do governo Sarney, tutelado pelos militares, era esta memória da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional. Tive de enfatizar que os "temas de maior interesse da SG/CSN" na Assembleia Nacional eram o Conselho de Segurança Nacional, a Energia Nuclear (previsivelmente) e... "Indígenas":


Nesse tema, porém, o CSN e o governo foram derrotados pela mobilização indígena, conforme conto neste artigo, "Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Constituinte", que escrevi a partir desses documentos confidenciais da época de Sarney.
A mentalidade anti-indígena das Forças Armadas, no entanto, parece ter permanecido. As declarações militares repletas de absurdos antropológicos na época do julgamento no Supremo Tribunal Federal da demarcação da TI Raposa Serra do Sol lembraram-nos cruelmente da profunda ignorância oficial sobre os povos originários. Agora, essa ignorância e esse absurdo estão na presidência da república - e continuam oficiais, evidentemente.
Lembrei de antigas declarações anti-indígenas do atual ocupante da presidência, Jair Bolsonaro (como a fantasia de que as terras indígenas, que ele, ignorantemente, chama de reservas, formariam "novos países"). Aquelas palavras estão sendo convertidas em atos neste governo, que tem priorizado os ataques àqueles povos (no dia anterior, a Folha de S.Paulo havia publicado a matéria "Em meio a crise, Bolsonaro prioriza ataques a reservas indígenas em reunião com governadores da Amazônia"). Mencionei também os documentos vazados pela Open Democracy que revelam os "planos devastadores para a Amazônia". Vejam a matéria e o ataque ao "indigenismo", ao "quilombolismo", ao "ambientalismo"; levando em conta que hoje há questões tecnológicas novas, como defesa cibernética, parece que estamos no CSN dos anos 1970, inclusive na chamada "integração da Calha Norte".
Como será publicado um livro do Seminário dos 40 anos da lei de anistia, espero escrever um capítulo sobre essas questões.

P.S.: Escrevi um breve texto para o Brasil De Fato anunciando o seminário, "40 anos da Lei de Anistia e as continuidades do autoritarismo".
Falei com a repórter Marcella Fernandes do HuffPost Brasil, em matéria que provavelmente deve seu interesse às declarações de Edson Teles: "Por que a memória da ditadura no Brasil é diferente de outros países da América Latina"

P.S.2: O vídeo da plaestra: Seminário "Os 40 anos da anistia e os legados das ditaduras na América Latina" (2019). Vídeo do CAAF-Unifesp.

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