O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 24 de agosto de 2019

Uma nota sobre o fim da Arlequim e os encontros não mediados por algoritmos

Acho que a última vez que escrevi neste blogue sobre o Rio de Janeiro foi por causa do incêndio do Museu Nacional. Normalmente menciono essa cidade, na qual não moro mais, por causa de eventos de terrorismo de Estado ou de lugares que fecharam ou foram destruídos. Isto é, sobre perdas e danos. Desta vez, rascunho esta nota sobre o encerramento da Arlequim, que ocorreu em maio de 2019. Na época, não consegui fazê-lo.
Há alguma importância no encerramento de uma loja? Creio que sim, porque o seu perfil era único naquela cidade; no plano pessoal, para mim, há uma memória afetiva. Nela fiz quase todas minhas compras do Natal de 2018. Lembro quando começou, pois eu trabalhava no Centro do Rio de Janeiro, perto do Paço Imperial. Lembro também quando ela teve uma filial em Ipanema, que acabou fechando anos atrás.
A Blooks, que é uma ótima livraria, passou a ocupar o lugar, ao qual ainda não voltei.
Estas fotos do Guia Cultural do Centro do Rio dão certa ideia do que foi a Arlequim na época em que ela ocupava toda a parte do Paço Imperial, este sítio histórico do Brasil, voltada para a Primeiro de Março. A definição é exata: "Inserida no histórico Paço Imperial, a Arlequim, que na época de sua inauguração, em 1993, era apenas uma conceituada loja de CDs, cresceu e se transformou em um conjunto harmônico de livraria, café e restaurante com ares de bistrô." Além disso, havia as apresentações de música e recitais de literatura.
Tratava-se, principalmente, de um local de encontro. O sítio virtual da livraria apresentava a extensa agenda cultural; poeticamente, nele restou apenas esta interpretação de "Lamento no morro" por Tomas Improta, Fredo Gomes, Ricardo Pontes, José Arimatéia e Rodrigo Villa: https://www.arlequim.com.br/. O canal no youtube ainda traz algumas das apresentações: https://www.youtube.com/user/1Arlequim/videos
Para mim, Arlequim foi principalmente um local de música, para descobrir o Conjunto de Música Antiga da UFF, o Anima, o Diego Schissi Quinteto, o Ensemble Clément Janequin e uma longa série.
Acreditem que era um lugar com música de diversos séculos e estilos. Aqui, alguns dos discos que comprei no fim de 2018, de Steve Reich (por Kristyan Järvi; apesar do grande maestro, não gostei muito) a música de terreiro (Glória Bonfim), mas também Franco Fagioli cantando árias de Rossini e a ópera Serse de Händel. Além destes, faltam o Sidney Miller nas vozes de Joyce Moreno e Alfredo Del-Penho e o disco Puccini de Roberto Alagna e Alexsandra Kurzak, que estão em outro lugar.


Como livraria, havia muitas obras sobre a cidade do Rio de Janeiro, música e cinema, embora não se limitasse a essas áreas. Por exemplo, comprei para sobrinhas no fim do ano Valsa brasileira, da economista Laura Carvalho e A descoberta do mundo, de Clarice Lispector.
O que o livreiro Márcio Pinheiro, um dos sócios da loja, disse em 2018 para a Associação Estadual das Livrarias do Rio de Janeiro parece-me importante:
Houve os 130 anos da Abolição da Escravatura e fora o dicionário da Lilia Schwarcz pouca coisa foi  reeditada. Montamos uma seção grande sobre a Abolição, até porque a Lei Áurea foi assinada no Paço Imperial. Estou em contato com a editora Escrituras para montar uma seção sobre cangaço; esse ano há a efeméride de nascimento e morte de Lampião. Vamos dar destaque às obras já lançadas, não são novas edições. Mas o cangaço é um tema importantíssimo na nossa história. Montamos a livraria pelo interesse e pela importância do assunto. Se me pautasse pelos números colocaria o Augusto Cury na frente, mas para nós é muito mais importante ter o dicionário da Lilia Schwarcz, a biografia que saiu do Rafael Rabelo [Raphael Rabello]. É um comércio de fato; nossa questão aqui é a venda, mas tem uma questão cultural; o papel cultural que as livrarias acabam desempenhando.
Ele achava que a livraria se adaptaria ao mercado digital se a economia brasileira melhorasse, o que não pôde ocorrer. O eleitorado brasileiro escolheu em 2018 não só a idolatria aos crimes de lesa-humanidade, mas a recessão e o desmantelamento do Estado.
O mencionado papel cultural desempenhado pelas livrarias físicas dessa natureza, com eventos culturais, inclui propiciar encontros que não são determinados por algoritmos. Trata-se não só de encontrar mercadorias sem essa mediação automática, mas de ver pessoas. A insociabilidade das redes sociais, fomentada pelas bolhas ideológicas, não é de forma alguma contrabalançada pelas lojas virtuais. Pois o algoritmo não serve apenas para reduzir as relações interpessoais (considerando ainda que boa parte das pessoas são robôs) a transações e valores de troca, mas para transformar as pessoas (que alegremente, docilmente apresentam e oferecem seu preço) em bens avaliados em termos financeiros.
Escrever sobre o Rio de Janeiro, falar sobre a perda. Desta lista de 2016 (não faz tanto tempo assim, embora já fosse a derrocada do país) de cinco livrarias do centro do Rio, vejam que oitenta por cento já fechou: https://diariodorio.com/as-5-melhores-livrarias-do-centro-do-rio/. Não cliquem na ligação indicada da Folha Seca, que parece estar caindo em um sítio malicioso. Esta livraria, porém, continua a existir.

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