O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Memória como reserva de mercado VI: a inconstitucionalidade do projeto da ANPUH

I

O projeto que cria uma reserva de mercado para os detentores de diploma em História (de graduação ou de pós-graduação), em lamentável iniciativa da Associação Nacional de História (ANPUH), recebeu em 7 de agosto de 2013 aprovação pelo Senado Federal, e hoje tramita na Câmara dos Deputados. No contexto da lógica corporativista que domina o sistema político nacional, esse projeto é mais um dos exemplos teratológicos de reserva de mercado, seja para filósofos, manicures, DJ, astrólogos etc.: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html
Já escrevi como o projeto criaria uma barreira contra outras profissões para a pesquisa: sua abrangência impediria, por exemplo, que juristas pudessem escrever e ensinar sobre história do direito, físicos sobre a história da física etc. Escrevi, em outra ocasião, que "Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.
E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte.html
É exatamente isso o que se pretende, e o historiador da ciência Roberto de Andrade Martins logrou verificá-lo: a Revista Paraibana de História, mantida pela seção daquele Estado da ANPUH, resolveu impedir a publicação, em suas páginas, de artigos de quem não possua o diploma em história. Martins descobriu que a revista tinha decidido aplicar o projeto de reserva de mercado antes mesmo de ele ser aprovado: http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/08/somente-diplomados-em-historia-poderao.html?spref=fb
Dezenas de manifestações, do exterior e do Brasil, levantaram-se contra o projeto, e podem ser lidas no blogue de Roberto Martins: http://profissao-historiador.blogspot.com.br. Entre os opositores, está a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/07/assembleia-geral-da-65a-reuniao-anual.html). Ainda não vi nenhuma declaração do Instituto Brasileiro de História do Direito, no entanto.
Na sede da SBPC, em setembro deste ano, ocorreu uma reunião para tratar de possíveis mudanças no projeto: http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/09/reuniao-realizada-no-dia-0309-para.html. A Sociedade Brasileira de História para Ciência chegou a um arranjo com a ANPUH, incluindo-se na reserva de mercado, isto é, reforçando o obscurantismo. A SBPC, com razão, rejeitou as mudanças. No blogue de Roberto Martins, pode-se ler sobre esses acontecimentos: http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/09/sociedade-brasileira-para-o-progresso.html
Ele mesmo critica o projeto como "uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica" (http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/10/critica-de-roberto-de-andrade-martins.html), problemas que a alternativa de projeto que ele mesmo elaborou não apresenta:  http://profissao-historiador.blogspot.com.br/2013/09/sugestao-de-emenda-substitutiva-ao.html.
Já apontei o descuidado e sumaríssimo trabalho da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal no ligeiro parecer sobre o projeto de reserva de mercado: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/03/memoria-como-reserva-de-mercado-parte.html. Nesta breve nota, lembrarei dos parâmetros constitucionais sobre a liberdade profissional reafirmados em algumas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Ela está prevista, ressalte-se, entre os direitos e garantias fundamentais - não se trata de algo que deva ficar ao arbítrio de meros interesses corporativos, trata-se de uma previsão necessária para a cidadania.

II

O inciso XIII do artigo 5º da Constituição da República dispõe que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Uma vez que a regra geral é a liberdade, as exceções devem ser previstas de forma restritiva, para que não haja fraude a esse direito fundamental. Essa restrição, afirma o Supremo Tribunal Federal, justifica-se desde que haja risco à sociedade no exercício da profissão por pessoas sem a habilitação necessária. O legislador não é livre na regulamentação das profissões: só poderá criar restrições ao exercício se elas se justificarem pelo interesse público.
No recurso extraordinário nº 511.961-SP, julgado em 17 de junho de 2009 (sobre que já escrevi: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html), o STF decidiu que era inconstitucional a exigência de diploma em jornalismo para os profissionais da imprensa. A liberdade profissional não era o único direito fundamental ferido, mas também a liberdade de expressão e de comunicação (artigo 5º, IV, IX e XIV) e de imprensa, especificamente no artigo 220, caput e § 1º. No quarto parágrafo da ementa do acórdão, a Corte deixou claras as limitações que pesam sobre o Poder Legislativo:

A Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5o, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na formulação do art. 5o, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões.

Essas limitações são impostas pela Constituição da República e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos; não é comum que o STF se preocupe com o controle de convencionalidade, mas aqui, ao contrário do que fez no caso da Lei de Anistia, ele cuidou dos deveres internacionais do Estado Brasileiro. Transcrevo parte do oitavo parágrafo da ementa:
A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência de diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 25 de fevereiro de 2009).

A Corte Interamericana também pertence ao sistema de proteção dos direitos humanos da OEA, e não apenas a Comissão. Esse julgamento teve apenas um voto vencido, do Ministro Marco Aurélio.
Outro caso recente de grande repercussão foi o julgamento do recurso extraordinário nº 603.583-RS, em 26 de outubro de 2011. O Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, considerou constitucional o exame da OAB, justamente por identificar interesse público na preservação da sociedade contra o risco que profissionais inabilitados causariam. O ministro relator, Marco Aurélio, lembrou que
[...] a liberdade de profissão não se resume à esfera particular. Certas profissões, como as de médico, engenheiro, arquiteto, se exercidas por pessoas despidas das qualificações técnicas necessárias, podem resultarem graves danos à coletividade. Foi essa lógica que conduziu à imposição de pena privativa de liberdade para o exercício ilegal de profissão, conforme o artigo 47 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.
O Ministro ainda recordou dos índices que apontam um nível baixo do ensino superior em Direito no país. Sobre o assunto, para meus alunos de primeiro semestre, em geral lembro de antiga matéria da Carta Capital, "A miséria usa beca", em que um dos entrevistados, bacharel em direito que nunca foi aprovado no exame, afirmou que era analfabeto quando se formou: http://www.observatoriouniversitario.org.br/diversos/universidade_a_miseria_usa_beca.pdf
Afinal, é possível ingressar analfabeto no ensino superior, ao menos em universidades privadas (http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u7470.shtml); já ocorreu, nesse tipo de instituição, até mesmo a defesa do analfabetismo contra os estudos de pós-graduação: http://www.etudoteatro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=86
Pouco antes desse importante acórdão, o STF julgou, em 1º de agosto de 2011, o recurso extraordinário nº 414.426-SC. Trata-se de outro caso histórico, relatado pela ministra Ellen Gracie, em que se decidiu, também de forma unânime, que não era constitucional exigir a inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil para o exercício profissional dessa atividade artística. Além da ausência de perigo para a sociedade, a liberdade de expressão, prevista no inciso IX do artigo 5º da Constituição da República, era violada com aquela exigência que cerceava a manifestação artística.

III

O projeto de reserva de mercado para os portadores de diploma em história atenderia às exigências de razoabilidade e de proporcionalidade impostas ao legislador? Uma vez que a liberdade de profissão apenas pode sofrer exceções em razão do interesse público de evitar riscos advindos da falta de qualificação dos profissionais, parece-me que o projeto surtiria o efeito oposto ao pretendido: ele diminuiria o nível da formação profissional e se revelaria uma grande ameaça à educação no Brasil.
A conjugação dos artigos 4º e 5º do projeto faria, com que, se aprovado, uma série indefinida de atividades se tornasse monopólio dos historiadores com diploma em história (ver aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte-i.html). Uma série indefinida, pois a expressão "temas históricos" pode abranger qualquer fato social. Vê-se que o projeto pretende fazer com que tais profissionais desalojem outros no magistério, nos museus e até nas tevês, provavelmente pensando em auferir alguns royalties do sucesso de telenovelas como Escrava Isaura... Note-se como se multiplicariam os conflitos jurídicos com arqueólogos, museólogos e outros profissionais que teriam que se abster dos "temas históricos" em suas atividades, o que é praticamente impossível.
No campo da educação, o monopólio pretendido imporia intelectuais com formação totalmente inadequada, os historiadores com diploma em história, em campos inusitados. Estranhos à tabela periódica, tentariam explicar os períodos da história da química; a ignorantes em teoria da harmonia caberia ensinar história da música; a estrangeiros às categorias jurídicas atribuir-se-ia o monopólio dos diferentes campos da história do direito; gente incapaz de diferenciar entre um Giotto e um Tiziano se apossaria da história da arte etc.
Se aprovado o projeto, seria deveras histórica a contribuição da ANPUH para o declínio do ensino superior brasileiro. Embora tal declínio venha atender os interesses corporativos dos historiadores que tal associação representa, não se pode honestamente defender que ele corresponda ao interesse público, tampouco aos critérios constitucionais.
Tal é o ângulo, utilitário, do prejuízo à sociedade que o projeto geraria. Há outro, também presente na Constituição, que é o prisma da liberdade. As liberdades de expressão e de informação são violadas pelo projeto; nos casos que mencionei do Supremo Tribunal Federal, elas estavam sempre em jogo. Com este projeto, seria afetada também a liberdade de cátedra, prevista no artigo 205, II ("liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber").
Retomo o que escrevi na primeira parte desta nota. A ANPUH, no caso da Revista Paraibana, já demonstrou o que pretende: calar os outros profissionais em tudo que seja "tema histórico". Nesse projeto inaudito de censura, um historiador como o recém-falecido Gorender teria que trabalhar no exterior.

No campo das humanidades, a regra é que uma reflexão mais profunda sobre os objetos de saber adote uma perspectiva histórica, sem o que não se pode compreendê-los efetivamente. Por que as outras áreas das humanidades teriam que se curvar aos historiadores e renunciar a essa dimensão dos fatos sociais?
A ética desse projeto é a da apropriação privada do que é comum que, epistemologicamente, só poderia mesmo levar a uma negação da interdisciplinaridade. Um dos pontos risíveis é que a legislação pretendida violaria o que o próprio estatuto da ANPUH afirma defender (a livre pesquisa em história); ademais, o presidente de tal associação, em um exemplo engraçadíssimo de contradição performativa, gosta de citar Foucault, que não poderia ter elaborado a tese da História da loucura se estivesse sob a égide de uma norma obscurantista semelhante: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/memoria-como-reserva-de-mercado-v.html
Epistemologicamente, o projeto não faz sentido. Profissionais de diversas áreas e formações fazem história, e não apenas os formados nesta área, e isso, que denota a importância fundamental da disciplina, parece não ser bem entendido por aqueles que não fizeram outra coisa senão a estudar.
O projeto tem inconstitucionalidades gritantes, é epistemologicamente contrário às próprias características do saber histórico, que não se presta a monopólios corporativos; e, politicamente, revela-se profundamente antidemocrático: por ferir liberdades fundamentais e por converter essa importante atividade de construção do comum e da identidade social, a história, em monopólio de certo grupo de profissionais, que aparentemente deseja se dedicar ao oficialismo historiográfico com o amparo da legislação.





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