O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Morte, banimento e sorriso da grande cantora

I


morreu a grande cantora
seu maior momento
eu o vi
na boate BaiserGlitter
uma jovem travesti
às sete da manhã
invadiu o palco
já estava sendo varrido
invadiu-o para dublar a canção
imitava a tintura da grande cantora
copiava os cílios da grande cantora
era a própria grande cantora no gesto com o polegar
virado para o céu
dizendo talvez
sim

não sei se a jovem travesti
estava a ensaiar
ou se ela já tinha desistido
da noite da performance da boate ou
da grande cantora
lembro que comecei a chorar alto
pois a canção jamais foi ouvida
na voz da grande cantora
mas na de outra

a travesti se enganava com o repertório
ou julgava que tudo que o seu corpo encarnasse
poderia ser entregue em sacrifício
à grande cantora


II

pegava as notas por baixo
a tonalidade nem sempre estável
o nariz a principal caixa de ressonância
a troca do legato pela simples fala
o gosto duvidoso em tudo salvo no cabelo
não era realmente grande
a grande cantora

mas exatamente por isso
o público podia guardá-la no bolso
e quando nele enfiava as mãos
elas saíam quentes


III

rasteiro e limitado
o repertório da grande cantora
só canções de amor
como pretender
que no país de genocidas racistas
misóginos homofóbicos transfóbicos
com militares e banqueiros trocando afagos
enquanto leiloam a terra sob bênções pastorais
como pretender
que neste centro de torturas promovido a Estado
só se cantem canções de amor?

ou talvez por isto ela fosse amada
ter oferecido ao Estado
a trilha sonora mais adequada à devastação


IV

a algumas polegadas da realidade
a grande cantora
na assembleia oficial
entra para cantar
o hino nacional

estivera alguns metros
acima da realidade
todos notariam o desarranjo
perceberiam a loucura
de chamar esta terra de país
e de ela ter um hino
embora cale a voz de quase todos

estivera a grande cantora
metros abaixo da realidade
seguiria a partitura estritamente
e o exílio da imaginação
reiteraria o país

a grande cantora
estava porém apenas algumas polegadas
acima da realidade
a subversão ocorreria milímetro a milímetro
até a derrocada dos palácios

a apresentação começa
a grande cantora
oferece a própria cabeça
em vez do hino


V

a grande cantora tivera prosseguido
se as luzes não fossem apagadas
se o microfone não cortado
e a memória não fosse uma terra de exílio

se o hino não tivesse ficado suspenso
na irresolução tonal
no ritornello aleatório
na letra soluçada pela amnésia

a grande cantora teria chegado ao final
e mostrado ao país
já todo à imagem do hino estropiado
como sair da crise

mas ninguém aceitou
a cabeça da grande cantora
ofertada no sorriso da bandeja


VI

ainda não lemos o testamento
da grande cantora
já roubado das gavetas por palhaços e borboletas

investigação criminal
para descobrir o testamento da grande cantora
nos circos foram revistadas
as cáries dos leões
a maquiagem das bilheteiras
a queda dos acrobatas

rumores de que no testamento da grande cantora
estão os mapas originais da terra
as provas do roubo originário
que chamamos de país

caso de segurança nacional
o testamento da grande cantora
família e Estado procuram-no
para queimá-lo


VII

meus pais tiveram um elepê
da grande cantora
em plena ditadura

ela sobreviveu aos discos
morreu na era das listas de reprodução automática

imbecis ouvem listas
para tratar a música
como ruído de fundo

o fundo das listas
ou os ruídos do mercado
nas jaulas da moda

a grande cantora
nasceu na época do elepê
a censura necessitava
de órgãos do Estado

(o disco de meus pais
nunca o tive
debandado
toca em algum lugar minha ausência)

a grande cantora morreu
quando as listas do capital
tornaram a censura
na própria escuta

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