Todo ano é de Clarice Lispector, mas 2020 é o centenário de nascimento da escritora. Com os percalços e desafios mundiais deste ano atípico, talvez alguns eventos da comemoração tenham sido adiados ou prejudicados. Mais importantes que os eventos, no entanto, são os textos que nascem em diálogo com a escritora. Entre eles, o que achei de mais impressionante foi um poema, "Robinson Crusoé e seus amigos", de Leonardo Gandolfi, publicado em março de 2020 pela revista Piauí.
A poética é bem típica do autor. Com versos livres e brancos, em geral curtos, o tom é de rememoração em voz baixa, com o universo das relações privadas em foco. A ausência de pontuação e a falta de indicação explícita das vozes reforçam esse efeito de que algo forte vem mansamente à tona da recordação. Há duas vozes que falam no poema: a do eu lírico e a de Clarice Lispector.
A primeira parte do poema narra como a mãe vai trabalhar com Clarice Lispector; ouvimos apenas a voz da escritora, mas não a da mãe. Na segunda parte, conta-se a doença da mãe, "o aneurisma/ que a tiraria de cena" e a deixou em coma. Na terceira, fala-se da coleção de folhas secas que a mãe criou. Na quarta, temos Robinson Crusoé e seus pertences. Na quinta, a ação de ninar da filha ajuda a conceber este poema. Na sexta, volta-se ao passado: a mãe arruma os livros de Clarice Lispector, ambas são fumantes e a escritora fala sobre fumar e dormir. Como se sabe, por conta desse hábito, ela sofreria um acidente grave; sobreviveria, mas com boa parte do corpo queimado.
A divisão parece desconcertante, mas o encadeamento é muito bem achado. Alberto Pucheu destacou a "estranheza do vínculo de muitos títulos com seus respectivos poemas" na obra deste poeta (em Do tempo de Drummond ao (nosso) de Leonardo Gandolfi, livro de Pucheu publicado pela Azougue em 2014). Com efeito, o título deste poema também surpreende; mas Robinson Crusoé, embora não tenha sido, evidentemente, criado por Lispector, está completamente no seu lugar: ele também sofreu um grave acidente. Quais são os seus "amigos" aqui? Para a mãe do narrador, Rita, o naufrágio foi o aneurisma e o coma. Para Lispector, o incêndio que sofreu, e a que o poema alude na última estrofe:
não é fumar enquanto se esperao sono chegarmas sim fumar e dormirde uma só veznem que para issoeu entre em combustão
O eu lírico, que desastre terá sofrido? Certamente o da mãe. Ele diz que lia livros para ela em coma: "Prestes a perdê-la/ usei o carimbo/ para colocar seu nome/ na folha de rosto/ dos livros que lia para ela/ durante o coma". Perdidos já o carimbo e esses livros, restou o exemplar de Robinson Crusoé, que se tornou o título e, digamos, a vida exemplar para as que aqui comparecem.
Se esses livros quase todos se perderam, restou parcialmente uma coleção deixada pela mãe:
Entre as coisasque minha mãe deixouestá uma série de folhas secasque ela recolhiade jardins e parquesquando viajavaEm cada uma das folhasestão anotadoscom tinta azul de canetalugar e diaem que foram recolhidas
Sem saber o que fazer, ele guardou as poucas remanescentes entre livros. Como não se recorda de onde estão exatamente, "às vezes/ sou pego de surpresa/ quando ao abrir um livro/ encontro folhas secas/ com a letra dela". Estas folhas escritas encontradas ao acaso no meio de livros, também não representam a literatura, ou ao menos a iluminação que ela pode intermitentemente oferecer? Na seção seguinte, lemos que
Não lembro quemmas alguém disseque à noitetodos os poemas são cinza
Se estou aquié só para esperara próxima vezem que você vai chorara próxima vezem que você vai sorrirEnquanto nem uma coisanem outra acontecepresto atençãonos menores detalhesa minha mãojunto da sua
Aqui, o próprio pai encarrega-se dos cuidados com a filha. Neste ponto, devemos relembrar os versos iniciais do poema: a oportunidade da mãe de trabalhar com Clarice Lispector aparece porque "Minha avó/ trabalha na casa de uma das irmãs/ de Clarice Lispector". Desde o começo, temos a memória familiar posta diante de nós. Mas também a questão do trabalho: avó e mãe realizam trabalhos no espaço doméstico para outras mulheres, e a patroa Lispector com talvez alguma condescendência diz: "Clarice entrega a ela/ com o punho cerrado/ algumas notas e diz// isto aqui Rita/ é para os seus supérfluos".
anotar todas as vezesem que a palavrasupérfluoaparece nos livrosde Claricee fazer um inventário
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