Além da balbúrdia institucional em que se converteu o tribunal, com um Ministro revogando decisão monocrática de outro, e arrogando-se a competência alheia, a decisão fere tantas previsões jurídicas, tanto no aspecto processual quanto em relação ao mérito, pois a censura prévia e a criminalização da atividade da imprensa. O artigo de David Tangerino, "Fux e o jogo de sete erros", publicado na Folha, resume bem para o público em geral a impressionante violação de normas processuais e materiais cometidas por Fux.
Lewandowski voltou hoje a autorizar a entrevista, incluindo El País e Rede Minas. Vejamos o que acontecerá a seguir, pois a disfuncionalidade do tribunal mais alto do país certamente não parará nesse ponto.
A matéria de Alexandre Alves Miguez no Esquerda Diário lista as violações encarnadas na decisão de Fux e trata do "flagrante ataque direto do golpismo judiciário à própria lei burguesa", nestas eleições "tuteladas" pelo Judiciário e pelas Forças Armadas, o que é verdade.
Podem-se ler o pedido do partido Novo, que não tinha legitimidade processual para fazê-lo, e a malfadada decisão na matéria do Jota. Mais um exemplo da velha novidade que representam os liberais brasileiros, tradicionalmente contrários ao estado de direito e à liberdade de imprensa...
Essas análises não tratam, no entanto, da questão no plano internacional. Fux também comete um ilícito internacional e compromete o Estado brasileiro, tendo em vista a proibição da censura prévia e da criminalização da atividade jornalística pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica.
Eu escrevi sobre essa questão alguns anos atrás no texto "Os olhos vazados da liberdade: cultura jurídica autoritária no Brasil, censura judicial e Sistema Interamericano de Direitos Humanos". Destaco alguns trechos dele abaixo para contribuir com o debate, tantas vezes cerceado pelos horizontes do provincianismo constitucional:
O Supremo Tribunal Federal já pôde se expressar, na vigência da Constituição de 1988, no sentido de que a “livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado”, e que o direito de crítica aos homens públicos enquadra-se entre as funções públicas da imprensa. A repressão penal só se pode dar quando houver animus injuriandi vel diffamandi; este ausente, “a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade.” [Trata-se de decisão tomada por Celso de Mello, que relatou a Petição 3486/DF, a qual não foi conhecida. Foi uma estranha ação proposta por um advogado que sustentou que jornalistas da Revista Veja teriam ferido a segurança nacional por criticarem o governo federal.].
No entanto, persiste a incerteza jurídica, tendo em vista que no Supremo Tribunal Federal (e no Judiciário brasileiro em geral) continuam polêmicas, mesmo após o fim da lei de imprensa, sobre a colisão entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. Nessa polêmica, em geral não se faz referência ao Pacto de São José da Costa Rica, ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê, no artigo 13:
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.Isto é, a proteção da intimidade não pode ser feita por meio de censura prévia, judicial ou não, tendo em vista a liberdade de imprensa – opção feita pelos Estados da OEA devido à importância dessa liberdade para a democracia. A Convenção Europeia de Direitos Humanos trata a matéria de forma um pouco diferente .
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Há colisão com a Constituição de 1988? Ela prevê, no artigo 220, que a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”; no parágrafo primeiro desse artigo, proíbe-se “embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. Isto é, a imprensa deverá respeitar, na ordem dos incisos do artigo 5º, a livre manifestação do pensamento; o direito de resposta e a proteção à imagem; os direitos à intimidade, à vida privada e à honra; livre exercício de trabalho ou profissão; acesso à informação e sigilo das fontes.
A Constituição não prevê que o respeito a esses direitos deve ocorrer por meio de censura prévia – o parágrafo segundo do artigo 220, que proíbe a censura, leva mesmo a pensar o oposto. Não parece, pois, haver conflito com o tratado da OEA, que, assim como a Carta brasileira, protege tanto o acesso à informação como a liberdade de expressão.
[...]
Marco da liberdade de imprensa na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pode-se destacar o caso de Ivcher Bronstein contra Peru, julgado em 6 de fevereiro de 2001. O empresário Bronstein havia sido privado de sua nacionalidade peruana (era cidadão naturalizado) para que, assim, perdesse a propriedade sobre o Canal 2 de Televisão (os meios de comunicação não podiam ser da propriedade de estrangeiros), de que era o acionista majoritário.
Em 1997, o Canal difundiu denúncias de que o Serviço de Inteligência teria cometido torturas e assassinatos, o que gerou as represálias oficiais: nesse mesmo ano, foi anunciado que o Diretor-Geral da Polícia Nacional não encontrou o antigo processo de naturalização de Bronstein, pelo que decidiu, por resolução, cancelar-lhe a cidadania peruana. Os acionistas minoritários assumiram a direção do Canal e excluíram os jornalistas que haviam atuado nas reportagens contra o governo, o que feriu a liberdade de expressão desses profissionais, bem como o direito à informação do povo peruano.
A Comissão Interamericana, nesse caso, procurou demonstrar que no Peru, à época do regime de Fujimori, realizavam-se “práticas repressivas sistemáticas dirigidas para silenciar jornalistas investigadores que denunciaram irregularidades na conduta do Governo, nas Forças Armadas e no Serviço de Inteligência Nacional” (§ 143). O Estado peruano decidiu simplesmente denunciar a Convenção para não ter que responder ao processo. Diante desse ato, em 1999, a Corte decidiu que ela mesma tinha a competência para determinar os efeitos da denúncia, e dispôs que esse ato não poderia ter efeito imediato – e, assim, o processo continuou, mas à revelia do Estado, que acabou sendo condenado por violar o direito à nacionalidade, à garantia judicial, à propriedade privada e à liberdade de expressão.
De fato, o regime de Fujimori não tinha um caráter democrático, e a perseguição a jornalistas foi um dos sintomas do autoritarismo. A atuação da Corte ressaltou o caráter imprescindível da liberdade de imprensa em um Estado de direito.
A Suprema Corte americana, em precedente de 1964 (New York Times v. Sullivan), cunhou a doutrina da “real malícia’ (actual malice), segundo a qual, quando a pessoa ofendida pela imprensa está envolvida em assuntos de interesse público, para que o jornalista seja responsabilizado, é preciso que o autor prove que ele teve a intenção de causar dano, ou que tinha conhecimento de que difundia notícias falas, ou foi negligente na busca da verdade.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos considera que essa doutrina é a desposada pela Convenção Americana (2001, § 9), e que a responsabilidade do jornalista, nesse caso, não pode ter caráter penal:
18. Para assegurar uma adequada defesa da liberdade de expressão, os Estados devem ajustar suas leis sobre difamação, injúria e calúnia de forma tal que só possam ser aplicadas sanções civis no caso de ofensas a funcionários públicos. Nestes casos, a responsabilidade, por ofensas contra funcionários públicos, só deveria incidir em casos de “má fé”. A doutrina da “má fé” significa que o autor da informação em questão era consciente de que a mesma era falsa ou atuou com temerária despreocupação sobre a verdade ou a falsidade de esta informação. Estas ideias foram recolhidas pela CIDH ao aprovar os Princípios sobre Liberdade de Expressão, especificamente o Princípio 10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a divulgação de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida só através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida for um funcionário público ou pessoa pública ou privada que tenha se envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. [...] As leis de calúnia e injúria são, em muitas ocasiões leis que, em lugar de proteger a honra das pessoas, são utilizadas para atacar ou silenciar o discurso que se considera crítico da administração pública. (OEA. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002)O décimo princípio da Declaração sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em igual sentido, prevê:
As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção e à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas.A esse respeito, os litígios sobre imprensa no Brasil precisam ser interpretados de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, que entrou em vigor para o Brasil em 1992 .
[...]
No Brasil, a primeira vez que um censor voltou a frequentar uma redação de jornal depois da ditadura militar foi em Brasília, em outubro de 2002, quando o Desembargador Jirair Meguerian, a pedido do então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz (então do PMDB, e candidato à reeleição), determinou que o oficial de justiça Ricardo Yoshida, acompanhado do advogado Adolfo Marques da Costa, entrassem na redação com poderes de censurar qualquer notícia relativa a uma gravação realizada pela Polícia Federal, com autorização judicial, que relacionava o governador com empresários acusados de parcelamento irregular do solo em Brasília (REDE EM DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA, 2006).
O problema da colisão entre direitos da personalidade, como a intimidade e a honra, com a liberdade de imprensa já foi abordado por vários autores. Ives Gandra Martins defende que é possível tutela preventiva quando há ameaça de lesão às garantias fundamentais dos incisos IV, V, X, XIII e XIV do artigo 5º da Constituição (1998, p. 809-810). Bueno de Godoy entende que não há censura prévia quando há tutela preventiva desses direitos, pois a liberdade de imprensa não seria absoluta, devendo o juiz, em cada caso concreto, fazer o balanceamento desses direitos (2001); posição semelhante é adotada por Leite Sampaio (1998); Grandinetti Castanho de Carvalho defende a proibição de divulgação, segundo uma ponderação de bens – quando a censura é feita pelo Judiciário, ela não seria censura, mas composição de “interesses em conflito concretamente invocados” (2003, p. 142); Luís Roberto Barroso segue esse autor (2002, p. 364-366). Segundo Bulos, a Constituição só teria vedado a “censura administrativa, praticada pelo Poder Executivo”, e não o “poder cautelar” do Judiciário para prevenir “ameaça de lesão a direito” (2003, p. 1343-1344).
Nenhum desses autores menciona que existe norma internacional que vincula o Brasil e proíbe essa tutela preventiva. Se era verdade, como diz Edilsom Pereira de Farias, que “o legislador pátrio” não elaborou lei sobre a matéria de liberdade de imprensa (2000, p. 172), isso não significa, diferentemente do exposto por esse autor, que não há norma a respeito no direito brasileiro, tendo em vista a convenção da OEA. Leyser, por outro lado, refere-se à Convenção no tocante ao “direito à vida privada” (1999, p. 40), mas deixa de fazê-lo em relação à liberdade de imprensa.
Por que o direito aplicável não é nem ao menos discutido pelas decisões e pela doutrina já relacionadas? Há uma inércia jurisprudencial contrária à liberdade de imprensa, sobrevivência da cultura autoritária no Judiciário brasileiro, e sobrevive um provincianismo constitucional nessa matéria, isto é, permanecem o desconhecimento e a inobservância dos tratados internacionais de direitos humanos.
O julgamento da ADPF n. 130, que decidiu pela não recepção da lei brasileira de imprensa pela Constituição de 1988, não foi uma exceção. O Partido Democrático Trabalhista (PDT), em sua petição inicial, fez eferência tão-somente, no tocante às fontes internacionais, à Declaração Universal de 1948. A Procuradoria Geral da União, em seu parecer, devidamente lembrou do Pacto de San José, mas não tocou na questão da censura prévia.
Os Ministros, em sua argumentação, em regra passaram por cima da internacionalização dos direitos humanos, no entanto prevista na própria Constituição, com exceção de Celso de Mello, que se referiu à Declaração de Chapultec. No entanto, mesmo ele deixou de mencionar os julgados da Corte Interamericana. Em um esquecimento de disposições do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Ministro Joaquim Barbosa afirmou que, sem a lei de imprensa, o Brasil deixaria de ter norma contra a propagação do preconceito de raça e de classe, “sem qualquer possibilidade de contraponto por parte dos grupos sociais eventualmente prejudicados.”
Diante dessas lacunas deixadas por esse julgamento, não admira que a censura judicial no Brasil prossiga, à revelia dos parâmetros do Direito Interamericano, que não são, o mais das vezes, sequer mencionados pelos julgadores e juristas.
[...]
No caso do Brasil, pode-se verificar que, apesar de a Constituição da República promulgada em 1988, em reação à censura institucionalizada da ditadura militar, ter proibido a censura, essa prática permaneceu com o apoio do Poder Judiciário.
Trata-se de um problema de não recepção dessas normas provenientes do autoritarismo. No tocante à lei brasileira de imprensa, a lei n.o 5250 de 1967, editada durante a ditadura militar, o Supremo Tribunal Federal pôde recentemente decidir que ela não foi recepcionada pela Constituição de 1988, com o julgamento a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n.o 130, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
No entanto, isso não tem detido a censura judicial. O fundamento da continuidade é antes cultural do que normativo. Deve-se lembrar recente pesquisa que verificou que 66% dos magistrados na primeira instância da Justiça Estadual do Rio de Janeiro, comarca da Capital, nunca aplicaram a Convenção Americana de Direitos Humanos e 24% só o faziam raramente. 79% não estavam informados sobre o funcionamento dos sistemas da ONU e da OEA de proteção dos direitos humanos. 40% nunca estudaram a respeito de direitos humanos. No entanto, os resultados poderiam ter sido bem piores, se o universo da pesquisa não tivesse sido reduzido: quarenta por cento dos questionários não foram respondidos, seja porque o juiz se recusou, sem motivo, a respondê-lo, ou a receber o pesquisador, ou por ter declarado que o seu trabalho não tinha... relação com os direitos humanos (CUNHA..., 2005).
Essa cultura infensa aos direitos humanos conjuga-se com o provincianismo em relação ao direito internacional, uma vez que estes direitos estão internacionalizados, contrastando com a cultura jurídica predominante no Judiciário brasileiro.
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