O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Desarquivando o Brasil CLXXXIII: Áudios dos julgamentos de presos políticos no STM

Devemos todos agradecer ao pesquisador e advogado Fernando Augusto Fernandes; o Superior Tribunal Militar tentou esconder as gravações em áudio dos julgamentos de presos políticos durante a ditadura militar. O STM declarou o segredo por cem anos desse material, mas Fernandes conseguiu acesso graças à decisão no Recurso de Mandado de Segurança n. 23026. O STM também tentou apreender e destruir o material de pesquisa do então doutorando, que conseguiu impedir judicialmente a medida autoritária desta Corte que tem problemas de apneia em ares democráticos.

O autor conta essa história no livro Poder & Saber: Campo jurídico e ideologia, que a Revan publicou em 2012. Antes dessa obra, pela mesma editora, ele havia publicado Voz humana: A defesa perante os tribunais da república, de 2004, em que também conseguiu usar essas fontes, descobertas por Fernando Augusto Fernandes em 1997, graças a decisão do Supremo Tribunal Federal que o STM resistiu inicialmente a cumprir. Ele conta essa história nas obras, cujo processo de feitura confirma a permanência da cultura autoritária desse órgão do Judiciário cuja existência não se justifica mais (a Justiça Federal poderia, sem dúvida, absorver seus casos).

A historiadora Beatriz Kushnir lembrou no twitter do papel pioneiro desse pesquisador, agora que outro historiador, Carlos Fico, está a trabalhar com essas fontes. Infelizmente, em 17 de abril último algumas matérias jornalísticas equivocadas saíram a respeito. 

O Uol, em momento de negação da pesquisa histórica, ignora o nome de Fernando Augusto Fernandes, o descobridor do material, e julga que é inédita uma citação de Sobral Pinto não só está transcrita como foi incluída num dos cds que acompanha o livro de 2004, Voz humana.

O engano não é original, vem da matéria de O Globo, em que vemos Carlos Fico falar que Fernandes havia conseguido judicialmente a liberação das fitas, mas só havia analisado 54 julgamentos. Parece que é o próprio Fico que acha que a fala de Sobral Pinto era inédita em áudio e texto impresso. 

Dito isso, o livro de Fernandes não traz áudios dos magistrados, que são o material que Fico destaca e foram, além do de Sobral Pinto, em parte divulgados por O Globo (ele os cedeu a Míriam Leitão, que foi presa política) e podem ser ouvidos no portal da Globo News.

Como desde a pesquisa de Fernando Augusto Fernandes sabe-se deste material, não podemos deixar de corroborar a manifestação do perfil Arquivística, que publica notícias sobre os arquivos no Brasil e no mundo, sobre o atraso da Comissão de Ética do Senado em querer conhecê-lo. Antes tarde do que nunca, porém, e fiquemos a acompanhar se haverá algum desdobramento institucional. É claro que a  própria Comissão não terá a expertise nem o tempo de fazer a análise dos milhares de horas de gravação.

O Ato Institucional n. 2 foi o instrumento normativo para ampliar a competência da Justiça Militar para julgar civis nas questões de segurança nacional - passo fundamental para conferir um caráter "militar" ao regime que nasceu de um golpe, ele sim, civil-militar (como sustenta Fico, por sinal), pois os conspiradores civis foram muito importantes em 1964. Com a institucionalização de uma diadura de segurança nacional, alguns desses conspiradores civis acabaram cassados, como Carlos Lacerda, as eleições diretas para a presidência foram abolidas com o AI-2 para que a escolha da presidência da república fosse determinada pelos militares, que acabariam dando novo golpe, em 1969, para impedir que o vice (civil) de Costa e Silva chegasse ao poder. Depois, salvo quando assumiu o último ditador, o general Figueiredo, pois Aureliano Chaves foi escolhido para compor a chapa presidencial, teriam o cuidado de que o vice do ditador em plantão sempre fosse militar.

Deve-se lembrar que o próprio direito brasileiro, como ordenamento, sofreu com essa militarização das instituições, eis que ramos jurídicos os mais diversos ficaram submetidos às diretrizes indeterminadas da "segurança nacional". A ditadura militar confiava numa justiça de mesmo caráter. Os protestos do STM em 2014 contra o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que ratificou o papel da Justiça Militar na repressão política, não tinham realmente fundamento

O material que Fico está a pesquisar agora, parece, até o momento, confirmar esse quadro. Há diversas provas de que a tortura existia e que as autoridades sabiam disso e com ela cooperavam ou a dirigiam. Curiosamente, apesar da importância do material, o twitter, no destaque "Áudios dos anos 70 mostram oficiais militares falando sobre tortura na ditadura", "protege" as ligações para esses áudios e notícias com um aviso: "O conteúdo a seguir pode apresentar material sensível".



O caráter extravagante da advertência revela-se no fato de que nada, nada do que é ouvido se compara à violência das declarações do atual ocupante da presidência da república sobre os desaparecidos políticos, sobre os crimes de lesa-humanidade em geral e sobre ex-presos políticos, entre eles a própria jornalista Míriam Leitão. O país decaiu muito em termos de decência e civilidade em poucos anos, talvez para níveis abissalmente mais baixos do que o de vários momentos da ditadura. Contudo, o perfil daquela pessoa na rede social não apresenta nenhum aviso semelhante ao que foi dado aos áudios do STM. 

O twitter, resolvendo "marcar" esse material histórico de forma parecida com o que faz com o conteúdo pornográfico, fica evidentemente não do lado do direito à memória e à verdade, mas do ocultamento da história, que é sempre uma tática dos defensores do autoritarismo.


P.S.: Leio em O Estado de S. Paulo de 18 de abril, "Áudios do STM apontam casos de tortura na ditadura", que Fernando Fernandes coordena um projeto com os professores da UFF Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder para disponibilizar todos os áudios em portal "em fase de conclusão". De fato, um jornalismo mais sério teria de ouvir o pesquisador que descobriu o material.


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