Ele lança nesta semana sua dissertação de mestrado, na área de concentração em Filosofia e Teoria Geral do Direito, Justiça de transição: contornos do conceito (São Paulo: Dobra Editorial; Expressão Popular, 2013). Quinalha continua a trabalhar com o tema, e não só no doutorado: além de integrar o IDEJUST (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição), assessora a Comissão da Verdade "Rubens Paiva", da ALESP.
Ele pesquisou tema recente, pouco frequentado pelos juristas no Brasil, com uma visão crítica sobre o próprio conceito, a academia, o Judiciário e o Poder Executivo.
Seu livro será lançado no próximo dia 4 de abril, no primeiro andar da Faculdade de Direito da USP, sala Visconde de São Leopoldo, das 19 às 21 horas. Com ele, sairá nova edição de obra jurídica de Tarso de Melo, Direito e ideologia - estudo a partir da função social da propriedade rural, pelas mesmas editoras, na coleção Direitos e Lutas Sociais.
Seu
livro Justiça de Transição: contornos do conceito foi baseado em sua dissertação de mestrado
em Direito. Gostaria de perguntar se, no Brasil, as abordagens do tema na
academia jurídica são muito diversas das que encontramos na ciência política.
No
Brasil, ainda é bastante incipiente a reflexão sobre a justiça de transição. Não
faz mais do que cinco anos que este tema começou a ser discutido de forma mais
sistematizada e para além dos movimentos de familiares de desaparecidos
políticos e vítimas da ditadura, que eram os únicos setores que levantavam a
bandeira da memória, da verdade e da justiça em relação aos crimes do passado. Também
os meios acadêmicos só mais recentemente têm incorporado essa temática de
maneira mais constante. No entanto, nas Faculdades de Direito, ainda prevalecem
um dogmatismo normativista e um apego aos temas jurídicos tradicionais, o que coloca
em segundo plano algumas questões complexas que envolvem os direitos humanos,
como a justiça de transição. Por sua vez, nas Faculdades de Ciências Sociais, os
cientistas políticos, por terem uma marcada preocupação analítica com os
problemas do tempo presente, estão voltando a se interessar por esse assunto,
depois de terem se dedicado profundamente ao tema das transições durante as
décadas de 1980 e 1990. Por se tratar tanto de um programa normativo que
orienta políticas públicas (nacionais e internacionais) como um conceito
transdisciplinar, surgido nas fronteiras entre o direito internacional e a
ciência política, a justiça de transição demanda uma reflexão em diversos
planos e searas. É preciso considerar saberes construídos tanto a partir de
teorias e de normas internacionais como a partir da prática local dos
movimentos sociais que reivindicam justiça e reparação em relação a violações
de direitos humanos. No geral, as formulações em torno desse tema ainda são
marcadas pelo privilégio do legalismo, pela centralidade do Estado e de suas
instituições (desprezando uma visão “de baixo para cima”), por uma
insuficiência analítica sobre o conceito de transição e seus limites, por um
minimalismo conservador que considera apenas direitos civis e políticos
(ocultando sofrimentos econômicos e sociais), dentre outros problemas. A
despeito de ter colaborado para o processo de acerto de contas com o passado
nesses anos recentes em nosso país, ainda é preciso maior refinamento dessa
reflexão tanto da perspectiva do Direito quanto das Ciências Sociais para avançarmos
mais rapidamente e com eficácia para a realização da justiça.
Por que
o conceito de justiça de transição está ligado a uma ameaça tácita de regresso
autoritário?
Um
paradoxo comumente referido para tratar da justiça de transição é o de que nos
momentos em que a justiça é mais necessária, parece tornar-se mais difícil de
atingi-la. Quanto mais indispensável, ela pareceria também mais inalcançável.
Isso significa dizer que a justiça de transição é, sem dúvidas, uma justiça do
possível, imposta por normas internacionais na maior parte das vezes
vinculantes aos Estados, mas efetivamente viabilizada por determinadas
correlações de forças que orientam a política doméstica das diferentes nações.
A despeito da importância que o direito passa a ter, fato é que a natureza
contingente da política permanece presente, ainda que com esse balizamento
jurídico. Com efeito, os momentos transicionais reconfiguram os traços e o
funcionamento ordinários da política. Esta, na falta de regras e instituições
bem definidas e estabilizadas, é tomada pelos atores políticos, que passam a
ditar os rumos da comunidade política a partir de suas expectativas, cálculos e
negociações. No entanto, essa liberdade não é ilimitada: sofre um
constrangimento fundamental, característico e inevitável nesses momentos, que é
a ameaça de uma regressão autoritária caso os interesses fundamentais residuais
dos membros do governo autoritário sejam afetados. Nessa direção, a exemplo das
limitações postas à política nessas conjunturas críticas, um de seus pontos
mais complexos, a justiça, também é posta em perspectiva, pois pode provocar um
novo golpe a e “morte rápida” da democratização do regime. Assim, a justiça,
durante a transição, muitas vezes pode ser definida por sua negação: a concessão
de anistia e outros métodos de limitar a prestação da justiça. Além disso,
diversas são as limitações concretas e de ordem prática existentes para que
sejam implementados programas de justiça durante os momentos excepcionais:
recursos materiais, técnicos, humanos etc. Então, passados 30 anos da transição
democrática brasileira, sem risco de regressão autoritária no horizonte, por
que adotar uma terminologia como justiça de transição na fase da consolidação?
O que justifica esse uso? Não seria mais pertinente e adequado, mesmo do ponto
de vista normativo de construção e aprofundamento de uma democracia de melhor
qualidade, falar-se em “justiça de consolidação”? Ou apenas de justiça? Essa é
a provocação central deste trabalho.
Dos
eixos da justiça de transição (verdade, memória, reparação, justiça e reforma
das instituições), em qual deles julga o Brasil ter mais avançado no governo de
Dilma Rousseff? Em qual o atraso é mais notável?
Tivemos avanços importantes nos últimos anos, produto não apenas
de ações governamentais e políticas públicas, mas também da mobilização
crescente na luta por memória, verdade e justiça. Setores da juventude
brasileira estão se empenhando para que os crimes sejam esclarecidos e os
responsáveis sejam julgados. Está ficando claro que certos limites da
democracia e do Estado de Direito atualmente existentes no Brasil têm relação
com o autoritarismo recente da ditadura. Sem dúvidas, as políticas de reparação
pecuniária e simbólica estão avançaram significativamente no último período,
com exemplos interessantes de políticas públicas como o projeto Marcas da
Memória e as Caravanas da Anistia, da Comissão de Anistia de Ministério da
Justiça. A instituição da Comissão Nacional da Verdade e a dispersão de
comissões dessa natureza em entes federativos, universidades, sindicatos etc
são também promissores, apesar das limitações ainda existentes, em relação à
reconstrução da verdade sobre esse período. Mas é certo que a dimensão em que
nosso atraso é maior, tanto em relação às normas internacionais como em relação
aos países do Cone Sul, é o processamento penal dos responsáveis pelas graves
violações de direitos humanos que foram cometidas pelos agentes da ditadura
civil-militar brasileira. A despeito do notório esforço do Ministério Público
Federal de mover ações penais com a finalidade de responsabilizar os autores
desses crimes, ainda não existe, em nosso país, uma única condenação criminal
dessa natureza. É nesse campo em que o Estado brasileiro ainda está em débito.
Tendo
em vista as decisões contrastantes, em 2010, do Supremo Tribunal Federal sobre
a lei de anistia, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos no chamado caso
Araguaia, que concepção de democracia fundamentaria as decisões do Judiciário
brasileiro que ignoram a jurisprudência internacional sobre a matéria?
A concepção de democracia que pode ser extraída do acórdão do
STF sobre o julgamento da ADPF 153 é bastante limitada e formalista. Os
Ministros da nossa Suprema Corte fizeram uma leitura passadista de um problema
do presente: consagraram a legalidade da ditadura e contrariaram a longa
afirmação histórica dos direitos humanos na ordem internacional e no processo
constituinte de 1988. Ao validar a interpretação de que a Lei de Anistia também
beneficiou os agentes do Estado que torturaram, sequestraram, assassinaram,
estupraram, desaparecem com corpos, dentre outras atrocidades, o STF foi na
contramão da história. Alegando ter havido, no passado, um pacto político amplo
que fundou a nova democracia, além de uma Emenda Constitucional que teria
limitado o Poder Constituinte originário de 1988, a cúpula do Judiciário
brasileiro distorceu a história fatual da transição ao ignorar que o projeto de
anistia da ditadura foi imposto às demais forças políticas e também contrariou as
lições mais elementares de direito constitucional. Além disso, assumiu um
argumento da “especificidade” brasileira para afastar as normas internacionais
e as experiências comparadas, sobretudo as regionais, apontando para uma
concepção provinciana de soberania e para uma timidez institucional que não se
verificou nas diversas matérias importantes da vida política nacional que têm
sido apreciadas pela Corte.
No jogo
entre resistências e apoios aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em
que medida pesa o passado autoritário do país?
A despeito da reivindicação persistente dos grupos de direitos
humanos, a ideia de uma comissão da verdade, orientada a esclarecer as graves
violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos na ditadura, era
negligenciada a um papel inteiramente marginal no espaço público. A maior parte
das forças políticas organizadas em movimentos sociais ou partidos, inclusive
de esquerda, priorizaram outras agendas durante a reconstrução da democracia,
desprezando esse assunto como se fosse apenas uma preocupação restrita aos
familiares de desaparecidos. A questão adquiriu maior visibilidade na vida
política brasileira somente quando do lançamento do terceiro Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH-3). Dentre os diversos temas tratados nesse
documento, o que causou maior polêmica na ocasião de seu lançamento oficial
(seguido pelo controle social da mídia, pela defesa do aborto e da união civil
homoafetiva com direito à adoção) foi, certamente, aquele relativo ao direito à
memória e à verdade, previsto no eixo orientador VI e detalhada nas diretrizes
23, 24 e 25 do PNDH-3. No primeiro momento, a proposta original era de criação
de uma Comissão da Verdade que também pudesse realizar - ou ao menos incentivar
- a justiça em relação aos crimes apurados. Com efeito, ainda que havendo uma
restrição constitucional para que qualquer tipo de comissão administrativa
usurpasse funções estritamente jurisdicionais, havia uma legítima expectativa
dos grupos militantes dos direitos humanos no sentido de que algum tipo de justiça,
ainda que em sentido mais amplo e não apenas criminal, fosse finalmente levada
a cabo, por um órgão de Estado, contra aqueles que cometerem crimes contra a
humanidade e que permaneceram impunes.
Diante da resistência de diversos setores especialmente a essas
medidas, alguns inclusive internos ao próprio governo, como os Ministérios da
Defesa e das Relações Exteriores, houve a edição, por parte do Presidente Lula,
do Decreto n. 7177 de 12 de maio de 2010, alterando o PNDH-3. Tratou-se, com
clareza, de um recuo programático justamente nos temas de direitos humanos mais
politizados e que provocaram maior tensionamento.
Uma breve análise comparativa entre o texto original e o atual,
no que se refere às medidas mais polêmicas acima apontadas, permite concluir
que houve uma supressão de referências como "repressão ditatorial",
"regime de 1964-1985", "resistência popular à repressão",
"pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade" e
"responsabilização criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao
regime de 1964 - 1985".
Essas supressões de certos termos e expressões, que até então
estavam interditados no vocabulário político brasileiro, foram acompanhadas de
certos acréscimos, tais como: "prática de violações de direitos humanos,
suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na
sociedade", "período fixado no
art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de
1988" e "pessoas identificadas reconhecidamente como
torturadores".
O breve cotejo terminológico revela que o recuo e o abrandamento
discursivos operados pelo governo depois da revolta de setores ligados ao
regime autoritário estão orientados, essencialmente, por três preocupações. A
primeira é a de que as medidas de verdade, memória e justiça sejam diluídas em
um período histórico mais largo, sem identificação expressa com a ditadura
civil-militar de 1964 - 1985; a segunda preocupação é que as violações aos
direitos humanos não sejam responsabilizadas penalmente e tampouco
caracterizadas como crimes de lesa humanidade, por serem estes insuscetíveis de
graça, anistia e prescrição, conforme consolidado no campo do direito
internacional dos direitos humanos; por fim, uma terceira preocupação é
deslocar as medidas do campo da ação mais imediata para o do debate público,
com uma terminologia mais vaga e menos vinculante. Não por outra razão, a
menção a ações de responsabilização criminal na primeira versão do texto foi
substituída apenas pela responsabilização civil.
É verdade que a Comissão foi constituída e negociada em um
processo marcado por uma série de tensões e ambiguidades, típicas da transição
pactuada brasileira, mas, sem dúvidas, ela foi produto de uma conjuntura
internacional favorável e de uma intensa mobilização de setores cada vez mais amplos
da sociedade interessados em passar a história desse período a limpo. E essa
mobilização transcende o trabalho e os limites da própria Comissão.
É preciso registrar que nem todas as limitações existentes ou,
ao menos, a parte mais significativa delas, não podem ser atribuídas como de
responsabilidade exclusiva da própria Comissão. Os maiores bloqueios ao avanço
do trabalho de verdade e justiça em nosso país ainda estão postos no campo da
lógica da governabilidade e das regras institucionais ainda pouco democráticas
da política brasileira. Tampouco os inegáveis avanços dessa pauta no período
recente em nosso país também podem ser creditados ao trabalho da Comissão
Nacional da Verdade, dado que tem sido determinante a mobilização acima
referida para pautar essa discussão dentro e fora da Comissão da Verdade.
Pode-se dizer que a Comissão Nacional da Verdade chega atrasada,
em torno de 30 anos após o final da ditadura. Isso acarreta algumas
peculiaridades devido a esse contexto histórico e institucional diferenciado. A
primeira delas é a dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de
informações novos sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período
de tempo já transcorrido. Assim, ao contrário de suas congêneres em outros
locais do mundo que buscavam apurar apenas violações a direitos humanos
(geralmente direitos civis e políticos), a Comissão da Verdade brasileira
promete menos novidades e impactos de ineditismo, sobretudo porque os
familiares e algumas iniciativas oficiais de busca da verdade já conseguiram
produzir uma quantidade razoável de informações sobre o passado. Mas algumas
questões fundamentais, como o paradeiro dos desaparecidos políticos, ainda
precisam ser respondidas.
Assim, sem deixar de fazer o embate político com as pastas
militares para ter acesso pleno aos arquivos da ditadura e avançar na apuração
das violências, uma das maiores tarefas da Comissão Nacional da Verdade será
romper com a tentação da "teoria dos dois demônios" e suas variações,
assumindo claramente seu papel de dar voz às vítimas, registrar o trabalho já
feito pelos familiares e, sobretudo, oficializar a versão desses setores
diretamente atingidos. Para isso, deve também trabalhar do modo mais aberto,
transparente, participativo e público possível, evitando cair na concepção
equivocada de que o grande trabalho da Comissão se resume a um relatório final,
perdendo de vista que o processo da busca da verdade já é reparador por si
mesmo se feito de modo inclusivo e cuidadoso com as vítimas.
Outra função fundamental que a Comissão tem cumprido, mas que
precisa aprofundar, é a de catalisar as iniciativas locais, regionais e
setoriais de busca da verdade. Com efeito, a baixa densidade institucional da
Comissão Nacional da Verdade, com um trabalho enorme a realizar e o período
curto do mandato, impõe a necessidade de articular iniciativas nos diversos
planos, o que demanda criação de canais institucionais de participação e de
colaboração.
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