O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Desarquivando o Brasil LV: Entrevista e livro de Renan Quinalha sobre justiça de transição

Para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/), publico agora esta entrevista com Renan Quinalha, mestre em Direito pela USP e doutorando em Relações Internacionais pela mesma instituição.
Ele lança nesta semana sua dissertação de mestrado, na área de concentração em Filosofia e Teoria Geral do Direito, Justiça de transição: contornos do conceito (São Paulo: Dobra Editorial; Expressão Popular, 2013). Quinalha continua a trabalhar com o tema, e não só no doutorado: além de integrar o IDEJUST (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição), assessora a Comissão da Verdade "Rubens Paiva", da ALESP.
Ele pesquisou tema recente, pouco frequentado pelos juristas no Brasil, com uma visão crítica sobre o próprio conceito, a academia, o Judiciário e o Poder Executivo.
Seu livro será lançado no próximo dia 4 de abril, no primeiro andar da Faculdade de Direito da USP, sala Visconde de São Leopoldo, das 19 às 21 horas. Com ele, sairá nova edição de obra jurídica de Tarso de Melo, Direito e ideologia - estudo a partir da função social da propriedade rural, pelas mesmas editoras, na coleção Direitos e Lutas Sociais.




Seu livro Justiça de Transição: contornos do conceito foi baseado em sua dissertação de mestrado em Direito. Gostaria de perguntar se, no Brasil, as abordagens do tema na academia jurídica são muito diversas das que encontramos na ciência política.

No Brasil, ainda é bastante incipiente a reflexão sobre a justiça de transição. Não faz mais do que cinco anos que este tema começou a ser discutido de forma mais sistematizada e para além dos movimentos de familiares de desaparecidos políticos e vítimas da ditadura, que eram os únicos setores que levantavam a bandeira da memória, da verdade e da justiça em relação aos crimes do passado. Também os meios acadêmicos só mais recentemente têm incorporado essa temática de maneira mais constante. No entanto, nas Faculdades de Direito, ainda prevalecem um dogmatismo normativista e um apego aos temas jurídicos tradicionais, o que coloca em segundo plano algumas questões complexas que envolvem os direitos humanos, como a justiça de transição. Por sua vez, nas Faculdades de Ciências Sociais, os cientistas políticos, por terem uma marcada preocupação analítica com os problemas do tempo presente, estão voltando a se interessar por esse assunto, depois de terem se dedicado profundamente ao tema das transições durante as décadas de 1980 e 1990. Por se tratar tanto de um programa normativo que orienta políticas públicas (nacionais e internacionais) como um conceito transdisciplinar, surgido nas fronteiras entre o direito internacional e a ciência política, a justiça de transição demanda uma reflexão em diversos planos e searas. É preciso considerar saberes construídos tanto a partir de teorias e de normas internacionais como a partir da prática local dos movimentos sociais que reivindicam justiça e reparação em relação a violações de direitos humanos. No geral, as formulações em torno desse tema ainda são marcadas pelo privilégio do legalismo, pela centralidade do Estado e de suas instituições (desprezando uma visão “de baixo para cima”), por uma insuficiência analítica sobre o conceito de transição e seus limites, por um minimalismo conservador que considera apenas direitos civis e políticos (ocultando sofrimentos econômicos e sociais), dentre outros problemas. A despeito de ter colaborado para o processo de acerto de contas com o passado nesses anos recentes em nosso país, ainda é preciso maior refinamento dessa reflexão tanto da perspectiva do Direito quanto das Ciências Sociais para avançarmos mais rapidamente e com eficácia para a realização da justiça.


Por que o conceito de justiça de transição está ligado a uma ameaça tácita de regresso autoritário?

Um paradoxo comumente referido para tratar da justiça de transição é o de que nos momentos em que a justiça é mais necessária, parece tornar-se mais difícil de atingi-la. Quanto mais indispensável, ela pareceria também mais inalcançável. Isso significa dizer que a justiça de transição é, sem dúvidas, uma justiça do possível, imposta por normas internacionais na maior parte das vezes vinculantes aos Estados, mas efetivamente viabilizada por determinadas correlações de forças que orientam a política doméstica das diferentes nações. A despeito da importância que o direito passa a ter, fato é que a natureza contingente da política permanece presente, ainda que com esse balizamento jurídico. Com efeito, os momentos transicionais reconfiguram os traços e o funcionamento ordinários da política. Esta, na falta de regras e instituições bem definidas e estabilizadas, é tomada pelos atores políticos, que passam a ditar os rumos da comunidade política a partir de suas expectativas, cálculos e negociações. No entanto, essa liberdade não é ilimitada: sofre um constrangimento fundamental, característico e inevitável nesses momentos, que é a ameaça de uma regressão autoritária caso os interesses fundamentais residuais dos membros do governo autoritário sejam afetados. Nessa direção, a exemplo das limitações postas à política nessas conjunturas críticas, um de seus pontos mais complexos, a justiça, também é posta em perspectiva, pois pode provocar um novo golpe a e “morte rápida” da democratização do regime. Assim, a justiça, durante a transição, muitas vezes pode ser definida por sua negação: a concessão de anistia e outros métodos de limitar a prestação da justiça. Além disso, diversas são as limitações concretas e de ordem prática existentes para que sejam implementados programas de justiça durante os momentos excepcionais: recursos materiais, técnicos, humanos etc. Então, passados 30 anos da transição democrática brasileira, sem risco de regressão autoritária no horizonte, por que adotar uma terminologia como justiça de transição na fase da consolidação? O que justifica esse uso? Não seria mais pertinente e adequado, mesmo do ponto de vista normativo de construção e aprofundamento de uma democracia de melhor qualidade, falar-se em “justiça de consolidação”? Ou apenas de justiça? Essa é a provocação central deste trabalho.


Dos eixos da justiça de transição (verdade, memória, reparação, justiça e reforma das instituições), em qual deles julga o Brasil ter mais avançado no governo de Dilma Rousseff? Em qual o atraso é mais notável?

Tivemos avanços importantes nos últimos anos, produto não apenas de ações governamentais e políticas públicas, mas também da mobilização crescente na luta por memória, verdade e justiça. Setores da juventude brasileira estão se empenhando para que os crimes sejam esclarecidos e os responsáveis sejam julgados. Está ficando claro que certos limites da democracia e do Estado de Direito atualmente existentes no Brasil têm relação com o autoritarismo recente da ditadura. Sem dúvidas, as políticas de reparação pecuniária e simbólica estão avançaram significativamente no último período, com exemplos interessantes de políticas públicas como o projeto Marcas da Memória e as Caravanas da Anistia, da Comissão de Anistia de Ministério da Justiça. A instituição da Comissão Nacional da Verdade e a dispersão de comissões dessa natureza em entes federativos, universidades, sindicatos etc são também promissores, apesar das limitações ainda existentes, em relação à reconstrução da verdade sobre esse período. Mas é certo que a dimensão em que nosso atraso é maior, tanto em relação às normas internacionais como em relação aos países do Cone Sul, é o processamento penal dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos que foram cometidas pelos agentes da ditadura civil-militar brasileira. A despeito do notório esforço do Ministério Público Federal de mover ações penais com a finalidade de responsabilizar os autores desses crimes, ainda não existe, em nosso país, uma única condenação criminal dessa natureza. É nesse campo em que o Estado brasileiro ainda está em débito.

Tendo em vista as decisões contrastantes, em 2010, do Supremo Tribunal Federal sobre a lei de anistia, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos no chamado caso Araguaia, que concepção de democracia fundamentaria as decisões do Judiciário brasileiro que ignoram a jurisprudência internacional sobre a matéria?

A concepção de democracia que pode ser extraída do acórdão do STF sobre o julgamento da ADPF 153 é bastante limitada e formalista. Os Ministros da nossa Suprema Corte fizeram uma leitura passadista de um problema do presente: consagraram a legalidade da ditadura e contrariaram a longa afirmação histórica dos direitos humanos na ordem internacional e no processo constituinte de 1988. Ao validar a interpretação de que a Lei de Anistia também beneficiou os agentes do Estado que torturaram, sequestraram, assassinaram, estupraram, desaparecem com corpos, dentre outras atrocidades, o STF foi na contramão da história. Alegando ter havido, no passado, um pacto político amplo que fundou a nova democracia, além de uma Emenda Constitucional que teria limitado o Poder Constituinte originário de 1988, a cúpula do Judiciário brasileiro distorceu a história fatual da transição ao ignorar que o projeto de anistia da ditadura foi imposto às demais forças políticas e também contrariou as lições mais elementares de direito constitucional. Além disso, assumiu um argumento da “especificidade” brasileira para afastar as normas internacionais e as experiências comparadas, sobretudo as regionais, apontando para uma concepção provinciana de soberania e para uma timidez institucional que não se verificou nas diversas matérias importantes da vida política nacional que têm sido apreciadas pela Corte.

No jogo entre resistências e apoios aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em que medida pesa o passado autoritário do país?

A despeito da reivindicação persistente dos grupos de direitos humanos, a ideia de uma comissão da verdade, orientada a esclarecer as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos na ditadura, era negligenciada a um papel inteiramente marginal no espaço público. A maior parte das forças políticas organizadas em movimentos sociais ou partidos, inclusive de esquerda, priorizaram outras agendas durante a reconstrução da democracia, desprezando esse assunto como se fosse apenas uma preocupação restrita aos familiares de desaparecidos. A questão adquiriu maior visibilidade na vida política brasileira somente quando do lançamento do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Dentre os diversos temas tratados nesse documento, o que causou maior polêmica na ocasião de seu lançamento oficial (seguido pelo controle social da mídia, pela defesa do aborto e da união civil homoafetiva com direito à adoção) foi, certamente, aquele relativo ao direito à memória e à verdade, previsto no eixo orientador VI e detalhada nas diretrizes 23, 24 e 25 do PNDH-3. No primeiro momento, a proposta original era de criação de uma Comissão da Verdade que também pudesse realizar - ou ao menos incentivar - a justiça em relação aos crimes apurados. Com efeito, ainda que havendo uma restrição constitucional para que qualquer tipo de comissão administrativa usurpasse funções estritamente jurisdicionais, havia uma legítima expectativa dos grupos militantes dos direitos humanos no sentido de que algum tipo de justiça, ainda que em sentido mais amplo e não apenas criminal, fosse finalmente levada a cabo, por um órgão de Estado, contra aqueles que cometerem crimes contra a humanidade e que permaneceram impunes.   

Diante da resistência de diversos setores especialmente a essas medidas, alguns inclusive internos ao próprio governo, como os Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, houve a edição, por parte do Presidente Lula, do Decreto n. 7177 de 12 de maio de 2010, alterando o PNDH-3. Tratou-se, com clareza, de um recuo programático justamente nos temas de direitos humanos mais politizados e que provocaram maior tensionamento.

Uma breve análise comparativa entre o texto original e o atual, no que se refere às medidas mais polêmicas acima apontadas, permite concluir que houve uma supressão de referências como "repressão ditatorial", "regime de 1964-1985", "resistência popular à repressão", "pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade" e "responsabilização criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964 - 1985".

Essas supressões de certos termos e expressões, que até então estavam interditados no vocabulário político brasileiro, foram acompanhadas de certos acréscimos, tais como: "prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade",  "período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988" e "pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores".

O breve cotejo terminológico revela que o recuo e o abrandamento discursivos operados pelo governo depois da revolta de setores ligados ao regime autoritário estão orientados, essencialmente, por três preocupações. A primeira é a de que as medidas de verdade, memória e justiça sejam diluídas em um período histórico mais largo, sem identificação expressa com a ditadura civil-militar de 1964 - 1985; a segunda preocupação é que as violações aos direitos humanos não sejam responsabilizadas penalmente e tampouco caracterizadas como crimes de lesa humanidade, por serem estes insuscetíveis de graça, anistia e prescrição, conforme consolidado no campo do direito internacional dos direitos humanos; por fim, uma terceira preocupação é deslocar as medidas do campo da ação mais imediata para o do debate público, com uma terminologia mais vaga e menos vinculante. Não por outra razão, a menção a ações de responsabilização criminal na primeira versão do texto foi substituída apenas pela responsabilização civil.

É verdade que a Comissão foi constituída e negociada em um processo marcado por uma série de tensões e ambiguidades, típicas da transição pactuada brasileira, mas, sem dúvidas, ela foi produto de uma conjuntura internacional favorável e de uma intensa mobilização de setores cada vez mais amplos da sociedade interessados em passar a história desse período a limpo. E essa mobilização transcende o trabalho e os limites da própria Comissão.

É preciso registrar que nem todas as limitações existentes ou, ao menos, a parte mais significativa delas, não podem ser atribuídas como de responsabilidade exclusiva da própria Comissão. Os maiores bloqueios ao avanço do trabalho de verdade e justiça em nosso país ainda estão postos no campo da lógica da governabilidade e das regras institucionais ainda pouco democráticas da política brasileira. Tampouco os inegáveis avanços dessa pauta no período recente em nosso país também podem ser creditados ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade, dado que tem sido determinante a mobilização acima referida para pautar essa discussão dentro e fora da Comissão da Verdade.

Pode-se dizer que a Comissão Nacional da Verdade chega atrasada, em torno de 30 anos após o final da ditadura. Isso acarreta algumas peculiaridades devido a esse contexto histórico e institucional diferenciado. A primeira delas é a dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de informações novos sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período de tempo já transcorrido. Assim, ao contrário de suas congêneres em outros locais do mundo que buscavam apurar apenas violações a direitos humanos (geralmente direitos civis e políticos), a Comissão da Verdade brasileira promete menos novidades e impactos de ineditismo, sobretudo porque os familiares e algumas iniciativas oficiais de busca da verdade já conseguiram produzir uma quantidade razoável de informações sobre o passado. Mas algumas questões fundamentais, como o paradeiro dos desaparecidos políticos, ainda precisam ser respondidas.

Assim, sem deixar de fazer o embate político com as pastas militares para ter acesso pleno aos arquivos da ditadura e avançar na apuração das violências, uma das maiores tarefas da Comissão Nacional da Verdade será romper com a tentação da "teoria dos dois demônios" e suas variações, assumindo claramente seu papel de dar voz às vítimas, registrar o trabalho já feito pelos familiares e, sobretudo, oficializar a versão desses setores diretamente atingidos. Para isso, deve também trabalhar do modo mais aberto, transparente, participativo e público possível, evitando cair na concepção equivocada de que o grande trabalho da Comissão se resume a um relatório final, perdendo de vista que o processo da busca da verdade já é reparador por si mesmo se feito de modo inclusivo e cuidadoso com as vítimas.

Outra função fundamental que a Comissão tem cumprido, mas que precisa aprofundar, é a de catalisar as iniciativas locais, regionais e setoriais de busca da verdade. Com efeito, a baixa densidade institucional da Comissão Nacional da Verdade, com um trabalho enorme a realizar e o período curto do mandato, impõe a necessidade de articular iniciativas nos diversos planos, o que demanda criação de canais institucionais de participação e de colaboração.
           

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