O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 26 de maio de 2012

Desarquivando o Brasil XXXVI: Comissão da Verdade e a USP vigiada

Ocorreu, na quinta-feira última, um ato em prol da criação de uma Comissão da Verdade na Universidade de São Paulo. Significativamente, tendo em vista a estreita colaboração de vários professores da Faculdade de Direito com a ditadura militar, foi lá que ocorreu o "Juristas pela Comissão da Verdade na USP".
Não pude assistir ao importante acontecimento. Leio na Rede Brasil Atual  que Fábio Konder Comparato foi o primeiro a discursar, dizendo ser necessário abrir a "caixa de surpresas da USP durante o regime". Entre os outros juristas, estava a internacionalista Deisy Ventura.
É necessário que universidades, sindicatos e outras organizações criem suas comissões - não se pode esperar que os sete conselheiros nomeados por Dilma Rousseff tudo pesquisem, muito menos se deve pressupor que o governo federal tenha o monopólio das iniciativas deste assunto que diz respeito ao que é comum no país. 
Ademais, as caixas e os caixões que a USP deve guardar serão muito reveladores. Algumas instituições de ensino superior não trouxeram ameaças significativas à ditadura. Pode-se encontrar no arquivo do DOPS/SP (no Arquivo Público do Estado de São Paulo, de onde tirei os exemplos desta nota), por exemplo, elogio à Universidade de Guarulhos, que havia convidado ninguém menos do que Brilhante Ustra para palestrar.
No entanto, na Universidade de São Paulo, de feição um tanto mais crítica, surgiram vários nomes que contestaram o regime, seja pela palavra, pela mobilização, ou até pelas armas - neste caso, uma minoria. Iara Iavelberg, formada pela Faculdade de Psicologia da USP, foi um dos militantes que tomou esse último caminho.
Ela entrou na clandestinidade antes de ser contratada como professora na Universidade e foi morta em Salvador, em 1971, antes de seu companheiro, Lamarca, ser encontrado e assassinado (ver as páginas 173 e 174 do Dossiê Direito à Memória e à Verdade da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos). Com Marighella já assassinado, ambos eram as pessoas mais procuradas do país. Eles haviam deixado a VPR e estavam no MR-8.
Hoje, ela nomeia o centro acadêmico de Psicologia.
Na mesma Faculdade, temos o exemplo da estudante Aurora Maria do Nascimento Furtado, também referido no Dossiê, militante da ALN assassinada no Rio de Janeiro depois de tortura (que incluiu a "coroa de Cristo"). Talvez seja mais esclarecedor, no entanto, ler a tese de Samir Pérez Montada em Psicologia Social, orientada pela renomada professora Ecléa Bosi, que foi colega de Iavelberg e lecionou para Aurora: Tempos de política: Memórias de militantes estudantis do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Apenas mais um exemplo: Alexandre Vannucchi Leme, estudante da Geologia e militante da ALN, que, embora não participasse da luta armada, foi assassinado em 1973, empresta seu nome ao DCE da USP. Ele foi assassinado por meio de tortura no DOI/CODI em São Paulo. Aqui, pode-se ler a farsa oficial publicada por O Globo da morte por "atropelamento". Neste artigo de Fernanda Ikedo, temos a ameaça feita pelo Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, a Dom Paulo Evaristo Arns por ter celebrado missa em memória ao estudante morto.
Acontecimentos mais ordinários da vida acadêmica mereciam atenção das autoridades. Panfletagem, claro, era uma atividade a ser cuidadosamente vigiada e relatada, mas também o comércio de livros, inclusive dos subversivos Celso Furtado e Josué de Castro, como se vê abaixo. Seus livros eram vendidos "ostensivamente na banqueta existente na Faculdade de Filosofia" em 1970.





De fato, boa parte do melhor pensamento brasileiro estava proibida nesses anos...
Os espiões que atuaram na Universidade atendiam a esse intento do regime de controlar uma Universidade perigosa, perigosa como o pensamento deve ser.  A repressão ao movimento estudantil tinha sido uma preocupação da ditadura militar desde 1964 (a solução de financiá-lo para cooptá-lo e calá-lo ainda não havia sido urdida) com o ataque sobre a UNE e as uniões estaduais, postas fora da legalidade por meio da Lei Suplicy de Lacerda, de n° 4.464, de 9 de novembro de 1964. As campanhas e as posses nos diretórios acadêmicos e nos DCE eram investigadas.
É interessante ler, em relatório de 31 de março de 1965, que o comandante do II Exército, Gal. Amaury Kruel, na qualidade de "paraninfo", participou da posse do novo Diretório Acadêmico, em meio a certa polêmica: Hélio Navarro, então estudante (depois, seria eleito deputado pelo MDB e ainda seria cassado e preso), discursou contra o regime. O General, no entanto, foi aplaudido. O professor Goffredo da Silva Telles, que inicialmente apoiou o golpe, elogiou o militar e foi vaiado pelos estudantes: 'V. Excia., General Amaury Kruel, é um dos grandes soldados da Revolução de 31 de março".
O comentário do agente que escreveu o relatório parece apontar a consciência da impopularidade do regime naquele lugar: "Saliente-se que a vaia não foi pròpriamente pela citação do nome do general, mas principalmente pela revolução pròpriamente dita".
Goffredo da Silva Telles acabou por redimir-se retoricamente, segundo o relatório, exclamando que aquela Faculdade continuava "de pé, pela democracia, pela liberdade", o que é irônico, retrospectivamente, ao lembrarmos da carreira de Buzaid, Gama e Silva, Miguel Reale e outros durante a ditadura militar.
Por sinal, no Seminário Direito e Democracia, realizado na UFSC em 2010, o professor Airton Seelaender apresentou um ensaio sobre o apoio de Goffredo à ditadura militar, até o desencanto com o regime e a apresentação da Carta aos Brasileiros em 1977. O vídeo de sua fala está disponível.






A vigilância sobre a Universidade estendia-se também às aulas, uma vez que a liberdade de cátedra deveria subordinar-se à segurança nacional. Nesse ponto, agentes infiltrados como estudantes eram essenciais.



As aulas de Comparato, veja-se, também eram vigiadas. Neste trecho de um relatório de maio de 1973 sobre a Faculdade de Direito da USP, conta-se que esse professor criticava muito o regime (e a direção da Faculdade). Tenho certeza de que esta citação está correta, pois eu o vi (remontando ao próprio avô) dizer o mesmo em sala de aula em 2003: "ao tempo da República velha, que deu lugar à República velhaca em que estamos". A citação continua atual!
Quem conhece o grande jurista não se espantará com o fato de que ele atacava a ditadura. Quem conhecia os alunos não há de se admirar com o fato de que muitos não concordavam "com a opinião do mestre a respeito da política nacional".
Creio que a caixa de surpresas da USP deve ser vasta, e é importante que seja aberta. Deve-se lembrar que os reitores de 1963 a 1969, e desse ano a 1973, os professores da faculdade de Direito Gama e Silva e Miguel Reale, tinham notórios contatos estreitos com as autoridades militares, participaram ativamente da legitimação jurídica do regime, que soube retribuí-los com cargos e honras, e provavelmente receberam importante documentação do governo federal em matérias sensíveis à segurança nacional (isto é, à segurança da ditadura).

Nestes interessantes dias de hoje, em que se fazem ouvir reações contra a demanda da sociedade brasileira pela verdade, inclusive oriundas de professores de Direito, que julgam não haver fundamento jurídico algum para essa demanda, quero terminar esta nota com as palavras de Comparato em artigo de 2004, "O direito à verdade no regime republicano":


Em hipótese nenhuma os crimes cometidos por agentes públicos (ou seja, etimologicamente, funcionários do povo) podem ser subtraídos ao conhecimento público. Nenhuma razão de política interna ou internacional poderá jamais justificar a violação desse princípio. No campo da política interna, o encobrimento oficial de delitos representa, sempre, a superposição do interesse particular de grupos, classes ou corporações ao direito fundamental do povo de conhecer a verdade, isto é, a identidade dos criminosos e as circunstâncias do crime. No plano internacional, a pretensa razão de Estado, invocada para fundamentar o sigilo, nada mais é do que a afirmação do interesse próprio de um país contra o bem comum da humanidade. Em ambas as hipóteses, portanto, há uma patente negação do princípio republicano.
Esperemos que a maior universidade do país seja capaz de honrar esse princípio. Seu exemplo certamente inspiraria iniciativas congêneres no país.

P.S. Quem quiser apoiar a formação da Comissão da Verdade na Universidade de São Paulo, pode fazê-lo por meio do Fórum Aberto para a Democratização da USP: http://democraciausp.blogspot.com.br/2012/05/abaixo-assinadopor-uma-comissao-da.html

4 comentários:

  1. Sim,e não era apenas na Faculdade de Direito. Havia outras faculdades onde se refletia esta cisão política, que ocorria na sociedade.

    Minha mãe,que era professora na faculdade de Educação,comentou que por ocasião da reforma universitária,uma das lutas dos professores foi para criar a possibilidade do aluno ser "jubilado" após x anos de curso.Isso com o objetivo, também, de dificultar os "eternos alunos",os infiltrados,de ambos os lados, mas principalmente,da polícia.
    Cybelle

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    1. Obrigado, Cybelle - quando entrei na graduação, um professor falou dos estudantes profissionais e da jubilação. Mas eles simplesmente mudavam de curso, pelo que acompanhei.
      Achei documentos também de outras unidades, principalmente da Politécnica, da Medicina e da FFLCH.
      Pádua

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  2. na atual "administração", acho difícil...

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    1. Por isso criaram este Fórum: http://democraciausp.blogspot.com.br/

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