O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Desarquivando o Brasil CLX: Eduardo Seabra Fagundes (1936-2019) e a OAB: terrorismo na ditadura militar, Bolsonaro

Os nomes de Eduardo Seabra Fagundes e de seu pai, Miguel Seabra Fagundes, falecido em 1993, são muito conhecidos no campo jurídico. Ambos presidiram a OAB (o pai, durante o biênio 1954/1956) e se opuseram à ditadura militar. Como o primeiro faleceu em 25 de novembro de 2019, achei que seria interessante escrever esta nota.
Ele havia presidido o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) no biênio 1976/1978. A Ordem dos Advogados do Brasil fez bem ao lembrar que ele presidia o Conselho Federal da OAB  e era o destinatário da bomba que assassinou a secretária Lyda Monteiro da Silva em 1980. Nesse momento, a ditadura buscava permanecer por meio de atentados terroristas.
No primeiro volume do relatório da Comissão Nacional da Verdade, lemos o que se sabia na época: era possível que o mesmo grupo de militares que planejou o atentado do Riocentro, que poderia ter causado milhares de vítimas, seria responsável pela bomba na OAB:
233. Do grupo que planejou o atentado do Riocentro, participaram oficiais do Exército, agentes do DOI-CODI do I Exército e do SNI, além de policiais e civis. Era um grupo de extrema-direita, responsável por diversos atentados no período. O civil Hilário José Corrales, irmão de Gilberto Benigno Corrales, foi identificado, no IPM de 1999, como membro da equipe do coronel Freddie Perdigão Pereira, que lançou a bomba na Casa de Força do Riocentro. Ele é, inclusive, apontado como um dos artífices das bombas, junto com o sargento Guilherme Pereira do Rosário. Teria sido de autoria deles a carta bomba que vitimou Lyda Monteiro da Silva, secretária do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980. O coronel Freddie Perdigão Pereira é um exemplo de como operava o chamado Grupo Secreto, que, muitas vezes, não obedecia a disciplina e a hierarquia militar, oferecendo múltiplas capacidades de atuação a partir de um objetivo comum.
No entanto, foi a Comissão do Rio que conseguiu prosseguir na investigação desses nomes protegidos pelas Forças Armadas e pelo Judiciário brasileiros, tão protegidos que o retrato falado do suspeito só foi completado neste século. Cito o relatório desta Comissão:
No decorrer dos anos, diferentes tentativas de reabrir o caso foram rejeitadas e recorrentes arquivamentos ordenados. Essas ações configuram um total acobertamento dos fatos por parte do Estado, no sentido de impedir a identificação de suas circunstâncias e seus autores. Somente em 2000, o retrato-falado dado à época pela testemunha foi completado, viabilizando, finalmente, a apuração dos fatos.
A Comissão da Verdade do Rio investigou o caso e conseguiu depoimentos que esclareceram mais este episódio de terrorismo perpetrado pela ditadura militar:
A partir dos depoimentos coletados foi possível afirmar que o sargento Magno Cantarino Motta, paraquedista do Exército, foi quem entregou pessoalmente a carta com o artefato que vitimou D. Lyda Monteiro. Na condição de agente da repressão vinculado ao CIE, Magno adotou o codinome “Guarany”.
Para executar a ação, Guarany subiu pelo elevador até o 4º andar do prédio da OAB, na av. Marechal Câmara, 210, Centro do Rio endereço em que a CEV-Rio se instalou. Segundo a testemunha ocular, que dialogou com o militar momentos antes de ele entregar o envelope pardo, contendo a bomba de fabricação artesanal, o sargento vestia calça e camisa social “como os muitos rapazes que trabalhavam pelos escritórios da região”23. A testemunha relatou também que ele tinha cabelos encaracolados, abaixo das orelhas, e aparentava pouco mais de trinta anos. De estatura média, falava pausado e agiu com cordialidade com as pessoas que encontrou em seu trajeto.
Segundo as testemunhas ouvidas pela CEV Rio, a ação foi comandada pelo coronel Freddie Perdigão Pereira, do CIE, e a confecção da bomba esteve a cargo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto no atentado do Riocentro, no ano seguinte, em consequência da explosão da bomba que trazia no colo.
Eis a cadeia de comando do atentado identificada pela Comissão, encabeçada pelo ditador da época e ex-chefe do SNI:


Que Eduardo Seabra Fagundes e a Ordem dos Advogados tenham sido alvo da ditadura pode parecer uma surpresa. Como se sabe, a OAB apoiou o golpe de 1964 e colaborou na implementação do AI-5.
Nessa época, já havia ocorrido uma mudança importante nos rumos políticos da organização desde o mandato de Raimundo Faoro, de 1977 a 1979.
Antes de presidir a entidade, Seabra Fagundes já criticava a ditadura. Ele participou do lançamento do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA; um dos senões da atuação do jurista, todavia, foi seu posicionamento favorável ao perdão aos torturadores, conforme destacado no relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva"). Cito documento guardado pelo Arquivo Nacional, uma Informação do SNI sobre o II encontro dos Presidentes das Subseções da OAB, que ocorreu em Itaperuna em abril de 1978, e que destacava o evento do CBA:


Depois do atentado, ele não arrefeceu. Acompanhou a defesa dos advogados presos (Dalmo Dallari e José Carlos Dias) por defenderem os trabalhadores na Greve do ABC de 1980. Suas declarações perante a Justiça Militar foram objeto de um Encaminhamento confidencial do SNI:



Em 1978, haviam sido sequestrados em Porto Alegre, com a colaboração das autoridades brasileiras, e levados para o Uruguai os cidadãos daquele país Lilián Celiberti e Universindo Rodriguez Díaz, oposicionistas daquela ditadura. A OAB também ajudou a denunciar o caso. Durante o mandato de Eduardo Seabra Fagundes, a OAB tomou o depoimento do agente Hugo Walter Garcia Rivas:


Ele explicou como havia sido o sequestro e falou da tortura infligida aos prisioneiros:


Ele ainda afirmou que decidiu deixar o Exército uruguaio porque não suportava mais participar dessas atividades, que incluíam a tortura. O depoimento foi objeto de um informe confidencial do SNI, de onde o retirei.
Entre diversas outras atividades, Eduardo Seabra Fagundes participou deste "ato público em solidariedade ao povo uruguaio", ainda sob ditadura como o Brasil. Naquele ano, 1981, o general Gregório Álvarez assumiria o poder, oito anos depois do golpe naquele país. Seabra Fagundes denunciou o Estado brasileiro por cooperar com a repressão política no Uruguai.



Ontem como hoje, o Brasil influenciava politicamente o Uruguai. Naquele momento, Eduardo Seabra Fagundes não presidia mais o Conselho Federal da OAB. Ele continuou a se pronunciar publicamente, como pela revogação da lei de segurança nacional e pela convocação de uma assembleia nacional constituinte. Essas medidas, por sinal, foram enfatizadas pela Carta de Manaus, produto do VIII Conferência Nacional da OAB, em maio de 1980. A Informação confidencial do SNI sobre a Conferência não deixou de perceber esse fato:


Ainda haveria muito a comentar sobre esse breve período em que advocacia e luta democrática pareciam largamente coincidir. Termino, porém, esta nota com a lembrança de que, embora doente, Eduardo Seabra Fagundes ainda teve tempo de assinar, com outros ex-presidentes do Conselho Federal da OAB, interpelação dirigida ao atual ocupante da presidência da república, Jair Bolsonaro, para que explique o que afirmou saber sobre o desaparecimento de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, pai de Felipe Santa Cruz, atual presidente daquele Conselho.
Provavelmente trata-se da última ação que assinou, com um tema que diz respeito à justiça de transição, pois envolve o destino e a honra de um desaparecido político. Contei o incidente em outra nota deste blogue. Em represália contra a OAB, Bolsonaro afirmou que contaria o que realmente teria acontecido com aquele desaparecido da ditadura. No pedido de explicações, lemos que:
Ao insinuar que o genitor do Requerente não foi vítima de desaparecimento forçado pelo regime ditatorial, o Exmo. Sr. Jair Bolsonaro ou esconde informações ou divulga informações falsas em detrimento da honra subjetiva e objetiva de Fernando de Santa Cruz, do Requerente e de seus familiares, atraindo, assim, os tipos penais de que tratam os arts. 138, § 2º, e 140 do Código Penal.
Em todo caso, suas manifestações estão marcadas por dubiedade, ambiguidade e equivocidade, o que fundamenta a pretensão do Requerente, na condição de filho e ofendido, de exigir as explicações em juízo de que trata o art. 144 do Código Penal.
Trata-se dos crimes de calúnia (art. 138) e injúria (140). A petição de 31 de julho deste ano prossegue: "Ou o Requerido apurou fatos concretos sobre o citado crime contra o genitor do Requerente e, nesse caso, tem o dever funcional de revelá-los, ou, também grave, pratica manobra para ocultar a verdadeira identidade de criminosos que atuaram nos porões da ditadura civil-militar, de triste memória."
O processo, Petição n. 8304-DF, foi julgado extinto pelo Ministro Barroso em 26 de agosto deste ano, depois que foram prestadas as explicações e, assim, ele ter cumprido seu objetivo. Não sei se Felipe Santa Cruz, depois de receber judicialmente essa resposta do ocupante da presidência da república, desejará futuramente processá-lo alegando a prática de crimes contra a honra. Há o entendimento de que seria caso de crime de responsabilidade, como destacou a Associação Juízes para a Democracia.
Como, salvo melhor juízo, ele parece já ter cometido alguns destes crimes nestes 11 meses de mandato, creio que a dignidade do país, hoje, chama-se impeachment.

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