O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 14 de dezembro de 2019

O primeiro disco de ópera: "La Traviata", de Verdi (30 dias de ópera: Dia 5)

O primeiro disco de ópera completa que tive foi uma gravação ao vivo de La Traviata, de Giuseppe Verdi e o libretista Francesco Maria Piave. Foi um presente de aniversário, eu mesmo escolhi. Já tinha visto o filme de Zeffirelli com uma cantora inadequada para o papel e vários cortes na partitura.
Eram dois long plays, discos de vinil, de uma coleção de óperas com Maria Callas, da EMI, que era vendida exclusivamente nas antigas lojas Breno Rossi. Agora, podem ser achados por quase quatrocentos reais em sítios de compra na internet.
Tratava-se de gravação ao vivo feita em Lisboa, em 1958, com Franco Ghione regente a Orquestra e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos. O então jovem Alfredo Kraus era o tenor e Mario Sereni, o barítono.
A EMI lançou esses discos porque não tinha uma Traviata de estúdio com Callas, embora tenha sido o segundo papel que a grande artista mais cantou. Ela havia gravado a ópera para a Cetra, sua primeira gravadora, em um disco não muito inspirado, e teria que esperar, segundo contrato, para fazê-lo novamente. A nova gravadora, no entanto, resolveu não esperar o soprano estar disponível e gravou em 1956 a ópera com Antonietta Stella e o time de artistas com quem Callas mais trabalhou em estúdio: o regente Tullio Serafin, o barítono Tito Gobbi e o tenor Giuseppe di Stefano.
Felizmente, restaram algumas gravações ao vivo, todas superiores à de estúdio de 1953, que foi vendida nas bancas na coleção dos 400 anos da ópera que a Folha de S.Paulo vendeu no Brasil. Na Cidade do México, em 1951 (com um som mais precário) e 1952; em Milão, 1955 e 1956 (com um som precário); Lisboa (1958) e Londres (1958). Ela cantaria o papel pela última vez em Dallas, naquele mesmo ano, em montagem do Zeffirelli que deixava a Violetta no palco desde a abertura, deitada; toda a ação ficava em retrospectiva antes do morte no terceiro ato; é provável que tenha sido parecida em espírito com o filme feito nos anos 1980.
Em Londres, ela estava doente e isso se ouve especialmente no fim do primeiro ato. Dito isso, ela ainda continuava vocalmente mais firme do que, por exemplo, a Stella ou a Renata Tebaldi, e a interpretação é de chorar.
La Traviata, obra de 1853, é uma das óperas mais populares, e com razão. O Brinde do primeiro ato é conhecidíssimo (nesta ligação, a partir de 9'37"). A história vem de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Violetta Valéry, a "transviada", é uma cortesã; o jovem Alfredo Germont, em uma festa na casa dela, em que tem um momento de fraqueza (está com tuberculose), declara-lhe seu amor. Ela parece não levá-lo muito a sério, mas fica perturbada; ela tenta se livrar dessa nova emoção com várias subidas até o ré bemol (e, nesta gravação, também um mi bemol não escrito pelo compositor) na difícil ária "Sempre libera", em que, toque genial de Verdi, ouve-se a voz do tenor, nos bastidores, repetindo a declaração de amor. Nesta gravação, Kraus acrescenta um dó agudo também não previsto. No segundo ato, Violetta vive com Alfredo numa casa dela afastada da cidade. Ele vive do dinheiro dela, que está a acabar. ela resolve vender todos seus bens. O tenor canta sua paixão, até que descobre, pela criada, Annina, da transação que sua amada resolve fazer. Ele tem mais um solo em que canta seu remorso, cortado nesta apresentação (nesta ligação, pode-se ouvir toda a cena com Nicolai Gedda: https://www.youtube.com/watch?v=lYajIejuCgw). Violetta aparece e estranha a ausência de Alfredo. Chega um senhor; ela pensa que se trata dos negócios, mas é o pai de Alfredo, Giorgio Germont. Ele quer que ela deixe o filho e julga que ela o está explorando. Quando ela mostra que é o contrário, ele fica muito surpreso e acaba por se convencer de que ela o ama. No entanto, ele continua a querer a separação por causa dos... dois filhos. Ela não sabia da irmã de Alfredo; o escândalo do amor dele com Violetta impediria que a jovem se casasse; ademais, Giorgio acrescenta cruamente, Alfredo iria se cansar desta ligação, que não havia sido abençoada pelo casamento... Ela cede, então. Mas pede que ele conte o sacrifício a Alfredo depois de ela morrer. Esta longa cena entre soprano e barítono está entre as melhores de Verdi, que escreveu tantos diálogos como este, que fazem o drama tomar nova direção. Giorgio vai embora, ela escreve uma carta para Alfredo; ele chega, ela assusta-se, não lhe mostra o que escreveu, e suplica para que ele a ame, cantando um tema já ouvido na abertura, agora em um tempo mais largo que o deixa mais intenso. Ela vai embora - vai para a festa de Flora e o deixa; ele o descobre porque lhe entregam a carta depois que ela já se pôs a caminho. Subitamente (como sempre em Verdi) o pai aparece e pede para que ele retorne para a Provence. O filho, porém, decide ir à festa e recobrar Violetta. O pai canta uma caballetta mais fraca ainda do que o canto de remorso do tenor, cortada nesta récita (nesta ligação, pode-se ver esse trecho a partir de 5'17", com Cornell MacNeil). Na festa, depois de uns coros de divertimento, Violetta está com o novo namorado, o Barão Douphol. Chega Alfredo. Depois de um desentendimento, ele a humilha publicamente, jogando-lhe todo o dinheiro que ele acabou de ganhar no jogo para pagar o que ela gastou com ele; o pai de novo chega subitamente e passa um pito no filho. Violetta recobra os sentidos e canta um lamento, que o coro acompanha; o Barão e Alfredo duelarão. No último ato, ela está em casa, porém arruinada e em estado terminal da tuberculose. O médico diz a Annina que ela só tem mais algumas horas. Violetta decide dar o pouco que lhe resta aos pobres. Lê uma carta do Giorgio, que diz ter revelado tudo a Alfredo; no duelo, o Barão ficou ferido, "porém melhor". Ela exclama que é tarde, que eles não chegam nunca, e dá adeus ao passado. Alfredo chega e eles cantam que deixarão Paris para a saúde dela restaurar-se. Ela tenta por as luvas para sair, mas vê que não consegue mais. Percebe, enfim, que morrerá jovem. Chega Giorgio, e até o velho senhor percebe que ela está morrendo. Violetta fica feliz por falecer cercada de seus únicos entes queridos e despede-se. Subitamente, sente-se melhor; cessam os espasmos de dor; ela cai inerte após a declaração de que retorna a viver.
A denúncia da hipocrisia social e a glorificação da "transviada" só poderiam realmente inspirar Verdi. Ele mesmo, em sua vida pessoal, não era uma homem convencional, como o atesta sua vida com Giuseppina Streponi. Ambos acabaram casando depois de muitos anos juntos. Em Londres, o London Spetactor, em 1856, deplorou a escolha de uma história de um romance infame francês, cuja heroína é uma prostituta, e criticou Verdi nestes termos: "Verdi's music, which generally descends below his subjects, can in this case claim the ambiguous merit of being quite worth the subject"! Sobravam também impropérios para as damas da aristocracia que lotavam a Ópera sem aparentemente perceber que a obra era um ultraje... Esta crítica está reunida na divertida coleção de comentários ferinos ou absurdos ou apenas imbecis Lexicon of Musical Invective: Critical Assault on Composers since Beethoven's Time, de Nicolas Slonimsky.
Este tópico, porém, diz respeito à gravação. Esta apresentação de 1958 apresenta alguns cortes que se costumavam fazer de números inteiros, os menos interessantes da partitura, que assinalei, e também de repetições na cavatina do primeiro ato do soprano e na ária do terceiro ato. Eu não vejo perda musical nisso, mas corte de redundância, especialmente da melodia que o tenor já havia exposto e que não precisamos ver o soprano reiterar duas vezes (neste vídeo, com Natalie Dessay, pode-se ver a repetição a partir de 3'40''). Quanto à ária do terceiro ato, a repetição torna-a, além de repetitiva, menos adequada ao estado terminal da personagem. Vejam Renée Fleming cantar esta segunda estrofe a partir de 4'00''; a segunda vez enfraquece os gestos da primeira.
Entendo, contudo, que se deseje ouvir toda a música, com seus pontos mais fracos e suas redundâncias. Para isso, esta gravação de 1958 não servirá. O que ela traz é a maior intérprete do papel em uma boa regência de Franco Ghione e cantores de qualidade, como Alfredo Kraus, que gravaria a ópera algumas vezes, sempre muito bem (mesmo em 1993, com Kiri te Kanawa, 35 anos depois desta apresentação!), e Mario Sereni.
A enorme carga emocional da música de Verdi recai sobre a heroína; o espetáculo depende principalmente da cantora que interpreta Violetta, que deve enfrentar significativos desafios musicais e dramáticos. Verdi faz as exigências vocais mudarem de acordo com as transformações do caráter da personagem: no primeiro ato, a cortesã com suas cascatas de agudos e escalas pode ser cantada por um soprano ligeiro. O papel fica bem mais pesado no segundo e no terceiro ato, no entanto. Callas foi uma das poucas que soava firme no "Sempre libera" do primeiro ato, no si fortíssimo do "Amami Alfredo" do segundo, e na sua voz de peito na declamação de "a niuno in terra salvarmi è dato" do terceiro.
Os discos que comprei na década de 1980 tinham um som precário, que fazia a orquestra parecer uma bandinha. Lembro que Antonio Hernández, no Globo, criticou a gravação, que vinha de fitas de Alfredo Kraus, por essa razão. Depois, foram encontradas no Teatro as fitas da gravação original da récita, e a orquestra soa muito melhor nelas. A Myto lançou-as, é melhor do que o disco da EMI ou da Warner.
Pena que foi a única vez que Maria Callas cantou em Lisboa; além da gravação que ficou mítica e gerou uma peça (de Terrence McNally, The Lisbon Traviata; nunca a vi nem li), o Teatro registrou em vídeo alguns minutos da apresentação, os únicos momentos filmados de Callas cantando esta ópera: https://www.youtube.com/watch?v=pM11aNfOW7Y
Uma anedota para terminar este pequeno texto: tive um amigo na adolescência que considerava ópera um mero passatempo da burguesia europeia decadente que deveria ser desprezado. Uma vez, ele chegou à casa de meus pais e eu tocava essa Traviata, e a voz de Callas soava perturbadora na ária "Sempre libera", encarnando o conflito interior da personagem de uma forma totalmente original. Ele parou para ouvir, muito atento; quando terminou o lado do LP, quis saber o que era.
Acabou estudando canto lírico, o que nunca fiz.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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