Há quem, na plateia, continue conversando não só depois dos últimos sinais de começo do espetáculo, como após seu começo, por não se interessar pelas aberturas, em geral puramente instrumentais. Nem todo público de ópera gosta muito de música.
Até certa época, as aberturas instrumentais não tinham relação com os temas da ópera. Em Haendel, geralmente ocorre dessa forma. Mas se pode ver algo parecido no século seguinte, em Rossini, por exemplo, e as aberturas que ele repete em mais de uma ópera: Aureliano in Palmira, O Barbeiro de Sevilha e Elisabetta, regina d'Inghilterra compartilham a mesma música para cortinas ainda fechadas.
O uso dos temas, em certos casos, pode gerar uma abertura que é, em si mesma, uma miniópera: a do Tannhäuser, de Wagner, em sua versão de Dresde, é o caso, e dura um quarto de hora. Verdi, muito mais rápido em termos de ação teatral, não aprovava esses procedimentos; é conhecido o gracejo que ele fez das novas correntes da ópera, influenciadas por Wagner. O compositor italiano afirmou que escreveria uma abertura com uma duração que superaria todas as sinfonias de Beethoven juntas...
No entanto, não faria sentido negar a qualidade dessas peças de Wagner; mesmo sua duração se harmoniza . É bem conhecido comentário de Nietzsche, ele mesmo um compositor, sobre o sublime e o gênio no prelúdio do Parsifal (estou juntando no mesmo balaio aberturas e prelúdios neste tópico), também de Wagner, somente comparável a Dante.
Acho interessante teatralmente quando a abertura exige a ação cênica, e não serve apenas para apresentar os temas, ou criar um clima propício para o público se concentrar.
Este é, evidentemente, o caso do que Gluck fez em Ifigênia em Táuris (Iphigénie en Tauride); a tempestade do começo da ação irrompe na orquestra, depois é que a voz da protagonista se faz ouvir; aqui, em disco: https://www.youtube.com/watch?v=HcL1Meo7SIE; e em vídeo, ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=u0m07GnesPs
Em Capriccio, de Richard Strauss, com libreto dele mesmo e de Clemens Krauss, a abertura é uma peça de câmara, um sexteto de cordas que a protagonista ouve com muita atenção, enquanto seus dois pretendentes (o poeta e o músico) discutem. O personagem diretor de teatro, La Roche, dorme durante a execução; quando acorda, discute com os artistas e fala mal de Ifigênia em Táuris de Gluck! A ópera já havia começado, inesperadamente, e com uma audição de música, o que apresenta bem a natureza da discussão nela presente: prevalecem as palavras ou a música? A abertura parece já apontar a resposta, que não é dada em palavras no final. No começo, encontramos o fim.
Poderia escolher qualquer uma delas, ou alguma do Fidelio de Beethoven (em sua luta com o público da época, e com o próprio gênero operístico, ele acabou por compor quatro), mas, hoje, quero outra.
Nesta aula de 1973, filmada, do regente e compositor Leonard Bernstein, falando da ambiguidade para aumentar o poder expressivo, mostra como Wagner inspirou-se no "Romeu e Julieta" de Berlioz, e aumentou a ambiguidade tonal já presente no compositor francês. O maestro explica que Tristão e Isolda é o cume da ambiguidade e o ponto de transição a partir do qual a música não seria a mesma, a conduzi-la para a crise do século XX. Trata-se de uma ópera que estreou em 1865. Ele toca ao piano, então, o início do prelúdio; logo surge o chocante acorde. Bernstein pergunta: "Isto é tonalidade? Uma brincadeira com a tonalidade? Ou tonalidade nenhuma?" Wagner não responde.
O prelúdio de Tristan und Isolde, pois, serviu para abrir esta ópera, evidentemente, mas também para descortinar mundos de possibilidades para a música. Em certo sentido, a obra que o prelúdio abriu nunca terminou.
Mais adiante, depois dos 74 minutos, Bernstein mostra como o fim da ópera, com o solo de Isolda, já está contido nas frases iniciais do prelúdio. De fato, são comuns as apresentações em concerto do prelúdio com o final, muitas vezes com um soprano para interpretar a parte vocal. Fecha-se o círculo: no começo, já temos o fim.
Para ouvi-la, uma possibilidade interessante é a fluidez de Carlos Kleiber em estúdio: https://www.youtube.com/watch?v=SF4zN-Okonc&t=6944s; ou esta produção cênica com Pierre Boulez na regência e, para quem quiser ver a ópera toda, estes grandes cantores (Birgit Nilsson, Wolfgang Windgassen, Hans Hotter) na provavelmente única vez em que foram filmados juntos nesta obra: https://www.youtube.com/watch?v=McoRns-aWQQ&t=4704s
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
Uma abertura favorita: "Tristão e Isolda", de Wagner (30 dias de ópera: Dia 10)
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