O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Uma risada favorita: "Platée", de Rameau, e a loucura (30 dias de ópera: dia 13)

No segundo ato de La Bohème de Puccini, o coro precisa fazer dois tipos de risada diferentes consecutivas. Na primeira, a altura das notas e sua duração é escrita; na segundo, quando os homens entram, a altura não é determinada, mas o ritmo foi escrito.
Ao vivo, não é incomum ver imprecisões nesse trecho, e até em gravações de estúdio. Gosto destas duas gravações da década de 1950, esta, regida por Thomas Beecham: https://youtu.be/fUo1rGsCQM4?t=141; e a por Antonino Votto: https://youtu.be/e2hdaAK_kT0?t=2559.
Nos dois casos, a risada está escrita para ser executada de certa forma, não ad libitum.

Logo depois, sem indicação da altura, só de ritmo:


A risada também pode ser prevista sem indicação de ritmo ou de abertura; na mesma Bohème, Um exemplo, no terceiro ato, ocorre enquanto Rodolfo e Marcello socorrem Mimì, está no cabaré e se a ouve Musetta rindo dentro do cabaré de forma espalhafatosa. Marcello corre para ver o que ela está a fazer, e com quem: https://youtu.be/SPodFDQKATY?t=4578

Há também risadas que os intérpretes adicionam ao papel; Musetta entra no segundo ato, segundo a indicação da partitura, sorrindo; daí para os risos, há um passo que várias cantoras não tiveram dificuldade em dar.
Outros risos são mais controversos, como no final do "Credo" do Iago, na ópera Otello de Verdi. não há paralelo para este trecho na peça de Shakespeare (ou na ópera homônima de Rossini). Arrigo Boito escreveu um monólogo para o personagem em que ele explica em que Deus cruel ele acredita. No final, ele diz que "A morte é o nada./ É velha fábula o Céu".
https://youtu.be/1SWYKIN41WQ?t=283
Há quem goste de rir depois disso: https://youtu.be/EBMLJk3ifoI?t=269
Quero, porém, dar outro exemplo, e não deste, tirado de uma tragédia, ou dos primeiros, de uma obra tragicômica. O cômico é muitas vezes diminuído em relação ao trágico, o que é bem injusto. A comédia pode perturbar apenas por existir, sem pedir desculpas a bons sentimentos.
Boulez diminuía Rameau pelos balés próprios do gênero da ópera daquele tempo (em 1975, "Par volonté et par hasard"; não tenho o livro, cito da Diapason de fevereiro de 2016), lembro disso porque escolhi uma cena de Castor et Pollux para o balé favorito; no entanto, Rameau podia chocar o seu tempo, seja pela densidade da música, seja, nesta ópera, pelo cômico sem nenhuma desculpa de virtude redentora: Platée, ópera criada em 1745, apresenta a história da rã que se julga amada por Júpiter, que só está querendo pregar uma peça na esposa, a Deusa Juno, a ciumenta. O libreto foi escrito por Adrien-Joseph Le Valois d'Orville.
Trata-se de algo único na ópera francesa dessa época, uma obra com caráter cômico, e que agradou muito os inimigos da "tragédia lírica" francesa, como Rousseau. Girdlestone, cuja biografia (Jean-Philippe Rameau: His life and work) citei aqui, explica como Platée abriu o caminho para obras como La serva padrona, de Pergolesi, em Paris, e para a futura opéra comique.
Muitas piadas nascem das impressionantes arrogância e feiura da protagonista, e são encarnadas musicalmente por meio de várias estratagemas, como o coaxar de Platée (a língua francesa ajuda nestes momentos, em palavras como "quoi", "crois"). Nessa ópera em que os Deuses se revelam sórdidos, tontos ou pior ainda, surge esta cena genial: a Loucura ("Folie") é uma personagem (quase diríamos que é a mentora de tudo!) e chega quando Platée e Júpiter já estão "juntos", por assim dizer.
A Loucura acabou de roubar a lira de Apolo (talvez fosse o que público estivesse achando da ópera naquele momento) e canta uma ária sobre a infeliz ninfa Dafne ("Aux langueurs d'Apollon, Daphné se refusa"), metamorfoseada em árvore para fugir do assédio de Apolo, mais ou menos o contrário do que está acontecendo em cena.
A coloratura que Rameau emprega para ornamentar o canto da Loucura cai em sílabas inesperadas para gerar o efeito cômico. Quando ela diz que Júpiter a metamorfoseou, "la métamorphosa", o "a" final sofre todos os tipos de abuso até se converter em risada: https://youtu.be/E1EE6CSIo6A?t=144
 "Quando o amor é ultrajado", por exemplo, a cantora tem que ornamentar o "u", gerando estes uivos, ou vaias, não sei, depende de como o público estiver se comportando (isto é, se ele merece ser devorado ou, se se comportar mal, vaiado): https://youtu.be/E1EE6CSIo6A?t=192
Os exemplos que dei aqui vieram da genial produção da Ópera de Paris, com a direção cênica de Laurent Pelly,  regência de Marc Minkowski (que gravou a ópera em disco), o tenor Paul Agnew como Platée e Mireille Delunsch no papel da Loucura, com Les Musiciens du Louvre em 2003. A cantora e o maestro, mesmo em concerto, continuam brilhantes: https://www.youtube.com/watch?v=cpwYjawWCZE. Agnew, há alguns anos, passou a também reger esta música.
Minkowski explicou que, nesta cena, a orquestra começa uma abertura à francesa, um pouco pomposa, quando é interrompida subitamente por um riso: "é toda a orquestra, em verdade, que ri" e a música recomeça. O riso instrumental anuncia a entrada da personagem. No mesmo vídeo sobre a produção de 2003, Pelly sustenta que a Loucura, na verdade, é Rameau, e ela tem o poder de suspender a ação: "a música é mais forte do que tudo". Até contar esta história.
Ivan A. Alexandre, no ensaio"Aux sources de Platée" que acompanha a gravação de Minkowski, escreveu em sentido parecido, "a verdadeira voz da Loucura é claramente a do músico", e não do libretista. Ela realmente assumiu a lira de Apolo.
A dimensão metalinguística da cena (na verdade, de toda a ópera) é realçada, naquela produção, pelo vestido de partituras, pelo fato de ela entregar as páginas arrancadas do vestido da Loucura aos músicos da orquestra, e por de fato dirigir a orquestra em mais de um momento (o mesmo ocorre no concerto). A Loucura, no fim, rege a retirada de Platée para as profundezas do pântano. No libreto, é ela de fato a última a agir, coordenando a retirada dos que vieram assistir ao falso casamento.
A história continua sendo cruel, como lembrou Anthony Tommasini nesta elogiosa crítica recente de apresentação em concerto do Les Arts Florissants em Nova Iorque. Bestas sadias não apreciam o espetáculo. No entanto, sem a Loucura, como criar?


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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