Houve diversas manifestações públicas contra a administração federal que começou oficialmente no ano de 2019. O tema da ditadura militar apareceu em algumas ou várias delas, pois a eleição de apologistas dos crimes contra a humanidade e do passado autoritário deu uma nova atualidade à questão nunca superada da justiça de transição. Devemos lembrar que a apologia àqueles crimes e à ditadura teve um papel importante no golpe de 2016 e projetou aqueles que se encarregaram de prosseguir a tarefa política, econômica, social, cultural do que se chama de golpe, palavra que é um eufemismo, na verdade, para a corrosão que é o novo status quo do Brasil.
A nova internacional da extrema-direita, a que se reportam representantes do governo, inclui entre suas estratégias de disseminação de notícias falsas as referências distorcidas a regimes autoritários, que são heroicizados.
Portanto, era de esperar que 2019 se compusesse de ataques à memória política, de manifestações oficiais em prol do autoritarismo, de ataques estatais às instituições democráticas, de impunidade para autores de crimes contra a humanidade passados e presentes. Abaixo, segue uma lista demasiado sumária desses fatos do opróbrio político tornado rotina administrativa. Incluí mortes de alguns militantes históricos.
24 de janeiro: Jean Wyllys, reeleito deputado federal pelo Psol-RJ, torna-se o primeiro exilado político do novo regime, em razão das ameaças dirigidas contra ele e sua família, e não assume o mandato. Continua no exterior até hoje. O ocupante da presidência da república escreve no twitter, simplesmente, "Grande dia!".
8 de março: A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat cobra explicações a Damares Alves, ministra dos direitos humanos, sobre a paralisação dos colegiados ligados ao ministério, inclusive a Comissão de Anistia.
11 de março: A professora e escritora Márcia Tiburi, que foi candidata ao governo do Estado do Rio de Janeiro em 2018 pelo PT, não eleita, revela que deixou o país em dezembro de 2018 por causa das ameaças de morte recebidas.
26 de março: Os procuradores Deborah Duprat, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Marlon Weichert e Eugênia Augusta Gonzaga assinam a declaração "É incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais" contra a recomendação de Jair Bolsonaro de comemoração dos 55 anos do golpe de 1964.
27 de março: O Ministério da Defesa publica a "Ordem do Dia Alusiva ao 31 de março de 1964", assinada pelo Ministro Fernando Azevedo e Silva, defendendo o golpe do Primeiro de Abril de 1964, e, em pleno negacionismo histórico, afirmaram que "Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História."
27 de março: Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, no modo negacionista a todo vapor (que o Itamaraty voltou a assumir, depois de cumprir o papel de espião de exilados, de contrainformação no exterior e de coordenação internacional da repressão política de 1964 a 1985), afirma que não houve golpe em 1964, mas um movimento para que o Brasil não se tornasse uma ditadura.
27 de março: Portaria nº 376 da Ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, que modifica a Comissão de Anistia e aumenta o peso governamental no órgão.
28 de março: Portaria nº 378 nomeia os novos membros da Comissão de Anistia para incluir membros contrários à anistia política.
29 de março: O ocupante da presidência da república lê mensagem de justificativa do golpe de 1964 em solenidade diante do Comando Militar. Mais tarde, no mesmo dia, foi prolatada a decisão da juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, impediu o governo federal de comemorar o golpe de 1964: "Nesse contexto, sobressai o direito fundamental à memória e à verdade, na sua acepção difusa, com vistas a não repetição de violações contra a integridade da humanidade, preservando a geração presente e as futuras do retrocesso a Estados de exceção". Tratava-se de uma ação civil pública proposta pela Defensoria Pública da União.
30 de março: Decisão da desembargadora Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), permitiu as comemorações por entendê-las no "âmbito do poder discricionário do administrador".
3 de abril: O então ministro da educação, Ricardo Vélez, firme em sua tarefa deseducativa, afirmou que não houve golpe em 1964. Em falsidade evidente, declarou ao Valor Econômico que Castelo Branco tomou o poder desta forma: "Foi a votação no Congresso, uma instância constitucional, quando há a ausência do presidente. Era a Constituição da época e foi seguida à risca." Anunciou ainda mudança nos livros didáticos para que essas falsidades negacionistas sejam ensinadas nas escolas.
4 de abril: O governo federal enviou ao Relator especial da ONU sobre Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Fabian Salvioli, telegrama no teor de que "não houve um golpe de Estado, mas um movimento político legítimo que contou com o apoio do Congresso e do Judiciário, bem como a maioria da população.", e que as mais de duas décadas de governo militar foram necessárias para evitar o comunismo. A matéria é da BBC News Brasil, que teve acesso à comunicação confidencial. O negacionismo tornou-se política do Estado tanto no campo nacional quanto no internacional.
7 de abril: O músico Evaldo Rosa dos Santos é executado com mais de oitenta tiros por soldados do Exército quando passava com seu carro pela Estrada do Camboatá para ir a um chá de bebê. Seu sogro, Sérgio Araújo, é atingido também. O catador Luciano Macedo, ao tentar ajudá-lo, é alvejado e morre dias depois. No mesmo dia, o Comando Militar do Leste emite nota chamando as vítimas de "assaltantes". No entanto, a execução foi filmada. No dia seguinte, depois da indignação generalizada, ele refaz a nota, explica que foi determinada a prisão em flagrante dos militares envolvidos e informa que "esses militares passam à disposição da Justiça Militar da União".
9 de abril: O ex-juiz e ainda ministro da justiça, antes de ser apontado pela série de reportagens do jornal The Intercept como violador do sistema acusatório na Lava-[a-]Jato, chama, em um programa televisivo de entrevistas, a execução de Evaldo Rosa dos Santos de “um incidente bastante trágico”, acrescentando “lamentavelmente esses fatos podem acontecer”. O eufemismo é uma das figuras de linguagem preferidas dos poderosos.
11 de abril: Jair Bolsonaro assina mais um decreto de ataque à democracia participativa, de número 9759, com a ementa eufêmica "Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal.", que acaba com colegiados, o Grupo de Trabalho Araguaia e o Grupo de Trabalho de Perus, que busca identificar ossadas de desaparecidos políticos ocultadas no Cemitério de Perus, em São Paulo. No entanto, esse Grupo existe por determinação judicial e acabou sendo mantido, apesar do Executivo federal.
12 de abril: Depois de toda a campanha negacionista do governo federal acerca das graves violações de direitos humanos do passado, o ocupante da presidência da república afirmou, em resposta à indignação pela execução sumária de Evaldo Rosa dos Santos, uma morte do presente, que "O Exército não matou ninguém não, o Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino não". Uma metonímia completamente abusiva, com a finalidade de ocultar o contrário: para os autoritários, o povo pertence ao Exército e por este deve ser governado.
18 de abril: Morte de Luciano Macedo, depois de descumprida a ordem judicial de que fosse transferido para um hospital com mais recursos.
22 de abril: O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro publica nota de repúdio à extinção dos Grupos de Trabalho Araguaia e de Perus.
22 de abril: A ministra Damares Alves anuncia a continuidade do Grupo de Trabalho de Perus.
3 de maio: O Ministério Público Federal propõe ação para a nulidade da Portaria do Ministério de Direitos Humanos que descaracterizou a Comissão de Anistia, nomeando membros contrários à anistia política: "vê-se que 07 membros nomeados para a nova composição do Conselho da Comissão de Anistia são agentes de carreiras ou têm histórico e postura públicos que são INCOMPATÍVEIS com a função do órgão, seja por manifesta contrariedade à política pública de reparação das vítimas de Estado ou devido à atuação judicial contrária à política de reparação, ou ainda por se posicionarem contrários à instauração da Comissão Nacional da Verdade, seja porque integram as forças coercitivas do Estado".
5 de maio: A procuradora Deborah Duprat critica a tentativa da ministra de direitos humanos, Damares Alves, de indicar o procurador Aílton Benedito de Souza, apoiador de Bolsonaro e defensor da ditadura militar, à vaga do Ministério Público Federal da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
23 de maio: O Superior Tribunal Militar liberta os militares presos preventivamente no caso de Evaldo Rosa dos Santos.
1º de junho: Inesperadamente, Jair Bolsonaro assume a existência da Operação Condor para a imprensa argentina, o jornal La Nación, mas em tom de elogio.
19 de junho: Morre Lúcio Bellentani, operário preso em 1972 na Volkswagen em São Bernardo e nela torturado, e depois entregue ao DEOPS/SP, onde sofreu mais sevícias. Em programa da TVT do início de junho, ele ainda pôde dar seu depoimento sobre a colaboração da empresa alemã com a repressão aos trabalhadores; é triste vê-lo contar que procurara colegas que forem presos, porém muitos já haviam morrido: https://youtu.be/Z8nitaNtEw0?t=1466.
19 de junho: O senador Flávio Bolsonaro, (senador do Rio de Janeiro pelo PSL e acusado de lavagem de dinheiro pelo Ministério Público) filho do ocupante da presidência da república, indaga a Sergio Moro, em audiência público, sobre um possível uso da lei de segurança nacional contra Glenn Greenwald e seu marido, o deputado federal David Miranda, que assumiu o mandato no lugar de Jean Wyllys, por causa das reportagens do The Intercept que desmascararam o óbvio (embora ainda negado por vários), o caráter político da Lava-[a-]Jato e o lawfare.
25 de junho: Morte de Elzita Santa Cruz, aos 105 anos, que ainda buscava notícias sobre seu filho Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, um dos desaparecidos pela ditadura militar.
11 de julho: Matéria do The Guardian, "New generation of political exiles leave Bolsonaro's Brazil 'to stay alive'', sobre a nova geração de exilados políticos do Brasil, com Jean Wyllys, Marcia Tiburi, Anderson França e Debora Diniz, que teve de deixar o país ainda antes das eleições de 2018.
24 de julho: É expedida a certidão de óbito retificada de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, que foi vítima de desaparecimento forçado pela ditadura militar em 1974. Incluiu-se que se tratou de morte "não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro". O documento foi assinado pela presidenta da Comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos (Cemdp), Eugênia Augusta Gonzaga.
27 de julho: Jair Bolsonaro, em mais um momento de ditadura reloaded, ameaça o jornalista Glenn Greenwald de prisão, depois das matérias do The Intercept e veículos parceiros (como a Folha de S.Paulo e a Veja), com base em mensagens interceptadas, que mostram que o atual ministro da justiça agia não como juiz, mas como parte acusadora no processo contra o ex-presidente Lula, junto com o procurador Deltan Dallagnol, e que a condenação ocorreu por perseguição política. Sabe-se também que Moro havia sido convidado a deixar o Judiciário e a participar do governo de Bolsonaro ainda durante as eleições. A evidente nulidade da condenação de Lula e, em um estado de direito (que não há mais no Brasil), a exigência de investigação dos membros do Judiciário e do Ministério Público envolvidos são explicadas pelo próprio Moro neste vídeo, feito antes de ele ser desmascarado: https://twitter.com/davidmirandario/status/1138073779035344896
29 de julho: Jair Bolsonaro, sobre Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, afirma: "Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. [...] O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro". A OAB e a Associação Juízes para a Democracia publicaram repúdios ao insulto no mesmo dia.
30 de julho: Como na ditadura militar, a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) serve de palco para ato em desagravo a jornalista ameaçado politicamente pelo governo: Glenn Greenwald.
1º de agosto: A procuradora Eugênia Augusta Gonzaga é exonerada da presidência da Cemdp, entre outras alterações da Comissão, que incluíram nomes sem relação com o tema, admiradores da ditadura, subordinados ao governo federal, e até com a interferência de Bolsonaro no Ministério Público Federal (na indicação por ele do procurador Ailton Benedito de Souza para a vaga do MPF), ferindo, segundo explicou Gonzaga, o princípio constitucional da moralidade administrativa.
Em palestra que filmei no seminário dos 40 anos da Lei de Anistia, que ajudei a organizar, a procuradora afirma que o que Bolsonaro afirmou publicamente parecia ser "plantar contrainformação", como Curió fazia. Em outro trecho, ela conta das pressões, por conta das certidões de óbito retificadas, que sofreu por parte do novo presidente da Cemdp, Marco Vinicius Pereira de Carvalho.
6 de agosto: O Conselho do MPF não aprovou a indicação do procurador apoiador de Bolsonaro, solicitada pelo próprio ocupante da presidência da república, para a Cemdp.
6 de agosto: O Ministério Público Federal pede explicações à Ministra de Direitos Humanos sobre as alterações na composição da Cemdp.
8 de agosto: O ocupante da presidência da república chama Brilhante Ustra, falecido em 2015 de causas naturais, antigo chefe do DOI-Codi/SP, um dos autores de graves violações de direitos humanos listado pela Comissão Nacional da Verdade, e declarado torturador ainda em vida pelo Judiciário brasileiro, de "herói nacional". Ele fez a declaração no dia em que se encontraria com a viúva.
13 de agosto: A ONU (cito matéria de Jamil Chade) exige esclarecimentos sobre as informações que Jair Bolsonaro teria sobre o desaparecimento forçado de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, crime ocorrido durante a ditadura militar.
13 de agosto: A ministra dos direitos humanos, Damares Alves, anuncia o cancelamento da construção do Memorial da Anistia Política do Brasil, em Belo Horizonte. A decisão viola compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, sobre a Guerrilha do Araguaia.
15 de agosto: Nota pública de protesto do Comitê Assessoramento da Sociedade Civil para Anistia em razão do cancelamento da construção do Memorial da Anistia Política do Brasil.
19 de agosto: O Ministério Público Federal pede esclarecimentos à ministra Damares Alves sobre o cancelamento da construção do referido Memorial.
4 de setembro: O ocupante da presidência da república, diante da crítica ao Estado brasileiro feita pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, em razão da "redução do espaço democrático" e dos ataues aos defensores da natureza e dos direitos humanos, faz ataques pessoais a Bachelet: "Diz ainda que o Brasil perde espaço democrático, mas se esquece que seu país só não é uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973, entre esses comunistas o seu pai brigadeiro à época”. O General Alberto Bachelet, o pai, foi assassinado pela ditadura de Pinochet.
10 de setembro: O Estado brasileiro nega à ONU que tenha ocorrido um golpe de Estado em 1964.
12 de setembro: A estreia do filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, sobre o revolucionário comunista morto pela ditadura militar, é impedida pela Ancine (Agência Nacional do Cinema).
25 de setembro: O Superior Tribunal de Justiça mantém o trancamento da ação penal do Riocentro (a tentativa de atentado terrorista do Exército em uma festividade do Primeiro de Maio durante o governo de Figueiredo, que seria atribuída à esquerda e justificaria o fim da abertura política). O relator, Ministro Rogerio Schietti Cruz, votou pela reabertura, mas sua posição, e do Ministério Público Federal, foi derrotada.
27 de setembro: Vladimir Aras decide escolher Aílton Benedito de Souza para a Secretaria de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral da República.
29 de setembro: O Ministério Público Federal propõe ação para a retomada da construção do Memorial da Anistia Política do Brasil.
30 de setembro: O Ministério Público Federal, diante das diversas ilegalidades e do aparelhamento ideológico realizado pelo governo Bolsonaro, propõe ação pedindo anulação do decreto que alterou a composição da Cemdp.
10 de outubro: A 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, de São Paulo, mantém a impunidade no caso do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e assassinado no DOI-Codi. Pode-se ler a matéria do El País, que deixa de identificar Adriano Diogo, Amelinha Teles e Criméia Schmidt de Almeida; escrevi uma nota sobre o caso em 2018: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2018/10/desarquivando-o-brasil-cxlvii-merlino.html
25 de outubro: Publicada a lei nº 10.018, de 7 de outubro de 2019, de São José dos Campos (no Estado de São Paulo) que "Denomina o viaduto da Via Cambuí, que passa sobre a Rodovia Presidente Dutra, de Viaduto Romeu Tuma." A homenagem ao ex-diretor do DEOPS/SP foi aprovada por unanimidade. Sua autoria foi compartilhada por dois vereadores do PSDB, Juvenil Silvério e José Dimas.
Escreverei um pouco mais sobre a questão, em vez de apenas indicar uma ligação na internet para o caso, porque a imprensa não a cobriu bem, como se os autoritarismos locais não fossem importantes para a formação de uma cultura política infensa aos direitos humanos, ou não servissem de base local para os desmandos nacionais.
A discussão legislativa foi pífia. Na Comissão de Justiça, Redação e Direitos Humanos da Câmara, o parecerista deixou de realizar seu trabalho e o prazo se esgotou em 3 de setembro; tampouco foram apresentadas emendas. Em 21 de janeiro de 2019 certificou-se o "Decurso de prazo sem que tenham sido apresentadas emendas e encaminhamento do processo às Comissões Permanentes para parecer."
Em 2019, verificando-se a falta do parecer, reencaminhou-se à Comissão, agora com uma nova composição. Presidida pelo vereador Juvenil Severo (PSDB), com o relator Dilermando Dié de Alvarenga, do mesmo partido, e o membro Juliana Fraga, do PT. O suplente do relator, Marcão da Academia, do PT, foi designado para elaborar o parecer, que pode ser considerar um exemplo típico da atividade dos Legislativos municipais no Brasil:
As características, a saber, a ausência de análise do mérito da proposta, a omissão de manifestação a respeito da concordância com os direitos humanos, ou seja, o próprio objetivo da Comissão (para não dizer do Estado brasileiro), e, enfim, a atribuição de um caráter pueril à atividade legislativa na própria dimensão material no parecer, cujo texto se estende, descontando título e assinatura, por duas linhas e uma palavra.
Romeu Tuma não está entre os autores de graves violações de direitos humanos listados pela Comissão Nacional da Verdade. No volume I do relatório da CNV, afirma-se que ele estava envolvido com a repressão política:
213. Com a perda de poder e influência do DOPS/SP, assumiu sua diretoria-geral uma figura mais palatável (apesar de envolvido com a repressão), o ex-chefe do Serviço Secreto, Romeu Tuma. Investigador, delegado de polícia concursado, bacharel em direito pela PUC-SP, foi diretorgeral do DOPS paulista de 1977 até 1982. Embora não haja provas de que Tuma tenha participado de sessões de tortura no DOPS/SP, é fato que trabalhou por anos em edifício onde isso ocorria, chefiando seu Serviço Secreto. Durante a gestão de Tuma, o DOPS/SP acabou e, em 1982, foi eleito governador o senador Franco Montoro, quando sua equipe de governo anunciou que extinguiria o órgão. No governo Figueiredo, Tuma foi superintendente da Polícia Federal (PF) em São Paulo, e vários delegados e agentes que trabalharam na repressão o acompanharam.
A Comissão da Verdade Michal Gartenkraut, de São José dos Campos, foi uma iniciativa do legislativo municipal. Por isso, é escandaloso que os vereadores tenham-na ignorado no trâmite do projeto de lei. O documento (que não consegui encontrar no portal da Câmara, e está entre os documentos não digitalizados do acervo da CNV no Arquivo Nacional, mas pode ser lido no sítio da vereadora Amélia Naomi, do PT, que a presidiu) menciona Romeu Tuma no caso da repressão política ao metalúrgico João Batista dos Santos, ex-militante do MEP – Movimento pela
Emancipação do Proletariado e do PT.
Romeu Tuma também foi incluído entre os suspeitos dessas violações pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Essa Comissão, entre suas recomendações, em 2015, previu a revisão das homenagens àqueles violadores, bem como a proibição de novas homenagens:
Repressão política: origens e consequências do Esquadrão da Morte
3. Proibição de homenagens a agentes públicos que são autores de graves violações dos direitos humanos, incluindo reformulação de leis que nomeiam ruas, alamedas, avenidas e rodovias com nomes de agentes acusados de autoria de assassinatos e torturas;
Lugares da Memória, Arqueologia da Repressão e da Resistência e Locais de Tortura
12. Que o Estado de São Paulo e as municipalidades promovam um levantamento dos nomes de logradouros que homenageiam torturadores ou militares que atuaram durante a ditadura com a legitimação das violações aos direitos humanos no período, que tal medida seja tomada em até doze (12) meses a partir da publicação deste relatório;
13. Que sejam alterados os nomes de logradouros públicos que homenageiam ditadores, torturadores e similares que atuaram durante a ditadura com a legitimação das violações aos direitos humanos no período, evidenciando nesse processo suas diferentes nomenclaturas e os motivos que justificam as escolhas, alterando por seus nomes anteriores, toponímicos, ou em homenagem a lideranças comunitárias de destaque ou pessoas que atuaram para a consolidação da democracia no país; que tal medida seja tomada em até doze (12) meses a partir da publicação deste relatório.
A Comissão "Rubens Paiva" menciona Romeu Tuma nos casos de Antônio Gulherme Ribeiro Ribas e Jaime Petit da Silva.
28 de outubro: O novo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, escolhido por Jair Bolsonaro fora da lista tríplice da instituição, decide desistir da ação proposta pela antecessora, Raquel Dodge, nos estertores de seu mandato, que pedia indenização ao povo Guarani em razão dos diversos crimes cometidos para a construção da Usina de Itaipu.
31 de outubro: O Ministro Alexandre de Moraes defere o pedido do Procurador-Geral da República e arquiva a ação que pedia indenização ao povo Guarani. Note-se que as violações de direitos humanos provocadas para a construção de Itaipu estão documentadíssimas e há um farto material que foi coligido para o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
28 de outubro: O novo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, escolhido por Jair Bolsonaro fora da lista tríplice da instituição, decide desistir da ação proposta pela antecessora, Raquel Dodge, nos estertores de seu mandato, que pedia indenização ao povo Guarani em razão dos diversos crimes cometidos para a construção da Usina de Itaipu.
31 de outubro: O Ministro Alexandre de Moraes defere o pedido do Procurador-Geral da República e arquiva a ação que pedia indenização ao povo Guarani. Note-se que as violações de direitos humanos provocadas para a construção de Itaipu estão documentadíssimas e há um farto material que foi coligido para o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
31 de outubro: O deputado federal Eduardo Bolsonaro defende, em entrevista a um canal do youtube de um dos jornalistas apoiadores do governo do pai dele, Leda Nagle, a edição de um novo AI-5 contra a esquerda, se ela agir como a do Chile de hoje (isto é, indo às ruas e sendo baleada e torturada).
4 de novembro: O ENEM, pela primeira vez em dez anos, expurga o assunto da ditadura militar em sua prova, e o ministro da educação, Abraham Weintraub, justifica afirmando que não participou da escolha das questões e que o objetivo da prova "não é dividir, nem polemizar, nem doutrinar", e ainda minimizou o assunto: ""A gente já pode começar falando em regime militar, ditadura militar. Essa é uma discussão que eu acho que a gente não vai caminhar para nenhum lugar". O pai do ministro, Mauro Weintraub, que eele e o irmão Arthur tentaram interditar, foi perseguido pela ditadura.
18 de novembro: A nova Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos propôs a transferência das ossadas de Perus para Brasília, tirando o trabalho de identificação dos desaparecidos das mãos do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entregando-o para a Polícia Civil. Os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos protestam contra a decisão de entregar essa função a uma das instituições responsáveis pelos crimes, e interromper os trabalhos bem-sucedidos do CAAF.
4 de novembro: O ENEM, pela primeira vez em dez anos, expurga o assunto da ditadura militar em sua prova, e o ministro da educação, Abraham Weintraub, justifica afirmando que não participou da escolha das questões e que o objetivo da prova "não é dividir, nem polemizar, nem doutrinar", e ainda minimizou o assunto: ""A gente já pode começar falando em regime militar, ditadura militar. Essa é uma discussão que eu acho que a gente não vai caminhar para nenhum lugar". O pai do ministro, Mauro Weintraub, que eele e o irmão Arthur tentaram interditar, foi perseguido pela ditadura.
18 de novembro: A nova Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos propôs a transferência das ossadas de Perus para Brasília, tirando o trabalho de identificação dos desaparecidos das mãos do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entregando-o para a Polícia Civil. Os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos protestam contra a decisão de entregar essa função a uma das instituições responsáveis pelos crimes, e interromper os trabalhos bem-sucedidos do CAAF.
20 de novembro: A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) aprova a realização no dia 10 de dezembro de 2019 de ato solene em homenagem ao falecido ditador chileno Augusto Pinochet, que, além de genocida e corrupto, também foi acusado de tráfico de drogas. A iniciativa partiu de ex-assessor especial do governo de Geraldo Alckmin e deputado estadual de primeiro mandato, eleito na onda bolsonarista, que participou da elaboração do plano de governo de Bolsonaro para o agronegócio, Frederico D'Ávila (PSL). A data do 10 de dezembro corresponde ao Dia Internacional dos Direitos Humanos.
21 de novembro: Diante da indignação generalizada, o presidente da ALESP, Caue Macris (PSDB), decide cancelar o evento de homenagem a Pinochet.
22 de novembro: Morre, de câncer, aos 75 anos, Henry Sobel, que representou a comunidade judaica no ato interreligioso na Catedral da Sé, em resposta à tortura e ao assassinato de Vladimir Herzog pela ditadura militar. O ato confrontou a versão oficial de suicídio no DOI-Codi de São Paulo. No início de 2019, ele visitara Jair Bolsonaro no Hospital Albert Einstein e afirmara que "Se depender da comunidade judaica, ele vencerá todos os pensamentos negativos."
2 de dezembro: Augusto Aras destitui Deborah Duprat do Conselho Nacional dos Direitos Humanos e se autonomeia no lugar, com a suplência de Aílton Benedito de Souza.
11 de dezembro: A Justiça Federal rejeita a proposta do governo federal de transferência das ossadas de Perus, que estão sob a guarda do CAAF, para a Polícia Civil. Os estudos invocados pelo presidente da Cemdp, Marco Vinícius Pereira de Carvalho, para justificar a transferência jamais foram apresentados.
Este simples rol nada exaustivo (trata-se apenas do que consegui mais ou menos observar) não foi recebido com indiferença pela sociedade. Houve reações, claro. No campo das artes foram várias, incluindo a Mangueira, que venceu em 6 de março o Carnaval no Rio de Janeiro com enredo que homenageou a tradição da revolta: "Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês". carnavalesco Leandro Vieira. Na Academia também; pude ver mais eventos desse tipo nas Letras e na História, por exemplo, do que em áreas historicamente mais comprometidas com o autoritarismo, como o Direito. Em 30 de maio, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ainda sob a presidência de Eugênia Gonzaga, pôde entregar certidões de óbito retificadas com a expressão:
MORTE NÃO NATURAL, VIOLENTA, CAUSADA PELO ESTADO BRASILEIRO, NO CONTEXTO DA PERSEGUIÇÃO SISTÊMICA E GENERALIZADA A POPULAÇÃO IDENTIFICADA COMO OPOSITORA POLÍTICA AO REGIME DITATORIAL DE 1964 A 1985.
O Grupo de Justiça de Transição continuou a realizar seu trabalho (visitem o portal, consultem a linha de tempo e baixem os relatório dos Grupo; algumas ações, como a denúncia contra Audir Santos Maciel e Carlos Setembrino da Silveira em razão da morte de Jayme Amorim de Miranda, militante do PCB, ou contra Manoel dos Santos Pinheiro por genocídio contra o povo Krenak, ainda não foram incluídas na linha).
Até mesmo o Judiciário proporcionou algumas notícias boas, como a condenação da FUNAI e da União Federal, em 30 de agosto, por causa dos crimes cometidos contra os povos Tenharim e Jihaui durante a abertura da Transamazônica. em ação proposta pelo Ministério Público Federal no Amazonas; ou a aceitação pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em 14 de agosto, da denúncia contra Antônio Waneir Pinheiro de Lima por sequestro e estupro de Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte em Petrópolis.
Nas passeatas e atos públicos de protesto contra o governo, questões de justiça de transição fizeram-se presentes. Por exemplo, no "Tsumani 13 de agosto" em São Paulo (também ocorreu em outras cidades), que fechou naquela data a Avenida Paulista e a Avenida Consolação no sentido centro, ao lado dos protestos contra as usurpações de direitos sociais promovidas pelo governo federal e seus aliados na legislatura e na imprensa (vejam abaixo a simpática caricatura na foto que fiz na ocasião),
havia também questões relativas à memória, como este cartaz com o nome de Fernando Santa Cruz:
E quem está a colocar essas questões de memória, verdade e justiça todas na mais explícita atualidade? Responde bem claro Amelinha Teles, militante dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, em seminário sobre os 40 anos da lei de anistia que ajudamos a organizar em agosto: o próprio Bolsonaro, que repete as mentiras da ditadura militar.
Em 31 de março, ocorreu esta I Caminhada do Silêncio.
Houve diversos apoiadores para I Caminhada do Silêncio em prol das vítimas da violência de Estado, em São Paulo, inclusive o Ministério Público Federal. Quando cheguei, já ocorriam as atrações musicais, organizadas por Renato Braz, que precederam a caminhada propriamente dita. Vejam as atrações artísticas por meio desta ligação: https://www.youtube.com/watch?v=m44bJw9FVeQ&t=5699s
A primeira canção interpretada, por Renato Braz, foi "Coração civil", de Milton Nascimento e Fernando Brant, com os versos "Sem polícia/ Nem a milícia", que ficaram mais atuais. Ney Matogrosso voltou a interpretá-la no show que estreou em 2019, "Bloco na rua".
Muita gente se apresentou, mas ouçam Jean Garfunkel rimar Cecília Meireles com Marielle. Achei interessante, pois fiz uma nota sobre a execução de Marielle Franco com uma referência a essa poeta: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2018/03/marielle-franco-e-memoria-das-execucoes.html
Curiosamente, o último número foi "Sentinela", de Milton Nascimento e Fernando Brant, gravada por Milton pela primeira vez em 1969 e, pela segunda vez, no álbum de mesmo título, com uma cantora agora bolsonarista.
Enquanto eu caminhava para o ato com a imagem de Olavo Hanssen, operário da indústria química e militante do PORT (Partido Operário Revolucionário Trotskista) torturado e morto depois de ter distribuído panfletos numa comemoração do Primeiro de Maio de 1970, um vendedor no parque perguntou-me de quem era a imagem. Respondi, e ele indagou quem eu queria para presidente. Uma pergunta aparentemente absurda, mas não em um contexto autoritário. É significativo que opor-se à tortura e às execuções extrajudiciais implique, hoje, como na ditadura, opor-se politicamente ao governo.
De 1970 para 2019 trata-se de um grande salto, mas há certa razão. Vejam como a questão continua atual, seja porque o atual presidente ordenou a celebração do golpe, que chamou depois de rememoração, seja porque divulgou infame vídeo negacionista: https://www.valor.com.br/politica/6190573/planalto-e-eduardo-bolsonaro-divulgam-video-que-celebra-golpe-de-64
No vídeo, pode-se ver Ângela Almeida, viúva de Luiz Eduardo Merlino, assassinado no DOI-Codi de São Paulo, falar da ação proposta pelos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Supremo Tribunal Federal contra a comemoração, e que não logrou resultado favorável: https://youtu.be/m44bJw9FVeQ?t=5534
A legitimação desse grupo necessita do elogio à chacina e à tortura, condutas criminosas que eram instrumentos necessários à doutrina de segurança nacional da ditadura militar, e que continuam a acontecer sob a vista grossa do Estado brasileiro. Por isso, esse grupo que está no poder precisa evocar o período, porém tentando negar o caráter criminoso do regime.
Ao fazer esse recalque, não deixa de (re)politizar a memória da ditadura, o que gerou uma série de atos pelo país.
Nessa época, em que se podem ler na imprensa reportagens romantizando relações imaginárias entre torturador e vítima, é sempre bom relembrar os mortos e desaparecidos. Muitos caminharam com o retratos. No final da caminhada, eles foram deixados ao pé do Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos, projeto de Ricardo Ohtake que o então prefeito Fernando Haddad inaugurou em 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade ainda funcionava:
O terceiro e último volume da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o que não estava ainda pronto (faltava diagramá-lo) quando o Relatório foi entregue à presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2014, é todo dedicado aos perfis dos mortos e desaparecidos políticos. Houve muita polêmica sobre os nomes que a CNV deixou de lado.
Esta foto, tirei-a durante as apresentações musicais e os discursos, antes da caminhada propriamente dita. No vídeo, vocês viram que as pessoas com os retratos sentaram-se mais à frente. No entanto, à direita, pode-se ver uma placa da Rua Marielle Franco - uma morta política que incomoda os bolsonaristas.
Ísis Dias de Oliveira, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e desaparecida em 1971.
Edson Luiz Lima Souto, estudante secundarista morto em 1968 pela polícia do Rio de Janeiro.
Ruy Carlos Vieira Berbert, militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) e desaparecido em 1972.
Ana Maria Nacinovic Corrêa, militante da ALN, desaparecida em 1972.
Miguel Pereira dos Santos, militante no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), desaparecido na Guerrilha do Araguaia em 1972.
Manoel Aleixo da Silva, militante do Partido Comunista Revolucionário, executado em 1973.
Presentes em grande número estavam os familiares dos desaparecidos da democracia, vítimas dos Crimes de Maio, da Chacina da Sé e de outros eventos criminosos:
A permanecer a atual orientação política, o número dessas vítimas só fará aumentar, bem como os assassinados no campo, camponeses e apoiadores, e nas florestas, como indígenas e ambientalistas. Por isso, 2020 tem que ser diferente.
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