Desastres... Já vi o sustentáculo do fio que erguia o tenor cair durante uma apresentação de Don Quixotte chez la Duchesse, de Boismortier, no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro. O metal dobrou-se e arranhou um pouco, pelo que me pareceu, o cravo tocado por Marcelo Fagerlande, que também regia a apresentação. Mas os artistas, que, felizmente, não se machucaram, conseguiram encerrar o espetáculo, já perto do final.
Já vi também desastres musicais e/ou cênicos, que prefiro não relatar. Para este dia, seguindo a onda do tópico de ópera e natureza, pensei em desastres ligados ao mar: naufrágios, afogamentos.
A história do Idomeneo, de Mozart, que nunca consegui ver ao vivo, trata de um desastre evitado, que, no entanto, gera outros: o navio do rei de Creta, Idomeneo, está ameaçado de naufragar-se. O soberano promete oferecer em sacrifício ao deus Netuno o primeiro ser humano que ele vir ao chegar ao reino, se for salvo. Corre tudo bem, mas ele o primeiro homem que ele avista é o próprio filho, Idamante, que ele demora a reconhecer, pois, quando havia partido, o príncipe ainda era criança. Horrorizado, ele o trata friamente nesse reencontro, para o espanto e a decepção do príncipe, que não entende o que está ocorrendo, pois o pai esconde a promessa: "Il padre adorato".
O custo de evitar o desastre equivale a um maior: o sacrifício do próprio filho e herdeiro do trono. Netuno cobra o sacrifício enviando uma tempestade e um monstro. Idamante parte ao encontro do monstro de Netuno, em um dos quartetos mais impressionantes da história do gênero operístico. Idomeneo acusa Netuno e deseja matar-se, Elettra e Ilia (princesa troiana, filha do derrotado rei Príamo), que rivalizam pelo amor do príncipe, também se inquietam, e o quarteto encerra-se da mesma forma como iniciou, com uma frase solo de Idamante, "Andrò ramingo e solo": https://www.youtube.com/watch?v=hDQVV30C8sI. Esta era a parte preferida pelo próprio compositor, e que podia fazê-lo chorar.
Vejam que o filho é interpretado por uma mulher, pois o primeiro Idamente foi um cantor castrado (mau ator, sem experiência cênica e com voz desigual, segundo Mozart conta nas cartas). Quando ele reviu a ópera em 1786, ele passou o papel para a voz de tenor, talvez por não haver castrati disponíveis na ocasião. Aqui, o excelente Jerry Hadley canta Idamante; o quarteto passa a contar com dois tenores e dois sopranos, em vez de três cantoras e um cantor, e a sonoridade muda; eu prefiro assim: https://youtu.be/zBJaJ_SH_So?t=600
Idamante, sozinho, vence e mata o monstro: https://youtu.be/Ba9K_T5ivTQ?t=7845 Em termos de façanhas heroicas, não dá para comparar este príncipe com Tamino, que começa A flauta mágica correndo de uma cobra e pedindo socorro... Porém, sabendo finalmente da promessa feita pelo pai, aceita ser sacrificado a Netuno.
Ilia irrompe na cena, impede o golpe fatal e exige ser morta no lugar dele: https://youtu.be/Ba9K_T5ivTQ?t=8279 Subitamente, uma voz se faz ouvir com a mensagem de Netuno: "o amor venceu"; vendo a dedicação dos dois jovens, ele resolve trocar o sacrifício pela renúncia de Idomeneo em favor do filho. Elettra, porém, entra em surto ao ver-se preterida, e decide descer aos Infernos onde estaria a sombra do irmão, Orestes. Nesta ária, "D'Oreste, d'Aiace" que continua a ser uma das mais dramáticas já escritas, a coloratura culmina em uma risada de loucura: https://youtu.be/Ba9K_T5ivTQ?t=8499
Já li que o drama da princesa grega, em sua paixão não correspondida, passa ao largo da ação principal. Discordo totalmente. Ela é o inverso do rei e, com isso, reforça a ação final dele. Ao contrário de Idomeneo, ela não quis renunciar, por isso fracassa e desaparece. O que teria sido o resultado do naufrágio, o coroamento de Idamante, acaba ocorrendo, o rei deixa o trono tranquilo, cantando "Torna la pace al core". A ária, infelizmente, foi cortada na estreia, depois de longa gestação (o tenor Anton Raaf, criador do papel, fez uma série de exigências), pois a ópera estava demasiadamente longa. Até hoje ela costuma ser cortada (na revisão, ela foi um dos números suprimidos). Pode-se ouvi-la com o grande Nicolai Gedda ao vivo, cantando uma só estrofe em apresentação regida por Colin Davis, e Anthony Rolfe Johnson em estúdio, cantando-a sem cortes sob a regência de John Eliot Gardiner.
A ópera acaba tendo a renúncia, senão como tema, ao menos como solução. O apego ao poder seguramente é uma das fontes de desastre.
Outra história com o mar ao centro, embora sem Netuno, é a de Peter Grimes, ópera do compositor Benjamin Britten e do libretista Montagu Slater, encenada pela primeira vez em 1945. Ele reuniu quatro dos seis interlúdios da ópera como os "Sea Interludes", mas nunca cheguei a ver ao vivo a ópera (a primeira desse autor) ou essa peça instrumental. Tampouco li o poema de George Crabbe em que a ópera se baseou, The Borough.
Pelo que sei, no entanto, a ópera se afasta do poema. Britten e Peter Pears, o criador de Grimes e companheiro do compositor (foram provavelmente o casal mais importante da ópera do século XX), retiraram as referência a uma possível homossexualidade de Grimes, e preferiram focar no conflito entre o indivíduo não compreendido e as massas. Leio no ensaio de Stephen Arthur Allen no The Cambridge Companion to Benjamin Britten, "'He descended into Hell': Peter Grimes, Ellen Orford and salvation denied", que o compositor só começou a escrever a música depois que Slater retirou as alusões a sadismo e homossexualidade e criou a relação entre Grimes e Ellen Orford, que não aparecem juntos no poema de Crabbe.
Dessa forma, o desastre assumiu o protagonismo da ópera. Um jovem aprendiz de pescador, que trabalhava com Grimes, morre de frio em alto mar depois que o vento os desviou da rota. Ele é acusado da morte, mas o juiz acaba decidindo que a morte foi um acidente. Ele fica, porém, marcado. Outro jovem aprendiz passa a trabalhar com ele. Nesta súbita entrada de Grimes durante a tempestade, ouvimos um canto hipnótico, quase como se o pescador estivesse em transe, um momento de suspensão do destino: https://youtu.be/3MyBUetbE38?t=2655.
Nesse filme, temos o criador do papel, o tenor Peter Pears, cantando "Now the Great Bear and Pleaides" (para ouvi-lo com outro tipo de voz, um tenor dramático, que também é adequado para o papel, eis Jon Vickers: https://www.youtube.com/watch?v=swi4m9wQa4g). Ele indaga: "Who can turn skies back and begin again?"
Ninguém. O que aconteceu está consumado.
Logo o tumulto retorna, chega o novo aprendiz com Ellen e é levado por Grimes para casa (debaixo do escárnio dos outros) durante a tormenta. O que aconteceu não pode ser desfeito e poderá ocorrer novamente. Com efeito, o novo aprendiz, que não é exatamente bem tratado por Grimes, morre caindo do penhasco quando, por ordem do pescador, que acha que estão vindo buscar o rapaz, tenta se esconder de um grupo, instigado pelo vigário e pelo magistrado, que vem investigar a cabana. Grimes tenta resgatá-lo, o grupo acaba entrando e não encontra ninguém.
O barco de Grimes é visto, porém não há sinal dele nem do aprendiz, salvo por um pulôver dele trazido pela maré. A população resolve caçar o pescador. Grimes, delirante, é encontrado por Ellen e pelo capitão Balstrode; ele determina que o pescador naufrague no mar revolto, pois não escapará de uma condenação pelo novo acidente; de novo o filme com Peter Pears no papel-título, Heather Harper como Ellen e Bryan Drake como Blastrode; Britten rege a London Symphony: https://www.youtube.com/watch?v=rCVNAYikjbE.
Aqui, o delírio do personagem, enquanto se ouve o coro procurando-o, na coreografia da loucura e na voz de tenor dramático de Jon Vickers: https://www.youtube.com/watch?v=OWT0jsCbl28
Na correspondência de Mozart, há várias referências à composição de Idomeneo do fim de 1780 ao início de 1781, quando a ópera estreou. Na carta de 18 de novembro de 1780 de seu pai, Leopold Mozart comenta que lhe fizeram em Munique esta objeção em relação ao momento no primeiro ato em que Idomeneo e seus seguidores descem do navio: "a tempestade e o mar não seguem nenhuma etiqueta". Leopold, na carta, comenta que a crítica à história seria correta se o barco tivesse realmente naufragado...
De fato, o desastre não conhece protocolo, o que explica que, nas duas obras, tão afastadas no tempo e no estilo, personagens se avizinhem da loucura, o abalo da razão.
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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