O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Ópera e assassinato: "Tosca", de Puccini (30 dias de ópera: Dia 18)

Sem o assassinato, boa parte do universo operístico se desvaneceria. Imagine um Nero que não ordenasse a morte de oponentes e da esposa? Nem pareceria imperador... Se Don Giovanni não matasse o Comendador, quem lhe daria a mão para ele descer ao inferno depois? Como subsistiria a tragédia se Medeia não matasse os filhos e a noiva do marido? Se ela matasse Jasão, a ópera não seria a mesma coisa, poderia até fazer par com Os Palhaços, de Leoncavallo... Aliás, nesta ópera, como se poderia ter certeza de que a comédia acabou se Canio não a tivesse matado junto com a esposa e Silvio?
No século XVIII a tradição do lieto fine, forte no estilo da chamada opera seria, que deveria acabar de forma feliz ou, pelo menos, moralmente exemplar, restringiu as possibilidades de assassinato, embora não as tenha eliminado. Às vezes, isso exigia mudar o final de histórias bem conhecidas. Rossini mudou o final de seu Otello, que estreara em 1816, para as plateias de Roma em 1820. Não em razão de um suposto feminismo avant la lettre, mas porque o público não suportaria um final infeliz. Desdêmona sobreviveu também nas cidades de Veneza (1825) e Ancona (1830). Nunca vi essa ópera ao vivo, e só a tenho em disco com o final trágico, mas leio no Rossini, de Fernando Fraga (um dos Guías Scherzo de compositores), que Otelo acredita na jura de inocência de sua esposa, ambos cantam um dueto que ele reciclou de outra ópera sua, Armida, e vem a notícia de que Iago confessou seus crimes antes de morrer castigado pelo céu!! Os solistas se unem cantando o amor...
Nada de parecido aconteceu com o Otello de Verdi.
Inúmeros exemplos, apesar das limitações do público. Quase escolhi o feminicídio em Wozzeck, seja o de Alban Berg, mais famoso, seja o de Gurlitt, mas preferi outra ópera, talvez mais indicada, porque nela ocorrem torturas, tentativa de estupro, execução (extrajudicial) e suicídio, e o ponto mais forte talvez seja a cena do apunhalamento.
Isto é, a Tosca, de Puccini, que estreou em 1900. A origem é uma peça de Sardou que nunca vi ou li, e que parece ter realmente ficado esquecida. A história se passa em roma durante as Guerras Napoleônicas. Os revolucionários republicanos querem se aproveitar do momento político favorável. Angelotti, um deles, foge da polícia, entra na igreja, pede refúgio a seu colega, o pintor Mario Cavaradossi. Ele tem que se esconder logo, pois sua namorada, a cantora Floria Tosca, que é muito ciumenta, conta tudo para o padre na confissão.
O chefe da polícia, o Scarpia, chega lá com seus agentes, que descobrem as pistas de que Angelotti (que não tomava boas precauções de segurança) esteve lá e decide interrogar Cavaradossi e usar o ciúme de Tosca em seu favor. Ele quer levar o pintor ao cabresto, a cantora, que ele deseja, a seus próprios braços. No segundo ato, ele manda interrogar Cavaradossi com tortura e faz Tosca escutar os gritos (vídeo com Montserrat Caballé, José Carreras como Cavaradossi e Ingmar Wixell interpretando Scarpia, coma  regência de Colin Davis). Ela não aguenta a tortura psicológica e revela onde Angelotti se esconde. O supliciado é liberado um momento, Scarpia, sempre cruel, revela que Tosca delatou, mas não há tempo para uma crise do casal: com a notícia repentina (é Puccini, tudo muda muito rápido) de que as tropas napoleônicas venceram, o doido do tenor canta "vitória" (nesta produção, o público aplaude Giacomo Aragall neste ponto; Eva Marton interpreta Tosca, e Scarpia continua com Wixell) e desafia Scarpia, que manda seus capangas o encaminharem para execução. Agora, a vida dele é o preço que ele cobrará de Tosca; dizem que ele é corrupto, mas de mulheres belas ele quer outro preço. Mas não lhe fará violência, quer que ela se oferte a ele... Não adianta sair e recorrer à Rainha, ele já estará morto quando chegar o perdão... Ela reza, dizendo que viveu da arte, viveu do amor, por que Deus a recompensa assim? Ela acaba cedendo, ele dá ordens de que façam uma execução "simulada" como no caso de Palmieri. Ficam a sós, ela exige um salvo-conduto antes para deixar a cidade, vê uma faca na mesa, ela o apunhala e mata: "Este é o beijo de Tosca!"; "Morto por uma mulher!"; "Morreu; agora, o perdoo."; "E diante dele tremia toda Roma" são algumas das frases que ela grita, canta, murmura, fala, de acordo com o talante das intérpretes.
Puccini faz realmente o público torcer pela heroína, que consegue matar seu algoz. Eva Marton, na Arena de Verona, chama Scarpia para si antes de apunhalá-lo, é divertido. Ela é maior do que ele (no tamanho e na voz, deve-se notar), o assassinato é bem verossímil; depois, fica horrorizada com o que fez. Maria Callas, em Paris, no concerto de 1958, tem uma sacada genial, que Sérgio Britto gostava de destacar: ela debocha de Scarpia, depois de tirar o salvo-conduto das mãos do corpo na última frase. Roma tremia diante dele, mas agora ela o matou...
Pena que, no final, não dá certo: a execução acaba acontecendo de verdade (Scarpia a tinha enganado), descobrem que ela o matou e ela acaba se suicidando para não ser presa, não sem antes convocar o policial para o julgamento divino!
Joseph Kerman, em A ópera como drama, escreveu um ensaio maldoso sobre essa ópera, comparando-a com um filme de serra elétrica. Ele mesmo reconhece que deixou de lado a grande metalinguagem desta obra; outro ponto de que ele não se dá conta é o de que a violência que ocorre não é gratuita, ou não tem o fim de apenas chocar: ela encena determinado regime político com exatidão. A ópera já se inicia com o motivo musical de Scarpia, isto é, do Estado.
Scarpia reúne em si diferentes autoridades: a que prende, a que acusa, a que condena, a que executa. No Brasil, quem sabe chegaria a ministro da justiça? Uma situação bem Antigo Regime, com toda essa concentração de poderes, incompatível com o Estado de direito, que é incompatível também com a atuação do juiz como chefe da acusação, conforme as reportagens da Vaza Jato. Vejam aqui o sumário que The Intercept fez, uma novela sobre o fim da democracia no país: https://theintercept.com/2020/01/20/linha-do-tempo-vaza-jato/
Um dos elementos interessantes de Tosca é mostrar como esse poder tirânico está imbrincado com a religião. O primeiro ato se passa na Igreja, a ária de Tosca, uma personagem católica, é uma oração, no começo do interrogatório de Cavaradossi ela está a executar uma cantata religiosa. No fim do primeiro ato, Scarpia combina sua ode à tortura e à lascívia com um Te Deum. A destruição teocrática dos direitos dos povos indígenas e das políticas para as mulheres pela ministra Damares Alves, ou a indicação do presidente criacionista da Capes, resultado da aliança entre os empresários do ensino privado com as igrejas cristãs não são simples diversionismos, mas elementos fulcrais deste novo velho autoritarismo.
Que tenhamos algo do gênio musical e dramático de Maria Callas para lidar com isso: https://www.youtube.com/watch?v=D7akvJ5_Kyg


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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