Parece-me que, como a ópera tem o canto como parte essencial, e o exacerbamento das paixões humanas, suas possibilidades de orgasmo são maiores do que as do teatro falado e, por isso, creio os espíritos mais convencionais têm dificuldades com o gênero. Um exemplo disso que geralmente é lembrado é o de Tristão e Isolda, de Wagner, por causa do choque nos moralistas provocado na época, e as discussões sobre quantos orgasmos estariam representados naquela música.
Curiosamente, a maior vaia que já ouvi foi justamente em uma produção dessa obra, talvez porque Geraldo Thomas tenha realmente encarado o desafio de encenar Wagner nos dias de hoje, enquanto a plateia queria sentir-se tranquila como se diante de uma museologia apaziguada.
Há quem ache que o orgasmo em Tristão e Isolda só venha no final, quando a música finalmente se resolve, na "iluminação de Isolda". Mas não tratarei dela, essa ópera já apareceu nestes 30 dias.
Um dos mais divertidos exemplos de orgasmo foi composto por Jacques Offenbach. Júpiter, transformado em mosca, faz a corte a Eurídice em Orfeu nos Infernos (Orphée aux Enfers, a ópera em que aparece o famoso Can-Can, originalmente o "Galop infernal d'Orphée aux Enfers").
Natalie Dessay e Laurent Naouri (que já eram casados nesse momento na vida real) se apresentaram juntos nesta obra, e a interpretação deles da cena é hilariante: o agudo de Dessay sublinha o momento do orgasmo: https://www.youtube.com/watch?v=XzG4B8GiWKc
Resolvi escolher, porém, uma obra em que o orgasmo tenha um papel mais central para a trama: A coroação de Popeia (L'incoronazione di Poppea), de Claudio Monteverdi e do libretista Giovanni Francesco Busenello, que estreou em 1641.
Trata-se de um dos títulos que revela o final da história. Porém, como se trata de um acontecimento histórico (trata-se mesmo de uma das primeiras óperas com tema desse tipo), é claro que não era segredo para o público que Nero superaria a oposição do Povo e do Senado, de Ottavia, Seneca e Otone e conseguiria casar com a protagonista.
Patrick J. Smith, em A historical study of the opera libretto (um presente que ganhei no milênio passado), considera que este libreto de Busenello (que elaborou apenas cinco) é um dos maiores de todos os tempos e é um dos analisados na obra, como os de Arrigo Boito para Verdi e para si mesmo. Eu gosto tanto que a primeira coisa que aparece em meu livro de 2009 sobre direitos humanos é uma epígrafe tirada desta obra, um trecho do confronto entre Nero e Sêneca. A discussão bem revela, em seus argumentos, que Busenello realmente deve ter sido um grande advogado.
A primeira cena entre Nerone e Poppea parece dar-se após o sexo (o mesmo ocorre no início de O Cavaleiro da Rosa, entre a Marechala e Octavian, porém Monteverdi é mais sutil do que Richard Strauss). A súplica de Poppea para que ele não parta rende um dueto; vejam-no aqui, com Anne Sofie von Otter (meio-soprano, interpretando o imperador; ela também cantou, nesta ópera, pelo menos a Ottavia e a canção da Arnalta) e Mireille Delunsch (soprano), em apresentação regida por Marc Minkowski: https://youtu.be/iON2bq3-_q0?t=1109.
Com a repetição da pergunta se Nerone voltará, ("Tornerai?"), a confiança de Poppea no seu poder sobre o imperador se fortalece, e ela se sente segura para dizer adeus. Contudo, é muito difícil separar-se, e a palavra repete-se várias vezes. Tão logo ele parte, a expressão da jovem nobre muda bastante de caráter: de erótico passa a rejubilante. Canta exaltada que por ela guerreiam os Deuses Amor e Fortuna; mesmo as advertências de sua criada, Arnalta (cantada nessa produção por um cantor travestido, Jean-Paul Fouchécourt - um haute-contre, um tipo francês de tenor agudo - o papel é grave demais para uma mulher), são incapazes de diminuir-lhe a confiança no poder sensual que exerce sobre o governante de Roma.
Em novo encontro, ainda no primeiro ato, ela consegue persuadir o amado a condenar a morte o filósofo Seneca, antigo preceptor de Nerone. Patrick J, Smith, em nota de rodapé, comenta que Busenello tentaria "esconder", mas ele está convencido de que a cena ocorre "depois do coito". Não tenho dúvida também, mas creio que o libretista não esconde esse fato! Creio que o mesmo se deva dizer do primeiro dueto.
Com efeito, Poppea alude explicitamente à noite anterior de ambos. No fim do encontro, ela calunia o filósofo e provoca a ira do amado. Nesta montagem, Miah Person é o soprano e o meio-soprano Sarah Connolly encarna o imperador, com a regência de Harry Bicket: https://www.youtube.com/watch?v=s3EfOcN7eaU
No terceiro ato, ocorre novo encontro destes protagonistas. Acontece tanta coisa na ópera que não se pode acusá-la, ao contrário do que já fizeram ao Romeu e Julieta de Gounod, de consistir em uma série de duetos de amor; adeamis, Monteverdi é muito mais erótico do que aquele compositor francês. Nerone promete desposá-la e repudiar Ottavia, cujo plano de assassinar Poppea fracassara. O imperador, em sua exaltação, canta, em determinados momentos, mais agudo do que sua amada; vejam com Connolly e Person https://youtu.be/rvZOKO9_Tr4?t=321; e, depois, com o tenor Richard Croft e o soprano Patricia Schumann (regência de René Jacobs): https://youtu.be/zUe8xZ8WozA?t=2480
Há mais, todavia. Esta ópera termina com um novo dueto de amor, o mais famoso da obra (cuja música não foi escrita por Monteverdi), que traduz em termos sonoros uma carícia prolongada e cada vez mais íntima, que choca as almas mais sensíveis - como assim terminar uma ópera com tanta violência desta forma, com a sensualidade premiada em detrimento da virtude? L'incoronazione di Poppea não faz concessões à moral. Provavelmente, no entanto, boa parte da plateia sabia que o romance acabaria mal, com o assassinato da nova imperatriz, grávida, pelo esposo.
Nesta apresentação recente regida por William Christie, o dueto amoroso formado pelo Nerone do meio-soprano Kate Lindsay e pela Poppea do
soprano Sonia Yoncheva é acompanhado pela indignação e pela exasperação
mudas dos outros personagens, alguns mortos, vítimas desta paixão
celebrada, celerada, e pelos bailarinos: https://www.youtube.com/watch?v=quhXDVX6jjA.
A luz apaga-se no momento do beijo. Esta produção de Jan Lauwers é interessantíssima. Toda a ópera vira uma preparação humana e divina, doce e cruel, cômica e trágica, sempre barroca, para este orgasmo.
No filme de Jean-Pierre Ponnelle, com a regência de Nikolaus Harnoncourt, o imperador é interpretado pelo tenor Eric Tappy; Poppea, pelo soprano Rachel Yakar: https://www.youtube.com/watch?v=qBhJbws1i0c. O cineasta faz com que o casal termine enlaçado no chão, o que é, de fato, sugerido por esta música.
Entendo que muitos prefiram que Nerone seja cantado por uma mulher ou por um contratenor; as vozes ficam mais próximas, o que é interessante nos duetos com Poppea, e isso faz com que terminem a ópera na mesma nota na mesma oitava. Outros preferem o Nerone tenor por ser dramaticamente mais convincente, como John Eliot Gardiner argumentou faz pouco tempo em entrevista à Diapason (para a gravação de 1993, no entanto, escolheu uma cantora, Dana Hanchard; von Otter interpretou Ottavia).
Na opção pelo tenor, defensável na ausência de castrati, o argumento da proximidade das vozes passa a se aplicar ao dueto com Lucano. Esse momento do segundo ato ocorre depois que o imperador ordenou que Seneca, que se opôs ao repúdio de Ottavia, se suicide. Depois que a morte se consuma de forma sublime, Nerone comemora de maneira bem profana com Lucano: "Or che Seneca è morto/ Cantiam Lucano". Trata-se, como ressalta Patrick J. Smith, de uma cena de orgia que inclui um elogio a Poppea (ausente, no entanto), contrastando com a deificação de Seneca. Nesta produção argentina, regida por Daniel Birman e dirigida por Marcelo Lombardero, todos estão cobertos de preto; quando Nero (Santiago Bürgi) ri e ordena "cantemos", muda-se a iluminação, as roupas são tiradas e irrompe uma orgia com homens e mulheres: https://youtu.be/7KKWDQ4mfOI?t=6363
Temos aí um dueto de tenores. No famoso episódio do "Bocca, bocca", o imperador beija o tribuno Lucano (Agustín Gómez), que passa a cantar seu famoso solo entrecortado das exclamações de Nerone: "Ai, destino!"; a última repetição marca o gozo do personagem. O "néctar divino" torna-se o sêmen do imperador.
Em geral, a cena é montada somente com os dois personagens, sem a participação de bailarinos. Ela funciona, claro, mesmo se Nero é cantando por uma mulher. Como exemplo, esta produção com a regência de Claudio Cavina e seu grupo La Venexiana, o meio-soprano Giuseppina Bridelli e o tenor Luca Dordolo: https://youtu.be/FqMrivd0iUo?t=6725
Entre as possibilidades da ópera barroca, era comum haver um cantor homem fazendo o papel de um personagem masculino, porém com voz aguda: os castrati. Como esse costume cristão da mutilação de meninos foi abandonado (instituído para calar as mulheres: como elas foram proibidas de cantar nas igrejas, as vozes agudas teriam que ser assumidas por meninos ou por homens castrados), hoje os contratenores, homens que cantam basicamente com a voz de cabeça, assumiram muitos desses papéis, como era o caso de Nerone.
Vejam como é impressionante o intercâmbio entre o imperador de Philippe Jaroussky e o Lucano de Mathias Vidal (regência de William Christie, encenação de Pier Luigi Pizzi): https://www.youtube.com/watch?v=ExgdQfn_Jf4
Depois de uma ópera como esta, com suas várias possibilidades de orgasmo, temos que reconhecer que a ópera do Romantismo é, em geral, careta.
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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