Pensei neste tópico porque tinha esta obra em mente. Trata-se de uma das óperas que foi escrita em campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, em Therezín, pelo compositor Viktor Ullmann e pelo poeta e pintor Peter Kien. Ambos foram transferidos para Auschwitz em 1944 e lá assassinados, aos 46 e 25 anos respectivamente.
Existia vida musical nos campos de concentração afora o uso de música na tortura (algo que a ditadura militar no Brasil também fez, usando, como consta no relatório da Comissão Nacional da Verdade, canções de Roberto Carlos durante os suplícios). Os internos muitas vezes conseguiam manter atividades artísticas.
Segundo Shirli Gilbert (A música no holocausto, que li na tradução para o espanhol de María Julia de Ruschi), os oficiais e carrascos consentiam nessa atividade por várias razões, inclusive a de julgar que ela poderia distrair os prisioneiros e dispersar esforços de resistência. Segundo a autora, o único campo de extermínio em que não se registrou atividade musical foi o de Chelmo. No entanto, essa atividade não poupava os músicos do terror; ela conta como em Sachsenhausen, oficiais nazistas interromperam ensaio do coro para forçar os cantores a fazerem exercícios forçados seminus cantando. Muitos morreram durante essa tortura, e os que sobrevieram forma obrigados a ficar de pé toda a noite. Dias depois, foram transferidos para Auschwitz.
No entanto, a música podia servir de veículo de testemunho, memória e resistência. Um desses casos foi O imperador de Atlântida, ou a recusa da Morte ("Der Kaiser von Atlantis, oder Die Tod-Verweigerung"), de Ullmann e Kien. Trata-se de uma ópera com quatro cenas, que exige sete cantores e treze instrumentistas.
A ópera foi composta nos anos de 1943 e 1944, mas não pôde estrear no campo de Therezín, que serviu de "vitrine" e despistamento do genocídio por certo tempo. Paula Kennedy, no texto da primeira gravação da obra, regida por Lothar Zagrosek para a coleção Entartete Musik (a categoria nazi da Música degenerada) da extinta gravadora london, escreveu que oficiais nazistas assistiram a um ensaio e cancelaram a apresentação. O livro de Amaury du Closel, Les voix éttouffés du IIIe Reich: Entartete Musik, discorda dessa tese e afirma que não se sabe se as autoridades a proibiram, ou se as deportações em massa para Auschwitz, que ocorriam desde outubro de 1944, foram a causa, ou se os próprios intérpretes ficaram com medo da reação do pessoal da SS.
Apesar dos ensaios com o compositor, a ópera só pode estrear três décadas depois, quando foi felizmente encontrada. Closel explica que Ullmann confiou a partitura (ainda inacabada) a um amigo, Emil Utitz, para entregá-la a outro amigo, de Praga, Hans Günther-Adler, caso o compositor não retornasse de Auschwitz, que foi o que infelizmente aconteceu. O regente Kerry Woodward encontrou-a em 1972 na casa do filho de Adler e a estreou em Amsterdam em 1975.
O libreto é alegórico. O soberano, imperador Overall, que detém diversos títulos além de Imperador da Atlântida, como rei de Jerusalém e benção da humanidade, decretou a guerra de todos contra todos, e convocou a Morte (um personagem masculino, por causa do gênero da palavra morte em alemão), por causa de seu passado, para marchar na frente do pelotão em nome de "nosso grande futuro" e do "grande passado" da Morte.
O personagem da Morte fica indignado com seu tratamento pelo Overall, percebe que o imperador quer tomar seu lugar, e entra em greve. Ninguém mais morre. Overall, estupefato, manda chamar o médico que explica que, por causa de uma estranha doença, os soldados não conseguem morrer! Sem a morte, quem irá obedecer ao imperador??
Um dos pontos geniais da ópera: na "necropolítica" do nazismo, a vida é considerada uma doença. Overall tenta propagandear o acontecido como vitória dele, mandando anunciar que seus soldados foram recompensados com a vida eterna; em paráfrase bíblica, ele pergunta "onde está, Morte, seu poder; onde está, Inferno, sua vitória?"
No entanto, o mesmo ocorre com os exércitos de outros países. Na cena seguinte, dois inimigos de guerra, de sexos diferentes, passam a namorar, vendo que não conseguem matar um ao outro. Os apelos bélicos deixam de funcionar. Rebeldes silenciosos tomam os hospitais.
Overall vê o fracasso de seus planos da guerra de todos contra todos e o colapso de seu império. O Arlequim debocha do malogro. O personagem da Morte chega e propõe ao imperador fazer as pazes com ele e voltar a trabalhar, desde que ele, Overall, seja o primeiro a morrer... É o que ocorre.
No final, quatro cantores entoam o coro "Venha, Morte, nosso caro convidado" ("Komm Tod, du unser werter Gast"), uma versão do famoso coral luterano "Ein feste Burg"; neste caso, o Deus é a Morte.
No vídeo a que fiz as referências acima, de montagem da Ópera de Câmara do Teatro Colón, encenada em 2006, o personagem da Morte vem pessoalmente fazer os cantores "descansarem". Um efeito muito poético. A direção cênica é de Marcelo Lombardero, o imperador é interpretado por Luciano Garay e a Morte, por Hernán Iturralde.
A genial música de Ullmann é eclética; entre as citações que Paula Kennedy analisa no texto para a gravação de 1993, estão ecos de Mahler e Kurt Weill (dois autores proibidos pelo nazismo), o tema da morte da sinfonia n. 2 de Josef Suk, "Asrael" (nome do anjo da morte), além de um uso grotesco do "Alemanha acima de todos", ("Deutschland über alles"), hino tão amado pelos nazistas, e que serviu de inspiração, no Brasil, para o lema de campanha bolsonarista em 2018.
George Steiner morreu nesta semana aos 90 anos. Ao contrário de Ullmann e Kien, ele sobreviveu ao totalitarismo. Seus pais deixaram com ele a França antes que fosse tarde demais; em 1934, quando tinha cinco anos, a extrema-direita francesa marchava nas ruas, empolgada com a barbárie alemã, gritando "Morte aos judeus"; a babá foi buscá-lo às pressas no jardim de infância. Em casa, ele pediu para que a mãe abrisse as persianas para que ele olhasse a multidão dos nazistas franceses, que quebrava vitrines enquanto assolava as ruas. O pai lhe falou calmamente: "Veja, meu pequeno, isto é a História".
Esse evento pode ser lido nas entrevistas do livro George Steiner: à luz de si mesmo, de Ramin Jahanbegloo, que a Perspectiva publicou no Brasil com tradução de Fany Kon e J. Guinsburg. Perto do final do volume, Steiner fala dos diversos genocídios durante o século XX, as vítimas do nazismo, do stalinismo, massacres na África, e conclui que "numa escala que nos é impossível calcular, definir "cientificamente", esse século fez baixar o limiar do que é humano na humanidade. Pensar honestamente é saber que se está terrivelmente diminuído."
Os ecocídios de hoje, bem como a normalização do massacre têm reduzido ainda mais a escala da humanidade, pode-se acrescentar. No entanto, obras de arte como Der Kaiser von Atlantis ofertam-nos a aparência, a esperança ou a ilusão de que a humanidade pode, possa, poderia ser outra coisa, tendo em vista o gênio nelas manifesto e a coragem de fazer e de existir.
Nessa ópera, depois de o arauto anunciar as personagens, temos a primeira cena, que se dá entre o Arlequim e a Morte. Eles não sabem determinar que dia é e cantam sobre quem pode comprar dias novos, ainda não usados. Trata-se de algo tristíssimo de ouvir, sabendo que os músicos envolvidos na tentativa de criação da ópera estavam prestes a serem executados e tinham consciência disso.
Arlequim está cansado, completou quase três séculos de idade, não quer mais viver. O personagem da Morte, muito mais velho e fatigado, responde que Arlequim nunca morrerá, pois tem a capacidade de rir de si mesmo. Nunca escapará de ser Arlequim.
Da mesma forma, Ullmann e Kien tiveram a coragem de não deixarem de ser eles mesmos, mesmo diante da morte, e sua provocação artística conseguiu furar a guerra, o extermínio e o esquecimento para chegar até nós.
Imaginem uma montagem brasileira com nosso Ersatz de Overall?
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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