Nabucco foi a terceira ópera de Verdi, e a que salvou a carreira do grande compositor, e possivelmente o prestígio da ópera italiana no século XIX, tendo em vista o silêncio voluntário de Rossini, a loucura de Donizetti e a morte precoce de Bellini.
Verdi vinha de um fracasso profissional, a ópera Un giorno di regno, escrita em uma época de calamidade pessoal, em que perdeu a esposa, Margherita Barezzi, e os dois filhos. Nabucco representou uma retomada vigorosa em termos de carreira, bem como para a vida pessoal: ela foi estrelada (o papel principal não é realmente o do personagem que dá título à ópera, mas o de sua formidável antagonista, sua filha adotiva e ex-escrava Abigaille) por sua futura companheira, Giuseppina Strepponi.
Na época da estreia, 1842, e ainda por muitos anos, o Estado italiano, tal como existe hoje, não existia ainda, mas o movimento para a unificação política já estava presente. Verdi representou uma importante face musical dessa campanha; o seu próprio nome se tornou sigla para Vitor Emanuel Rei De Itália.
Esta ópera sobre os judeus escravizados na Babilônia possui um coro de clara ascendência belliniana que, para as plateias italianas, representava sua própria aspiração à pátria: "Va, pensiero", invadida por, entre outros, os austríacos.
Nesta cena do libreto de Temistocle Solera, o pensamento dos judeus, desterrados e cativos, vai para a pátria, tão bela e perdida.
Vejam esta tradução para o português: https://www.youtube.com/watch?v=KMBZ58zJwBM
A partitura pode se baixada desta ligação: http://www1.cpdl.org/wiki/images/4/46/Ws-verd-vap.pdf
Trata-se de um daqueles trechos de ópera que praticamente todo mundo já ouviu; Verdi tem ao menos mais dois deles, o Brinde de La Traviata e "La donna è mobile" de Rigoletto.
No caso deste coro, seu papel político na insurreição dos italianos contra a dominação estrangeira contou muito para a popularidade, além da beleza melódica. Na já distante época em que os liberais no Brasil queriam parecer pessoas refinadas, e não revelar-se meros aliados da teocracia e das milicias, consortes voluntários do fascismo, o extinto PL usava esse coro como vinheta musical.
Dito isso, tratava-se não de música escrita para a elite, e sim para as massas. Rossini, diante do fenômeno de popularidade do Nabucco, comentou que os coros se pareciam com árias a quatro vozes.
A escrita coral, de fato, é muito simples. Em boa parte do tempo, as quatro vozes estão cantando em uníssono sobre o acompanhamento orquestral:
Sopranos e contraltos estão cantando a mesma linha na mesma altura, os tenores e o baixos, a mesma linha uma oitava abaixo.
A partitura segue assim, em uníssono para as vozes. A divisão chega quando a melodia principal vai para o agudo. Os contraltos se diferenciam dos sopranos e tem um intervalo descendente (uma quarta), e os baixos também descem (uma oitava): dó, sol e mi, todos sustenidos (a tonalidade é fá sustenido maior). Sopranos e tenores dividem-se em terças: a linha mais grave mantem o dó, a mais aguda vai para o mi (uma nota bem confortável, por sinal, para essas vozes). Os baixos repetem a nota dó, porém grave, e os contraltos, um sol:
Perto do fim, quando se chega ao ré sustenido agudo, duas vezes em "pati" (vejam a sílaba "ti", a primeira do sistema abaixo), todas as vozes cantam a mesma nota, contraltos e baixos na mesma oitava de sopranos e tenores respectivamente.
Verdi, com essa escrita coral em que o uníssono faz-se tão presente (à diferença de outras peças que compôs para coro), conferiu a esta peça o caráter de hino.
Não, porém, um hino do Estado, mas uma peça que pode ser usada contra ele. Por exemplo, nesta apresentação de Nabucco em 2011, no Scala de Milão, o grande regente Riccardo Muti, depois da apresentação do coro, profere um discurso contra o governo de Berlusconi e seus cortes na cultura: https://www.youtube.com/watch?v=the9_fs1Za0.
Depois, ele rege o coro e o público, que cantam juntos esta música, que tem todo o poder de um hino que não é o do Estado, mas do coletivo que o entoa para unir-se e identificar-se por meio de um símbolo sonoro de reivindicação ou revolta.
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera (Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff)
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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