O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou filme: "La serva padrona", de Pergolesi, por Carla Camuratti (30 dias de ópera: Dia 25)

Há obras-primas do cinema entre os filmes de ópera. Dos que vi, um dos que mais me impressionou foi A flauta mágica, a ópera de Mozart, segundo a visão de Ingmar Bergman. O cineasta adotou o ponto de vista do público, especialmente das crianças, sobre esta obra-prima para todas as idades. Além disso, a execução musical é excelente, com a regência do grande Eric Ericson. Alguns talvez não gostem de o libreto de Schikaneder ter sido traduzido para o sueco, mas é uma língua parente do alemão, as frases parecem estar sempre próximas do original.
Nem sempre os filmes contam com as melhores interpretações musicais. O primeiro que vi, no cinema, foi uma La Traviata (uma das mais conhecidas óperas de Verdi) com um soprano que reclamou ter estragado a voz tentando melhorar sua interpretação. De fato, essa disputa com a difícil partitura é audível, e é perdida no fim do primeiro ato; para piorar, a música foi cortada para o filme ficar mais curto.
Há tanto para escolher, decidi-me por uma obra única: o primeiro filme de ópera brasileiro, que ganhou o prêmio HBO em 1997, La serva padrona, dirigido por Carla Camuratti. A atriz e diretora já havia assumido um papel importante na chamada retomada do cinema brasileiro, com Carlota Joaquina, e ousou inaugurar um gênero cinematográfico no Brasil com seu segunda longa:


Esta é a folha de rosto do libreto, que custou nove reais na época. A ópera bufa, do compositor Giovanni Battista Pergolesi e do libretista Gennaro Antonio Federico, estreou em 1733 e constitui um exemplo notável da commedia dell'arte nos palcos líricos. Serpina é a criada que, criada por Uberto desde criança, resolve casar-se com ele e tornar-se patroa. Há outro criado, Vespone, um personagem mudo, que acaba por auxiliá-la (disfarçando-se de Capitão Tempestade) no plano para conquistar Uberto, que gosta dela, mas não quer reconhecer o afeto.
No filme de Camuratti os cantores são o soprano Sylvia Klein e o baixo-barítono José Carlos Leal, que participaram da montagem no teatro, que ela mesma dirigiu em Minas Gerais em 1996. A Orquestra de Câmara Sesiminas é regida por Sérgio Magnani. O papel de Vespone é interpretado por Thales Pan Chacon, que morreu logo depois e não pôde assistir à estreia. Nos créditos do filme e no libreto, a diretora do filme e ex-esposa do ator e bailarino deixou-lhe uma dedicatória in memoriam. Para suas cenas, o maestro criou uma linha de fagote como uma espécie de voz do personagem.
A ópera, que nasceu como um intermezzo para ser apresentado no intervalo de uma opera seria, tem uma duração curta. A diretora aumenta-a um pouco iniciando o filme com um pesadelo de Uberto com Serpina e, depois, uma divertida descrição das cenas: https://www.youtube.com/watch?v=KNQOO2kvilg
Vejam como a câmera emula a vivacidade da música nesta ária de Serpina, "Stizzoso, mio stizzoso" ("Birrento, meu birrento"): https://www.youtube.com/watch?v=36K7E8i2Zr0. O desembaraço de Sylvia Klein é contagiante.
Achei outro momento do filme, esta ária do personagem de José Carlos Leal, "Sempre incontrasti con te si sta" ("Sempre de picuinha contigo estou"; sigo a tradução do libreto, cujo autor ignoro): https://www.youtube.com/watch?v=SasguCfqqi4
No final, o dueto do martelinho do amor sela a felicidade do casal. Creio que Camuratti supera o desafio de filmar neste cenário único (há o sonho, a fantasia de Uberto sobre Serpina deixando a casa). Sua direção respira com a música, como ela mesma explicou no volume a ela dedicado na importante coleção Aplauso (Luz natural, por Carlos Alberto Mattos), e obedece a uma estruturação de ordem musical, o que não é comum ver nos filmes de ópera:
Uma das codificações básicas que estabeleci, junto com o Breno Silveira [o diretor de fotografia], foi rodar os recitativos com câmera parada, tripé e cortes secos, enquanto nas árias a câmera se deslocava, bailava, na mão ou em carrinhos. As pessoas podem não perceber isso, mas são embaladas por essa pontuação. 
Um filme rodado em oito dias, que contou com a "obediência", segundo a diretora, dos cantores de ópera, que estão acostumados à disciplina dura dos ensaios. No depoimento, ela conta que não é de Chacon a silhueta que rege a lua no fim, pois ele já havia falecido, e que foi um desafio deixar feio um ator que era reconhecidamente belo. Ela também insistiu que os cantores realmente cantassem suas partes nas árias, apesar da dublagem, o que contribui para a naturalidade do resultado. Não consigo ver esses filmes antigos que fazem o cantor apenas entreabrir a boca para notas que exigem muito mais esforço; imaginem cantar algo tão árduo quanto "Sempre libera" com um simples sorriso? Exige-se demais da suspensão de descrença.
Essa ópera gerou, após a morte precoce do compositor, e depois de apresentações na França na década de 1750, toda uma polêmica na música francesa conhecida como a Querelle des Bouffons, histórica disputa entre os defensores da ópera italiana (Rousseau, especialmente, que admirava esta obra cômica de Pergolsei) e os da ópera francesa. Um crítico, na época do lançamento do filme, não só criticou a própria ópera de Pergolesi como simplória e esquemática, opinião que me parece deixar de lado as convenções do gênero, como afirmou que a principal consequência estilística daquela Querela, a opéra comique, "está completamente esquecida".
A esse respeito, lembro da célebre Carta sobre a música francesa, de Rousseau, especialmente a passagem que repete sobre Pergolesi o que Cícero dizia de Homero, "significa ter progredido muito em arte, o fato de ter prazer em sua leitura". O filósofo suíço destaca o dueto "Lo conosco a quegl' occhietti" como "modelo de canto, de unidade, de melodia, de diálogo e de gosto a que nada faltará, quando for bem executado, salvo um público que saiba ouvi-lo". Para o filme de Camuratti, que chegou a oitenta mil espectadores com um número pequeno de cópias, creio que o público não faltou. O encanto da música de Pergolesi permanece.
Sobre a opéra comique, que acabou por colocar a antiga tragédia lírica francesa fora de moda: uma das óperas não exatamente olvidadas que foram compostas nesse formato, que combina números musicais e diálogos falados, é a Carmen de Bizet. Cheguei a pensar em escolher para este tópico a Carmen de Carlos Saura, com Laura del Sol e Antonio Gades, em que a música da ópera chega a aparecer, mas esta obra metalinguística tem mais que ver com o universo da dança. Um dos filmes realizados com base na ópera Carmen é o de Francesco Rossi, com Julia Migenes-Johnson no papel da protagonista e Plácido Domingo interpretando seu assassino. Vejam aqui o final da obra e percebam como foram longe as consequências estilísticas daquela ópera bufa: https://www.youtube.com/watch?v=BJSxleTXnJo.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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