O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Ópera e gênero: "La Calisto", de Cavalli, e o amor entre mulheres (30 dias de ópera: Dia 20)

A ópera barroca, especialmente durante o século XVII, suscita questões interessantes em termos de gênero. Uma delas eram os intérpretes e seus corpos, em razão dos castrati: meninos que tinham seus testículos cortados antes da muda vocal e, por isso, cresciam (e muito, costumavam ficar maiores do que os homens com testosterona) com a voz aguda. O último deles, Alessandro Moreschi, cantor da Capela Sistina, chegou a fazer gravações no início do século XX.
A mutilação correspondia a um costume cristão, seguindo o preceito bíblico de Paulo de que as mulheres deveriam ficar caladas na igreja. Depois da Revolução Francesa e de outras revoltas, começou a parecer que a castração feria, mesmo para os padrões morais do cristianismo, a dignidade humana. Esses cantores lentamente desapareceram, portanto, e seus papéis foram assumidos por cantoras ou por contratenores. Provavelmente o som daquelas vozes diferia tanto delas quanto destes.
Temos um dos vários exemplos no romano Júlio César personagem principal de Giulio Cesare in Egitto, uma das obras-primas de Händel. Ele pode ser encarnado por uma mulher, em geral um meio-soprano (jamais um soprano, é grave demais). Temos aqui Sarah Connolly cantando a primeira parte da grande ária "Va tacito": https://www.youtube.com/watch?v=fieBT98DCLc.
Um grande contratenor, como Lawrence Zazzo, pode encarnar o mesmo personagem: https://www.youtube.com/watch?v=m1VQGpevAbM.
Passou-se o tempo de transpor a partitura uma oitava abaixo para ouvir um barítono cantando o César, ou um baixo-barítono, como o grande Hans Hotter nesta gravação dos anos 1950.
A ambiguidade dos castrati continua a lançar perplexidades de gênero sobre os palcos e os públicos  e a obrigar os diretores a escolhas sobre quem os sucederá nos papéis.
Há papéis escritos originalmente para cantores travestidos: um exemplo clássico é o jovem Cherubino, de As bodas de Fígaro, de Mozart e Lorenzo da Ponte. Ele foi concebido para um soprano; hoje, na maioria das vezes, interpreta-o um meio-soprano (vejam Maria Ewing tentando seduzir a Condessa, interpretada por Kiri te Kanawa).
Para seguir nostalgicamente essa tradição de personagens adolescentes ou jovens masculinos interpretados por cantoras, Richard Strauss e Hoffmansthal conceberam o Octavian, na virada mozartiana que deram com O cavaleiro da rosa.
O grande meio-soprano, hoje aposentada como cantora, mas ativa como diretora cênica, Brigitte Fassbaender, em entrevista à revista Opera, disse que foi assediada várias vezes quando cantava o papel masculino de Octavian. Fãs a perseguiam, possivelmente motivadas pela ambiguidade de gênero.
Vejam-na entregando a rosa de prata à Sophie de Lucia Popp; regência de Carlos Kleiber: https://www.youtube.com/watch?v=vuYNilYrF3Q
Acrescentou que isso costumava ocorrer com as cantoras que interpretavam o personagem. O periódico fez questão de incluir uma nota afirmando que nunca tinha ouvido falar de nada parecido, colocando em dúvida a palavra da artista (pareceu-me machismo), mas é totalmente verossímil.
O movimento MeToo, de denúncias de assédio sexual, cresceu no cinema, porém logo foi para o universo da ópera, abatendo, com razão ou não (os casos continuam a depender de comprovação), maestros como James Levine, do Metropolitan Opera House, e o cantor de ópera Plácido Domingo, cuja carreira nos EUA foi aparentemente encerrada por causa do escândalo.
Resolvi escolher uma ópera cuja história brinca com as encenações de gênero em razão das fontes clássicas que a inspiraram: La Calisto, de Francesco Cavalli e do libretista Giovanni Faustini, que estreou em 1651.
Júpiter mudou de forma diversas vezes para lograr sucesso em suas conquistas amorosas. Transformou-se em animais, em chuva e... até assumiu o gênero feminino.
Calisto era uma das ninfas do cortejo da Deusa Diana. Esta Deusa não simpatizava com homens (com razão, imagino) e matava aqueles que vinham espiá-la.
Júpiter se apaixona por ela, que recusa os amores do Deus e reafirma sua virgindade: https://youtu.be/024G-XYmD6s?t=1290. Mercúrio lhe dá a ideia de tomar a forma de Diana, Deusa filha do próprio Júpiter: https://youtu.be/024G-XYmD6s?t=1465
Como poderia Júpiter conquistar a bela ninfa? Ele a enganou, assumindo a forma da Deusa. Pensando que estava com Diana, Calisto fez sexo com o Deus...
Em texto que acompanha sua gravação da ópera, René Jacobs tratou das várias dificuldades de montar esta ópera hoje, algumas delas de caráter vocal, o que inclui Júpiter: o cantor, um barítono, deveria cantar em falsete quando transformado em Diana, chegando ao sol agudo, o que é uma tarefa bem difícil. Ele a gravou com Marcello Lippi, capaz de cantar a partitura.
Não se trata, contudo, de Júpiter como mulher trans: para ele, a forma feminina não passou de disfarce, e não se constituiu em identidade de gênero. Nem sempre esta solução é encontrada; nesta produção regida por Christophe Rousset, opta-se por uma cantora (Vivica Genaux) para interpretar tanto a Diana verdadeira quanto a falsa. Esta solução pode ser considerada autêntica, pois o mesmo ocorreu na estreia da ópera no século XVII. Júpiter (Giovanni Battista Parodi), dessa forma, descobre o quanto a boca de Calisto (Elena Tsallagova) era devotada à Deusa: https://youtu.be/024G-XYmD6s?t=1947.
Pobre Calisto! Quando encontra a Deusa real, ela a acha louca e indecente, e expulsa-a da floresta: https://youtu.be/024G-XYmD6s?t=2773. Outra ninfa, Linfea (Guy de Mey, um tenor travestido), vê tudo e comenta que não gostaria de morrer virgem. Mas ela recusa o Satirino (Vasily Khoroshev; outro papel difícil a distriubir, diz Jacobs, e é mais adequado para um meio-soprano), que vem se oferecer: https://youtu.be/024G-XYmD6s?t=3333. Para complicar, o Deus Pã (Lawrence Olsworth) está apaixonado por Diana, assim como Endimione (aqui, o contratenor Filippo Mineccia).
No segundo ato, a Deusa revela ter um fraco por Endimione: https://youtu.be/Gb_9SBBLxVY?t=388. Já sabemos, pelo mito, que esse amor terminará bem. Juno, sempre ciumenta e com razão, aparece já sabendo que Júpiter assumiu nova forma para seduzir jovens mulheres, e se indigna com a possibilidade de que ele resolva levar uma de suas amantes a viver entre as estrelas.
Pois é justamente o que acontecerá com Calisto, com a constelação de Ursa Maior. Juno (Raffaella Milanesi) encontra Calisto, ouve suas queixas de abandono por Diana e compreende tudo: https://youtu.be/Gb_9SBBLxVY?t=1257.
Depois de todo o quiproquó amoroso, no fim, claro, Calisto é elevada ao firmamento, mais ou menos de acordo com As Metamorfoses de Ovídio: https://youtu.be/dWUpn71dna4?t=2037. Nesta montagem de Mariame Clément, a ação dos deuses é contrastada com a ciência e o sacrifício de uma ursa.
Com a simplificação forçada do gênero humano imposta pelo cristianismo, é possível que esses temas, na na ópera do passado, tenham encontrado mais camadas de complexidade nas fontes clássicas.Valerie Traub, nos seus estudos sobre a negociação da representação do desejo de mulheres por outras na cultura do século XVII (é fácil de achar o artigo The Perversion of Lesbian Desire, que li faz um tempo). Traub vê uma transformação importante nessa época, que é a de Cavalli: de uma "insignificância cultural" do erotismo entre mulheres inspirada pela ideologia da castidade a uma "ansiedade cultural" diante do amor entre elas como um excesso perigoso.
O mito de Calisto foi usado nessa época, explica Traub, como "lugar de negociação cultural sobre os significados amor entre pessoas do gênero feminino", e essa negociação revela uma "construção cultural emergente" de desejos e de suas divisões entre homo e heteroeróticos, entre desejos legítimos e ilegítimos.
A ópera de Cavalli, explica a autora, intensifica o erotismo da trama articulando de forma mais explícita os atrativos do erotismo entre mulheres, criando personagens que não estão em Ovídio  e que também possuem desejos, e dando a Calisto um papel ativo no processo de sedução. O final, porém, disciplina com o favor divino os desejos da ninfa.
Na ópera barroca dessa época, porém, a disciplina geralmente parece estar por um fio.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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