O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou poema: "Orfeu", de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes (30 dias de ópera: Dia 23)

Convergência, o último livro de poesia que Murilo Mendes publicou, pode ser lido como seu acerto de contas com o mito de Orfeu, que é o mito do poeta. Creio que o título Invenção de Orfeu poderia ter-lhe sido atribuído, se o próprio Murilo não o tivesse antes sugerido para Jorge de Lima, que o adotou em outro de um dos maiores livros da poesia brasileira.
No campo da música, Murilo Mendes é mais conhecido por sua amizade transtemporal com Mozart. No entanto, acho que a ópera L'Orfeo, de Claudio Monteverdi e do libretista Alessandro Striggio, seja mais importante nesse livro do que as óperas de Mozart para os outros de Murilo.
Essa ópera, que estreou em 1607, não foi, claro, a primeira a ser composta, embora seja, provavelmente, a primeira obra-prima do gênero. As primeiras obras, em sua tentativa de recuperar a tragédia clássica, apresentaram temas da Antiguidade Clássica, e o mito de Orfeu, por sua relação com a música, foi o preferido. Depois da Toccata de abertura, o prólogo contém justamente o personagem da Música: https://youtu.be/CHWKniddJjE?t=1173. Nesta produção regida por Jordi Savall, o papel é interpretado pelo soprano Montserrat Figueras. Na estreia, cantou-o um castrato, Giovan Gualberto Magli.
Na estreia, um tenor cantou o papel do protagonista, Francesco Rasi, que era de uma família de nobres arruinados; a primeira apresentação da ópera ocorreu na corte de Mântua, e ele fez os eu melhor para ser tratado como nobre, e não como simples músico (que tinham de comer com os serviçais). Leio-o em John Rosselli, The singers of Italian Opera: The history of a profession; era o século XVII, e a época em que os cantores seriam tratados como reis ainda não havia chegado.
É comum ouvir a obra com um barítono hoje. John Eliot Gardiner escolheu um tenor para sua gravação de estúdio, Anthony Rolfe Johnson; Gabriel Garrido, um barítono, Victor Torres.
Depois do prólogo, os acontecimentos são felizes, tendo em vista os preparativos do matrimônio de Orfeu e Eurídice. Ouvimos coros de madrigais renascentistas e solos do protagonista. Entretanto, chega a Mensageira que traz uma notícia infeliz em um recitativo trágico: Eurídice foi picada por uma serpente e morreu. Nesta ligação, uma produção regida por Nikolaus Harnoncourt, pioneiro na recuperação deste repertório, com o barítono Philippe Huttenlocher (Orfeo), o tenor Francisco Araiza (um dos Pastores; depois, ele se tornaria uma estrela e faria papéis maiores, como Hoffmann e Lohengrin) e o soprano Glenys Linos.
Monteverdi perderia sua esposa no mesmo ano da estreia de sua primeira ópera, por sinal.
Orfeu vai buscar Eurídice, Striggio incorpora Dante e cria o personagem da Esperança que se diz impedida de entrar no Inferno, repetindo o verso célebre da Comédia: "Lasciate ogni speranza voi ch'entrate" (nesta produção regida por René Jacobs, o personagem é cantando por Arlene Rolph; o barítono Stéphane Degout interpreta Orfeu).
Orfeu, para convencer o Barqueiro do Inferno, Caronte (Sergio Foresti), a deixar que ele, vivo, ingresse no Reino dos Mortos, canta sua ária altamente ornamentada "Possente spirto" (para ouvir a música com um tenor, aqui está o início com Cyril Auvity). Caronte confessa que o canto lhe agradou, mas não cede. O poeta muda de estilo e canta com menos ornamentos, com uma expressão mais direta. Em tom um tanto cômico, Orfeu consegue passar pelo barqueiro do Inferno, Caronte, fazendo-o adormecer com este canto: "Rendetemi il mio ben, tartarei numi". Talvez o espírito seja da música que acalma as feras.
A Deusa Prosérpina comoveu-se com o pedido de Orfeu, e convence Plutão a ceder. Mas vem a condição de que ele não possa olhar para Eurídice enquanto eles não deixaram o Inferno, que é quebrada e leva à catástrofe da nova perda da amada.
No último livro de poesia que publicou em português, reunindo poemas escritos, segundo ele indica, entre 1963 e 1966, Murilo Mendes incluiu um "Murilograma a Claudio Monteverdi". Aqui, na primeira edição, pela Livraria Duas Cidades:


O recurso à cor lembra muito Rimbaud, que também recebeu seu Murilograma no livro. As cores, contudo, vestem-se de outras. Há um alerta de que esta festa possui outra natureza. O clima feérico relaciona-se com o sacrifício de Orfeu, que é morto pelas jovens mulheres, as Bacantes. Descobrimos o assassinato na referência final à "ocisão do homem". A palavra escolhida, ocisão, sugere bem o sentido de que se trata de um ritual antigo, ou mítico: o mito do artista incluiria seu sacrifício e despedaçamento.
O livro compõe-se de duas partes, "Convergência" e "Sintaxe". A primeira parte compõe-se exclusivamente de "Grafitos" e "Murilogramas", em geral dedicados a criadores de tipos bem variados: Fernando Pessoa, Heráclito de Éfeso, Augusto dos Anjos, Mário Pedrosa, Ungaretti, Mário de Andrade, Webern, o Deus cristão (mas também Alá e Maomé estão presentes), Hölderlin, um alfaiate grego anônimo, Kafka, Dallapiccola (que musicou Murilo), os pais do poeta, Li-Po etc.
Murilo, aqui, à diferença de tantos poetas que escrevem sobre ou a partir de músicos, está sendo irreverente ou, pelo menos, atrevido. No "Murilograma a Claudio Monteverdi", ele reinventa a cena da ópera cuja música não temos.
No último ato, depois de Orfeu perder Eurídice e meditar sozinho, o Deus Apolo surge e o eleva ao firmamento, encerrando a ópera. Joseph Kerman (em A ópera como drama) criticou Monteverdi por esse final: "esta apoteose platônica é musical e intelectualmente inócua", mas pelo menos era capaz de encerrar a peça. Kerman escreve que a cena de Striggio, de dilaceramento de Orfeu, seria uma "prevaricação não-dramática".
É óbvio que Murilo Mendes discorda de ambos, Monteverdi e Kerman, e restaura esse final que, em sua apoteose de cores, verdadeiras e falsas, possui a força do mito, mais especificamente o do criador.
O "Exergo" de Convergência partia do verso "Lacerado pelas palavras-bacantes" para chegar ao dístico
Orfeu Orftu Orfele
Orfnós Orfvós Orfeles
O poema repete-se ao fim dessa parte do livro. Orfeu torna-se a raiz dos pronomes da criação.
O libreto original de 1607 apresenta a cena das Bacantes. Mas não temos a música dessa parte, tampouco se sabe se Monteverdi chegou a musicá-la, ou se preferiu, desde o início, o final feliz para ser apresentado ao público de nobres. Na produção regida por Harnoncourt, antes aludida, depois da invectiva de Orfeu contra as mulheres (ele afirma que nunca mais será amado por uma vil mulher, numa alusão ao amor pederástico), as Bacantes investem contra ele, enquanto soa a Moresca, que é puramente instrumental: https://youtu.be/EcRFFmgVGlc?t=5555.
O Orfeu de Gluck não apresenta a cena das bacantes e reúne os amantes no fim, O de Haydn, escrito em 1791, mais de um século depois do de Monteverdi, A alma do filósofo, ou Orfeu e Eurídice ("L'anima del filosofo, ossia Orfeo ed Euridice"), apresenta-a; Orfeu morre, mas as Bacantes são punidas e mortas por uma tempestade e a inundação súbita do rio.
Em Monteverdi, não: Apolo conduz Orfeu, seu filho, ao firmamento. Na gravação de Sergio Vartolo, que a Naxos lançou, a cena das bacantes foi registrada, contudo; um coro de mulheres declama e grita o texto. Orfeu grita ao ser atacado.
A poesia também é o grito, mas transfigurado, diria Cecília Meireles. Termino porém com Murilo: o mito de Orfeu, que envolve perda, a arte, e o sacrifício, teria que interessar-lhe por conta da reflexão sobre a criação e, cito aqui Eduardo Sterzi, do "signo da história concebida como catástrofe", em "Murilo Mendes: a aura, o choque, o sublime".
Nesse artigo, o poeta gaúcho fala do poeta mineiro e "seu enlace singular de sofrimento e sobrevivência, de catástrofe e salvação". É interessante que Murilo Mendes tenha empregado o mito de Orfeu e sua dilaceração para tratar também das catástrofes do século XX e das (im)possibilidades de cantá-las. Creio ser esse um dos sentidos do poema que encerra o livro, "Texto de consulta", que assim termina:
O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.

30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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