O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Um balé favorito: "Castor et Pollux", de Rameau (30 dias de ópera: Dia 11)

Meus balés preferidos foram compostos por Stravinsky, mas não vejo como escolher alguma das óperas dele aqui.
Na França foi criada uma forma de ópera-balé, que influenciou outros estilos de ópera naquele país, nacionais ou não: para exportar suas obras para a Ópera de Paris no século, os compositores estrangeiros viam-se obrigados a compor um balé para o segundo ato; Wagner não se conformou. compôs para o primeiro (ele não viu razão dramatúrgica para uma dança no ato seguinte), a Bacanal do Tannhäuser, e esse foi um dos pretextos para a enorme vaia que recebeu naquela cidade.
A França teve um rei que dançava balé, Luís XIV. No século XVIII, Friedrich Melchior, o Barão von Grimm, no artigo sobre "Poema lírico" (que incluía o libreto de ópera) para a Enciclopédia, atacou a forma da ópera-balé por esta razão:
Parece que nada depõe mais contra o poema e a música da ópera francesa do que a necessidade contínua e premente desses balés. É preciso que a ação desse poema seja desprovida de interesse e de calor, pois não podemos suportar que ela seja interrompida e suspensa a todo momento por causa de minuetos e de rigodões; é preciso que a monotonia do canto seja de um tédio insuportável, para que só o aguentemos com a condição de que ele seja cortado em cada ato por um divertimento.
Seguindo esse costume, a ópera francesa tornou-se um espetáculo em que toda a felicidade e todo o infortúnio dos personagens se reduzem a ver danças em torno deles.
Nos divertimentos, muitas vezes os cantores paravam para assistir aos dançarinos. No entanto, algo diverso ocorre na ópera Castor et Pollux (Castor e Pólux), de 1737, uma obra genial que talvez eu nunca veja ao vivo. Trata-se da conhecida história dos dois irmãos gêmeos, os Dióscuros, da religião grega antiga, filhos de Leda. Somente um deles era imortal, Pólux, por ser filho de Zeus; Castor descendia do rei de Esparta, Tíndaro.
O libretista é Pierre-Joseph Bernard. Na ópera, Castor está morto em uma disputa pelo amor de Télaïre (que canta uma das árias mais lindas de todos os tempos, "Tristes apprêts"). Pólux vinga a morte do irmão e se oferece como esposo a Telaïre. Ela lhe pede para que ele peça a Júpiter que restaure a vida de Castor. O Deus concorda, desde que Pólux renuncie à imortalidade e troque de lugar com o irmão nos Infernos. Ele decide salvar o irmão, apesar de Phébé, que o ama, tentar dissuadi-lo. Um balé dos demônios ocorre nos terceiro ato, tentando impedir a entrada de Pólux. A dança, pois, está integrada à ação neste momento.
Nesta apresentação de 2008 da Ópera Holandesa, com a regência de Christophe Rousset e a orquestra Talens Lyriques, temos a revisão que Rameau fez em 1754. Primeiro, entra Phébé (Véronique Gens, que domina plenamente este repertório) tentando encantar os monstros do Inferno. Eles cercam Pólux (Henk Neven). Mas chega Mercúrio (Anders J. Dahlin), e afirma que os encantos dela são inúteis. Começa então a passagem. O balé não é nada convencional. O canto dos demônios causou impacto na época; o ritmo é uma das razões; as notas reiteradas encarnam a violência; como diz Cuthbert Girdlestone na biografia (Jean-Philippe Rameau: His life and work; tenho a segunda edição, não a recente, ignoro se algo foi mudado neste trecho), com o aumento da fúria "a música perde a pouca melodia que tinha", as notas repetidas triunfam; na seção central, em fá sustenido menor, irrompem compassos em sol sustenido menor, o que soa como um golpe e mantém o interesse do público na repetição.
Esse coro é muito impactante; Girdlestone cita uma crítica de 1772 (de Chabanon, no Mercure de France) para que a peça sublime fazia arrepiar os cabelos e poderia soar na boca das Eumênides de Ésquilo.
Na versão de 1737, a original (William Christie gravou-a com Les Arts Florissants em 1992, já com Véronique Gens), Phébé pede para que eles impeçam Pólux de passar ("Saiam da escravidão, combatam, demônios furiosos"); ele, com Télaïre, tenta que os demônios retrocedam ("Caiam, voltem para a escravidão"), que respeitem "o filho do mais poderoso dos Deuses". Ouvimos também o coro dos seres infernais: "Rompamos todas nossas correntes,/ Abalemos a terra!/ Que ao fogo do trovão/ O fogo dos infernos/ Declare guerra!". Mercúrio vem ajudar e Pólux consegue ingressar, sem Phébé.
Além de o texto ser um tanto diferente (nesta ligação está o libreto de 1737; nesta outra, o de 1754), a sonoridade é outra, pois temos duas mulheres no trio, e não dois homens.
É interessante ver como este momento de violência na ópera corresponde, no texto, a uma tentativa de revolta: o filho do mais poderoso dos Deuses exige que os subordinados retornem à escravidão. Eles cantam, violentamente para este idioma musical: "Rompamos todas nossas correntes". Podemos ouvir aqui uma metáfora política do Antigo Regime e da sociedade dividida em estamentos?
Não sei, esta ópera tranquiliza e deifica as hierarquias no fim. A luta contra as correntes, no entanto, jamais terminou.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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