O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 30 de março de 2016

Desarquivando o Brasil CXXII: Recomendações das Comissões da Verdade e a democracia no Brasil



Organizado pela jornalista Niara de Oliveira, ocorrerá mais um tuitaço #DesarquivandoBR, desta vez com a  exigência do cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo relatório foi publicado em dezembro de 2014 (quase totalmente; o volume III só foi formatado no ano seguinte). Para mais informações, sigam o perfil https://twitter.com/desarquivandoBR e o blogue Desarquivando o Brasil.
Quem quiser colaborar, poderá:
  • Escrever textos sobre temas das recomendações da CNV; quem não tiver um blogue ou portal próprio, poderá mandá-lo para o Desarquivando o Brasil; e/ou 
  • Tuitar com os tópicos do cartaz acima; e/ou
  • Trocar a foto do avatar pela de um desaparecido.
As recomendações abrangem pontos que interessam a diversos movimentos sociais. Como se sabe, o Relatório da CNV tem uma seção dedicada apenas a conclusões recomendações no volume I (o capítulo 18), e possui outras no volume II, nos capítulos temáticos sobre violações dos direitos humanos dos povos indígenas e ditadura e homossexualidades. Por motivos que desconheço, as recomendações específicas sobre esses grupos discriminados foram ignoradas por quase toda a imprensa ao tratar do relatório da CNV, e mesmo por pesquisadores: o ISER, no seu importante monitoramento das recomendações, não apenas não as incluiu como não se deu o trabalho de explicar por que, metodologicamente, decidiu ignorar o volume II: http://www.revistavjm.com.br/projeto-mvj/monitorando-a-cnv/as-recomendacoes-da-comissao-nacional-da-verdade-ao-estado-brasileiro-vi-relatorio-de-monitoramento/  
Creio que o silenciamento dessas recomendações mostra que o problema, a discriminação, persiste. E o posterior silenciamento de todas elas, inclusive as do volume I, revela a persistência do legado da ditadura, eis que elas se referem ao enfrentamento do entulho autoritário por meio de, em sua maior parte, reformas legais e administrativas, medidas de verdade e memória, implantação de políticas públicas, em geral medidas de justiça reparativa, mas também de justiça corretiva, com a interpretação da lei de anistia de 1979 segundo a determinação do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, o caso Araguaia.
Trata-se, no seu conjunto, de um programa de "aperfeiçoamento" da democracia no Brasil, ou uma forma de torná-la mais efetiva. Menciono alguns exemplos, para que os leitores dessa nota percebam a variedade de assuntos que podem ser abordados no tuitaço (e, claro, na prática militante e política de todos os dias) e o seu alcance.

Como implantação de políticas públicas para justiça reparativa:
  • "Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva.";
  • "Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988". 
O governo federal (a proba república de Belo Monte) não está a prestigiar essas medidas, em menosprezo não só aos povos indígenas, como à justiça de transição e ao trabalho da CNV; há ministro (hoje, da defesa; mas já foi dos esportes, e da ciência - afinal, ele nega o aquecimento global - tecnologia e inovação, de tanto sua inteligência e vanguardismo representam o atual governo) que relança o argumento da ditadura de que os índios estariam  sendo usados por "potências mundiais"... O latifúndio e o agrobanditismo, que inclui, além dos crimes ambientais, a grilagem de terras indígenas e o assassinato de índios, agradecem a tal inação oficial.

No campo das reformas institucionais:
Vocês estão vendo algo disso ocorrer? Ou os governos federal e estaduais caminham no sentido oposto das recomendações, mantendo a "democracia das chacinas", na lúcida nomenclatura das Mães de Maio? Lembremos que se trata de singular tipo de democracia em que um governador pode comparar uma chacina a um gol.

Medidas essencialmente legislativas, como
Está havendo ação de legisladores no sentido oposto, o de impedir o combate à discriminação de gênero, como no Recife, ou a grotesca moção dos vereadores de Campinas contra Simone de Beauvoir na prova do ENEM em 2015. Por pudor, não menciono o Congresso Nacional. No tocante à exclusão de civis da jurisdição da Justiça militar, o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, em caso das ocupações militares nas favelas do Rio de Janeiro, logrou realizar até mesmo um retrocesso na jurisprudência, negando habeas corpus em caso de desacato na função atípica de policiamento ostensivo pelo Exército.

Entre as que envolvem diretamente o Poder Judiciário, esta pode ser a mais importante:
  • "Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais".
Ou seja, a interpretação de lei de anistia de acordo com os parâmetros do direito internacional dos direitos humanos. Muitos dos agentes públicos referidos estão nesta lista da CNV: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2016.pdf

Medidas de educação e de memória (o que inclui não homenagear os autores de graves violações de direitos humanos):

Trata-se de medidas que seguem produzindo resistência, e encontram todo tipo de dificuldade em um país que sabota a educação, a ponto de partidos contrários terem se servido do mesmo secretário de educação, notório por sua nulidade técnica e fraqueza teórica. Como fazer educação para direitos humanos em um país em que não se quer que a educação ocorra?

Prosseguimento das investigações, tendo em vista que a CNV somente arranhou algumas das temáticas:
Há muito mais. Reitero que a lista é apenas exemplificativa, e escolhi recomendações que ou não cumpridas, ou aquelas contra que o Estado brasileiro está agindo, como a saúde indígena, seguindo o caminho do sucateamento para o destino da extinção, e a submissão de civis à Justiça Militar, que foi empregada para a repressão política na época do #NãoVaiTerCopa, nas Jornadas de 2013 e em outros momentos.
Algumas Comissões da Verdade não fizeram recomendações, outras criaram diversas. Vale também reivindicar recomendações de outras Comissões. Lembro de algumas da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", não presentes no relatório da CNV:
  • "Que as empresas que contribuíram com a prática de violações aos direitos humanos sejam responsabilizadas como cúmplices de acordo com as leis internacionais";
  • "Pedido oficial de desculpas aos Estados da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai pela cooperação da ditadura militar brasileira com as ditaduras desses Estados, à margem do Direito Internacional";
  • "Que seja valorizada a memória da resistência da população negra contra a ditadura e que sejam homenageados seus militantes";
  • "Responsabilização penal, civil e administrativa, inclusive com perda de cargo, de todos os agentes públicos que, por ação ou omissão, contribuíram para as violações perpetradas pela Ditadura Militar, como juízes, promotores de justiça, agentes policiais e outros, que apesar de cientes das denúncias não se empenharam em garantir a segurança e a vida dos presos, ao não tomar as devidas providências, não solicitando investigação das denúncias";
  • "Revogação do atual Estatuto do Índio e instituição de novo Estatuto, que reconheça a autonomia dos povos indígenas como sujeitos coletivos e sua diversidade cultural" ;
  • "Reformulação do Sistema de Segurança segundo a diretriz da garantia das liberdades políticas, para que cessem a criminalização dos movimentos sociais e as prisões por motivo político";
  • "Recomendamos que a grande imprensa brasileira, a partir das informações contidas neste relatório e no relatório da CNV, faça uma retratação pública, retificando as informações mentirosas oriundas das versões da ditadura sobre os diversos episódios, principalmente a versão dos assassinatos dos mortos e desaparecidos políticos".

Para o tuitaço, inspirados na recomendação 27 do primeiro volume da CNV, isto é, o "Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos", substituiremos as fotos de nossos avatares pelas imagens de desaparecidos. O capítulo 12 do volume I do Relatório lista os desaparecidos confirmados pela CNV; não são todos, claro, mas estes nomes devem servir: http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo12/Capitulo%2012.pdf
Os desaparecidos da democracia, como Amarildo, podem também ser evocados, ressaltando a atualidade desta campanha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário