No dia 14 de abril, na Casa do Povo, em São Paulo (Rua Três Rios, 252), às 20h, ocorrerá uma mesa-redonda com o tema "Transfobia e Literatura", organizada por mim e Fabio Weintraub. A editora Chão da Feira lançou no fim de 2015 um volume que reúne dois livros recentes de Alberto Pimenta, "Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta", com poemas sobre a invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América, e "Indulgência Plenária", poema longo sobre o assassinato da transexual brasileira Gisberta Salce na cidade do Porto.
A ativista transfeminista Daniela Andrade e o poeta e professor de literatura portuguesa Leonardo Gandolfi estarão lá, e eles certamente tornarão o evento muito interessante.
Neste ano, o assassinato completou uma década; tratou-se de um crime (e de um julgamento tão bárbaro quanto o crime) que chocou a sociedade portuguesa, e suscitou reações contrárias à transfobia, inclusive artísticas (além do livro de Pimenta, posso mencionar, de Armando Silva Carvalho, o Auto do Branco de Neve e os Sete Machões, que Gandolfi me enviou, e a peça Gisberta, de Eduardo Gaspar, peça que critiquei em outra nota).
Para o extinto K Jornal de Literatura, em outubro de 2007, escrevi uma breve resenha sobre Indulgência Plenária. Talvez seja útil para quem não conhece o livro.
“Extravagante
e viajado estrangeiro daqui e de todo lugar”: Indulgência Plenária de
Alberto Pimenta
Pádua Fernandes
Na cidade do Porto, em fevereiro de 2006, após três dias de tortura e
violência sexual, um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de
uma instituição católica, Oficinas de São José) ponderou se o fogo não seria a
melhor maneira de se livrar do corpo. Contudo, decidiu por outro elemento: a
vítima foi lançada em um poço de mais de 10 metros de profundidade, onde morreu
afogada. O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não
como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a
morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada.
A vítima, Gisberta Salce Júnior, era brasileira, transexual, imigrante em
situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Ou seja, segundo a tradição
fascista portuguesa, uma não-pessoa. Sobre o bárbaro caso, Alberto Pimenta
escreveu um importante poema longo: Indulgência Plenária (Lisboa:
&etc, 2007).[1] A capa
da obra sugere um rasgão sob o quadro (parte de um tríptico de Emil Nolde), que
mostra uma mulher de seios nus diante de três homens aparentemente embriagados.
Após todo um livro sobre um crime internacional (Marthiya de Abdel
Hamid segundo Alberto Pimenta, resenhado em K 3), Pimenta voltou seus olhos
para esse delito português (revelador do tratamento que a União Européia dedica
aos “extracomunitários”) e escreveu uma elegia em cinco partes.[2] Como
anterior, temos aqui um texto de intervenção. Bem escreveu Manuel de Freitas em resenha, "Não fosse um livro como
este, com o seu raro poder de corrosão e de denúncia, e Gisberta Salce
esperaria a sua segunda e definitiva morte – o esquecimento – tão indefesa como
esteve perante o horror da primeira."[3]
Na primeira parte do poema, lemos o encontro do poeta
com Gisberta em um mictório, mediado por um animal psicompopo (intermediário
entre os vivos e os mortos), a mosca. A cirurgia de mudança de sexo é referida.
A invocação anímica se dá em um ambiente não edificante – não se trata da
emulação do modelo da elegia clássica, ao contrário de Antinous de
Fernando Pessoa.
A segunda parte aborda a prostituição e apresenta o
nome de Gisberta. A terceira faz-nos conhecer o sobrenome – que levará ao belo
final – e menciona os assassinos, sem realmente os caracterizar: o autor não
tenta descrever o crime e o julgamento. O poema não é dramático, e sim
reflexivo, com meditações sobre o corpo e a finitude. Nisso, ele tem muito em
comum com Imitação de Ovídio, o penúltimo livro de Pimenta (também
resenhado em K 3).
A quarta parte alude à doença e à situação ilegal em
Portugal. Na última, temos a retomada dos motivos anteriores – a mosca, a
doença, a ilegalidade, o assassinato, num movimento cada vez mais intertextual:
a voz de Pimenta busca dar lugar à de Gisberta – mas não a pode mais encontrar:
“tira-me daqui não sei se foste tu que disseste/ não mexeste os lábios// nem
sei se poderias continuar/ as tuas trocas/ os teus desejos/ entre os habitantes
dos mundos invisíveis” (p. 54). Pimenta vai-se substituindo por outras vozes, o
que inclui excertos de ópera (na página 49, o Judiciário é comparado aos
cortesãos, segundo a furiosa ária de Rigoletto na ópera homônima de Verdi) e
culmina no trecho final, que é a reprodução de um trecho do Otelo de
Shakespeare: a Canção do Salgueiro (Salce, em italiano), que antecede o
assassinato de Desdêmona. A quarta parte já terminava com o seu apelo
desesperado para que Otelo somente a matasse no dia seguinte. Avançando no
livro, e recuando na peça, optou-se não pelo grito, mas pela canção que a
personagem entoa para silenciar o pressentimento da morte: “If I court moe
women, you’ll couch with moe men.” E assim é, no silêncio de Pimenta,
reencenada a morte de Gisberta.
Indulgência plenária realiza uma espécie de monumentalização da
figura de Gisberta Salce, que se torna um “monumento aos tempos presentes” (p.
17), caído, portanto, e comparado a uma estátua de “braço decepado” em
Toulouse, “de que nenhum funcionário sabe ou pode/ dizer nada” (p. 18). Gisberta
se torna uma sacerdotisa da lua (a ária Casta diva, da ópera Norma, de
Bellini, é citada na página 53), de quem se diz: “rodava o universo/ preso
entre a Alavanca das tuas pernas” (p. 13).
Como de se esperar num livro de Pimenta, o poema é contrário
ao Cristianismo (“Mas por que não tinhas tu um cão da raça trifauce/ que
trespassasse as outras trindades”, p. 15), à hipocrisia (sobre Porto lemos:
“uma Terra de melómanos/ com casas de putas e de música/ não perdoa”, p. 42) e
ao fascismo (“mas não conhecias as muralhas/ que te encarceravam/ nem os
graffiti suásticos/ que as cobriam”, p. 32).
No percurso do poema, do encontro de Pimenta com
Gisberta até o silêncio de ambos, encontramos pedras-de-toque, como esta
revisão de Platão: “Não tinhas uma direcção fixa/ porque isso são olhos dentro
duma Cela/ Sempre a espreitar pelo buraco/ à procura da luz oficial que é
autorizada a entrar” (p. 24). Dessa luz oficial foge um estrangeiro como
Gisberta, estrangeira lá, mas também no Brasil – o que remete ao verso de
Shakespeare citado no título. O preconceito racial, que seguiu Otelo (ele
também é vítima na peça), no caso da brasileira foi substituído pelo sexual,
que a tornou estrangeira em mais de um sentido e a levou à clandestinidade.
Essa morte, de caráter social, preparou o caminho da
morte física: “Nesse inóspito lugar/ com essa entretanto nova Rica e desleal
cidade/ não há relação possível” (p. 48).
[1] Note-se a ironia do título: indulgência plenária é o nome de um perdão a
penas temporais, uma vez que os pecados já foram remitidos, concedido pela
Igreja Católica.
[2] A aproximação entre os dois livros foi feita pelo próprio poeta, que, em
26 de maio de 2007, no Teatro Acadêmico Gil Vicente, leu ambos em um espetáculo
a que deu o nome “Pequenos Estragos”. A leitura foi precedida de uma fala sobre
“Poesia e violência”, por ele assim anunciada: “Alberto Pimenta é um daqueles
poetas que levam muito a sério e agradecem a tolerância que Aristóteles
lhes concede através da permissão de desvios da norma que ele normativamente
fixa na Retórica e na Poética. Assim, considera-se um ‘tolerado’, no
mesmíssimo sentido do termo administrativo com que eram designadas as
prostitutas em Portugal até cerca de meados do século XX. Continuando o
raciocínio, e da mesma maneira que não há mestres ou políticos iguais, separa
os poetas em duas categorias: os tolerantes e os tolerados.
Na 1a Parte do serão, A.P. vai tratar o tema «Poesia e
Violência», a partir da sua perspectiva de tolerado, portanto sem a mais mínima
espécie de tolerância.” (http://dupond.ci.uc.pt/tagv/evento.asp?evtid=993)
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