O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Desarquivando o Brasil CXXIII: Impeachment, ou o trauma de 1964 não passou

Continuo a ler sobre o vexame mundial que a Câmara dos Deputados fez no último domingo, refletido em periódicos deste continente e de outros. A imprensa internacional, que não acompanha o usualmente baixo nível intelectual (e ético) das discussões do Legislativo brasileiro, certamente teve do que se admirar.
Para nós, brasileiros, que acompanhamos o que é apresentado como projetos de lei, vociferado em discursos, revirado em manobras regimentais, não havia surpresa nenhuma, apenas o horror multiplicado pelo fato de que se tratava de uma votação em que quase todos falariam.
Para mim, o que mais incomodou (o horror previsível é algo que se sofre já na antecipação) foi a retórica messiânica parlamentar, que consistiu não exatamente nas menções a deuses ou igrejas, e sim na ideia de que cada voto proferido salvava o país. Mais de um deputado citou o "feliz é a Nação cujo Deus é o Senhor", que a atual presidenta, com o mesmo estilo de discurso, havia repetido na campanha eleitoral passada e agora retornou contra ela. As referências religiosas talvez estejam antes a serviço dessa retórica do que de alguma religião específica (afinal, tantas vezes a religiosidade parlamentar é acusada de medir-se em cédulas, como se acusou na relação entre Eduardo Cunha e a Assembleia de Deus).
O parlamentar subia, aproveitando-se do reality show legislativo, não na condição de representante do povo brasileiro a resolver grave questão sobre a admissibilidade de um processo contra a presidenta da república, e sim na de salvador da pátria, ou dos médicos brasileiros, ou dos corretores, dos desempregados, da praça de que vinha o orador... O vexame era internacional, o reality show era nacional, mas os votos eram locais, daí o espetáculo de provincianismo exacerbado.
De vez em quando algum acadêmico publica invectivas contra Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, do estilo "não somos patrimonialistas, ou se somos, quem não é?"; creio, porém, que o velho historiador reconheceria o quinto capítulo desse livro na miríade de referências aos cônjuges, ascendentes e descendentes, amigos ("Quero agradecer também à minha esposa, à minha filha, que vêm me dando muita força; à minha mãe; à minha tia Eurides, que cuidou de mim quando pequeno; à minha tia Geo, que me ensinou a educação"), a escancarar a prevalência da lógica privada sobre a pública, como se o Parlamento se tornasse tão doméstico quanto a sala ou o quarto do espectador que, pela tevê, acompanhava o cordial espetáculo, e o lugar da política cedesse à estrutura do reality show.
Entre outras taras da família tradicional brasileira, note-se que poucos deputados (lembro apenas de Luiza Erundina e Jean Wyllys) denunciaram o sexismo da Câmara, que muitas deputadas foram tratadas de forma desdenhosa pelos colegas e que outra, com a gravidez avançada, foi vaiada por estar ausente, embora provavelmente fosse votar com a maioria.


Felipe Pacheco deu-se ao trabalho de recolher as palavras mais citadas nas justificativas de voto em duas nuvens, bem como reproduziu os discursos. A leitura, embora penosa, não deixa de informar. Os dois traços que mencionei dos discursos dos parlamentares, o messianismo e a cordialidade sergiobuarquiana, combinados às poucas luzes que possuem, geraram momentos de:
  • Confusão do impeachment com cirurgias de redesignação sexual por deputado investigado por tortura e doações eleitorais suspeitas ("formamos uma família no Brasil, que tanto esses bandidos querem destruir com propostas de que criança troque de sexo e aprenda sexo nas escolas, com 6 anos de idade");
  • Inconsistência de votar simultaneamente pela presidente e pelo impeachment ("pela querida e amada população da BR-429 — é o momento também de aqui externar gratidão à Ministra Dilma Rousseff, que tirou aquela população do sofrimento — , pelo meu partido e pela unificação das famílias, dos partidos, da política, do povo de Rondônia, da juventude e das mulheres, eu voto sim");
  • Profunda incoerência dos que votaram contra ou a favor do governo alegando que ele está fazendo coisas de que está, de fato, muito distante ("em defesa dos direitos indígenas e dos quilombolas, em defesa da reforma agrária, em defesa da agricultura familiar [...] eu sou contra esse golpe"; "contra a imposição desse partido de esquerda, que quer transformar este Brasil numa ditadura de esquerda"; "Em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem-teto, dos sem-terra, eu voto não ao golpe");
  • Distorções graves da história recente ("Há 11 anos, meu pai perdeu seu mandato porque disse a verdade, quando muitos aqui disseram que o que ele estava falando era mentira");
  • Desconexão lírica, alertando para o terrível risco de termos, depois de José Sarney, outro mau poeta no governo, se Michel Temer assumir ("eu digo: O verde de teumar, oh, Angra dos Reis! A luz de teu luar, oh, Angra dos Reis! O brilho do teu sol, oh, Angra dos Reis! Sim pelo impeachment da Dilma.);
  • Desconexão sintática e voto pelo suicídio ("sinto cheiro das mesmas aves de rapina de 54, que levaram Getúlio ao suicídio, mas a força do voto de Cascavel, do Oeste do Paraná, do Noroeste, dos Campos Gerais, dos meus eleitores, dos mais de 150 mil eleitores, do povo do Paraná e do Brasil, meu voto é sim"); 
  • Incoerência em votar para o Brasil ter "jeito" e dedicar o voto a marido/prefeito que seria preso no dia seguinte ("O meu voto é para dizer que o Brasil tem jeito, e o Prefeito de Montes Claros mostra isso para todos nós com a sua gestão."); em homenagear Eduardo Cunha, réu no Supremo Tribunal Federal, e votar sim "contra a corrupção" - crime que não é, aliás, o motivo para o processo de impeachment, e sim a "Abertura de créditos suplementares por decreto presidencial, sem autorização do Congresso Nacional" e a "Contratação ilegal de operações de crédito", ou seja, as pedaladas fiscais.


No entanto, não resolvi escrever esta nota por causa das confusões, distorções, desconexões e incoerências de diversos graus e naturezas dos excelentíssimos deputados, e sim por causa da ditadura militar. As vociferações de domingo e as reações subsequentes deixaram bem claro que o trauma de 1964 não passou.
Atos, discursos, notícias giraram em torno da ditadura, inclusive nas redes sociais: foram muito compartilhados vídeos de Amelinha Teles contando como ela e sua família foram torturadas por Brilhante Ustra, como este: https://vimeo.com/66483419). Destaco, entre os pronunciamentos, o da Associação Juízes para a Democracia:


[...] é evidente que a imunidade material dos congressistas por suas opiniões e palavras (artigo 55, II, § 1°, CF) não pode ser utilizada como salvaguarda a práticas atentatórias a valores caros ao Estado Democrático de Direito, sendo que o exercício de tal garantia encontra limitação na própria Constituição Federal, ao estabelecer ser incompatível com o decoro parlamentar "o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”, (artigo 55, § 1°, CF), bem como no artigo 231, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e artigos 4°, I e 5°, III, do Código de Ética e Decoro Parlamentar daquela Casa.
Talvez em reação a essa repercussão negativa, parte da grande imprensa (ela mesma apoiadora do golpe do Primeiro de Abril de 1964) preferiu falar de acontecimentos salivares em vez de tratar do que realmente importa.
Esse trauma repercute na discussão sobre se o processo de impeachment é um golpe ou não (se o processo de impeachment, conduzido por Cunha, não tem legitimidade política, no entanto, deve-se notar que até ontem ele nomeava cargos no governo, que lhe reconhecia essa legitimidade), com referências a acontecimentos de 1964. Naquela época, porém, João Goulart somente foi para o exterior depois que decidiu não resistir - enquanto aqui a oposição quer impedir a presidenta de deixar seu vice em exercício do poder e viajar. Realmente, o que ocorre hoje é uma outra coisa, que não é fácil nomear.
O que fazer? Esclarecer, talvez, sobre os tempos da ditadura, seja o que eu possa tentar fazer. No último dia 19 de abril, fiz, devido ao trabalho na Comissão da Prefeitura de São Paulo, uma breve exposição a jovens participantes de um programa de monitoria cultural. Em razão do dia, e no espírito Índio é Nós, tratei dos genocídios de povos indígenas durante a ditadura militar; ninguém sabia do número de 8350 mortos estimado pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade:


Tampouco conheciam o relatório da Comissão Figueiredo (encontrado por Marcelo Zelic para a CNV) que somente chega a crimes até 1967, cometidos pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e levantou estas categorias de delitos: assassinatos individuais e coletivos, prostituição de índias, sevícia, trabalho escravo, usurpação do trabalho do índio, apropriação e desvio de recursos etc.:


"O Serviço de Proteção aos Índios degenerou a ponto de persegui-los até o extermínio"; e pensar que a década de 1970 seria pior...
Indiquei, além do relatório da CNV, o portal do Armazém Memória para pesquisa desses documentos.
Porém, por causa do vexaminoso domingo, resolvi incluir Brilhante Ustra, para quem escrevi uma espécie de necrológio em outubro do ano passado.
Ele é um dos 377 autores de graves violações de direitos humanos arrolados no relatório da Comissão Nacional da Verdade:



Entre suas vítimas apontadas no relatório, não está Dilma Rousseff, diferentemente do que alguns jornalistas, inclusive argentinos, divulgaram no domingo. No depoimento de 2001 sobre as torturas que sofreu, citado pela CNV, ela mencionou Albernaz: http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo9/Nota%20212%20241%20243%20-%2000092_001027_2012_80.pdf
No entanto, Ustra tinha de fato uma posição de destaque no sistema de tortura e repressão política, e, por isso, foi escolhido como o número um na importante lista de torturadores que os presos políticos em São Paulo fizeram em outubro de 1975, o "Bagulhão", disponível na internet. Albernaz, que esmurrou Dilma Rousseff, é o segundo:




O livro Infância Roubada, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo (também disponível para baixar), sobre crianças atingidas pela ditadura militar (torturadas, banidas, classificadas como terroristas etc.), apresenta Brilhante Ustra como uma homem que torturava também mulheres grávidas. Foi o caso de Crimeia Alice Schmidt de Almeida, militante do PCdoB, e seu filho João Carlos de Almeida Grabois, filho do marido de Crimeia, André Grabois, que é um dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia.


Abaixo, uma foto dela com o seu filho. Trata-se de um dos casos de violência obstétrica cometidos pela ditadura. Cito um trecho do depoimento:



Em 29 de dezembro de 1972, com seis meses e meio de gravidez, fui sequestrada pelo DOI-CODI/SP. O fato de estar em estado já bastante adiantado de gravidez não foi empecilho para as torturas físicas e psicológicas. Levei choques nos pés e mãos, muitos espancamentos, ameaças de fuzilamento e outras violências. E o pior, a ameaça de sequestrarem o bebê, se ele nascesse branco, saudável e do sexo masculino.
O primeiro a me torturar foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/SP à época. Mas não foi o único. Até o carcereiro me torturava quando me tirava da cela para levar às salas de interrogatório. Durante essa época, o feto apresentava soluços, os quais eu tentava amainar alisando a barriga e cantando baixinho para ele. Até hoje, em momentos tensos meu filho apresenta soluços.
Depois de um mês no DOI-CODI/SP fui transferida para o Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército. Fui interrogada algumas vezes, sempre com as ameaças de morte e de sequestrarem o meu filho. Uma das vezes fui levada para interrogatório no Ministério do Exército na Esplanada dos Ministérios.
No dia 11 de fevereiro, à noite, entrei em trabalho de parto. Solicitei um médico que só chegou pela madrugada e me encaminhou ao Hospital de Base. Lá, o médico disse que não estava na hora do parto, recomendou que me colocassem na enfermaria do presídio e aplicou um antibiótico. Os militares me levaram de volta, não para a enfermaria, mas para a cela, onde havia muitas baratas, e como o líquido amniótico escorria pelas minhas pernas elas me atacavam em bandos. Já que os militares não tomavam nenhuma medida, depois do almoço comecei a gritar desesperadamente. Os outros presos fizeram coro e no fim da tarde me levaram para o hospital da Guarnição.
À noite o obstetra, Doutor Trindade, disse que eu estava em trabalho de parto, mas como ele não estava de plantão, então só faria a cesariana no dia seguinte. Reclamei que meu filho poderia morrer e ele respondeu: “É melhor! Um comunista a menos!” (p. 276)

Além dos espancamentos e das ameaças, são de ressaltar a participação dos médicos torturadores e o detalhe tétrico das baratas atacando uma mulher em trabalho de parto.
As famílias Teles e Merlino (pelo assassinato de Luiz Eduardo Merlino) propuseram ações judiciais contra Brilhante Ustra. O relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo dedicou um capítulo a esses processos: http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/parte-iii-cap3.html
No processo movido pela família Teles, que tem como advogado Fábio Konder Comparato, conseguiu-se algo inédito: a declaração judicial de que Brilhante Ustra era torturador. A declaração, obtida já em primeiro grau, foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e até mesmo no Superior Tribunal de Justiça, apesar da tentativa de emplacar um suposto "direito ao esquecimento" nessa Corte.
Cito um trecho do relatório, que destaca uma das formas como as crianças, de 5 e 4 anos (Janaína e Edson), foram usadas no DOI-Codi:
As torturas cometidas foram tão intensas que Amélia entrou em estado de choque psíquico e César, em estado de coma. Ele, por ser diabético tipo 1, ou seja, dependente totalmente de insulina, não foi devidamente medicado. Ela por ser ameaçada de ver seus filhos serem torturados e mortos.
Em 29 de dezembro de 1972, os agentes da repressão (equipe de busca, que incluía a Tenente Neuza) sequestraram os filhos, Janaína e Edson, juntamente com a irmã de Amélia, Crimeia, grávida de 8 meses. O sequestro se deu com invasão no domicílio por diversos homens e uma mulher que os levaram aos berros, gritos e ameaças. Colocaram-nos no banco traseiro de uma viatura, uma aero Willis C-14 de cor azul claro, onde se encontravam no chão vários fuzis e armas. Eles permaneceram sob a mira de metralhadoras até o prédio da Oban, ou DOI-Codi/SP. [...]
O filho do casal, Edson Teles, ao ver os pais cheios de equimoses, sujos e suados, perguntou: “Por que vocês estão verdes?” [...]
Crimeia foi levada para uma cela, enquanto as crianças ficaram dias perambulando pelos corredores do aparelho de repressão sendo testemunhas de gritos de dor dos presos políticos, além de serem usadas como instrumento de tortura psicológica de seus pais.
É muito indigno, e um Estado que não tenha punido esse tipo de violação aos direitos humanos tampouco pode ser um exemplo de dignidade no cenário internacional.
No entanto, devo fazer notar, houve no domingo muito mais deputados que atacaram a ditadura militar do que aqueles que a defenderam. Singularmente, todos os que o fizeram, se não me engano, votaram não, enquanto os que homenagearam o regime que recrutava para sua própria defesa estupradores, torturadores, traficantes de drogas, todos eles, votaram pelo sim, o que reforça a posição dos que pensam que este impeachment é um golpe.
É alentador que tenha havido mais deputados que repudiaram a ditadura (mesmo que todos eles estivessem na minoria) e, mais ainda, que as forças democráticas de amanhã, que não estão realmente representadas nem pelo governo nem pela oposição, saibam que precisam repudiar a ditadura para que o país possa seguir adiante.
Que forças são essas? Termino aqui com uma homenagem aos estudantes do Rio de Janeiro, que estão a enfrentar uma administração da coalizão governista, e ocupam as escolas (73 neste momento), seguindo o exemplo dos paulistas em 2015, com o lema, entre outros, "Ditadura nunca mais/ Nenhum direito a menos": https://youtu.be/M-OopVSkYw8?t=1m28s

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