A longa petição (179 páginas) do Ministério Público do Estado de São Paulo com o pedido de prisão preventiva de um ex-presidente, feita a partir da investigação sobre "núcleo BANCOOP x OAS" que, segundo o MP, "utilizou, espertamente, institutos de direito civil e processual civil para alavancar os atos nucleares de inúmeros estelionatos e lavagem de dinheiro" (p. 81) envolvendo o "tríplex" tão noticiado, tem causado polvorosa por causa do pedido de prisão de Lula e da pecular curiosa cultura filosófica dos membros do MP/SP.
Não sou penalista, razão pela qual quase nunca escrevo sobre temas dessa especialidade (embora de vez em quando me peçam opiniões sobre "mensalão", "trensalão" e outros inumeráveis escândalos do sistema político nacional); quero dizer, no entanto, que Dalmo Dallari me parecer ter razão ao apontar a fragilidade técnica do pedido de prisão. Até o PSDB e o DEM, adversários políticos do PT, discordaram do pedido, o que é, de fato, um efeito inesperado da impressionante técnica jurídica do MP de São Paulo: lograr que inimigos concordem.
A citação de "Nietzche", "Marx e Hegel" poderiam, à primeira vista, denunciar uma cultura de almanaque. A curiosa dupla "Marx e Hegel" foi alçada aos tópicos mais frequentes do twitter. Chegou ao quinto lugar no Brasil.
Talvez os doutos membros do MP não conheçam tão bem o alemão e pronunciem Hegel e Engels da mesma forma, o que pode ter levado à confusão. Cito, porém, a peça:
101) De proêmio, apresentamos passagem da obra Assim falou Zaratustra:
“Nunca houve um Super-homem. Tenho visto a nu todos os homens, o maior e o menor.
Parecem-se ainda demais uns com os outros: até o maior era demasiado humano.”
102) Fundamental a referência à obra do filósofo alemão Friedrich Nietzche [sic], pois de forma muito racional estabelece que todos os seres humanos se encontram em um mesmo plano, premissa maior que norteará toda a construção do pedido de prisão preventiva do denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, qual seja, a do princípio constitucional da isonomia. [p. 166]Ou seja, caiu o pedido, pois a "premissa maior" (será que eles acham que o raciocínio jurídico é um silogismo? isso é tão velho...) é falsa. Nietzsche, que trata mil vezes das "diferentes" "raças" humanas (ele é bem século XIX nisso) e argumenta como a raça judaica é mais forte do que a alemã, diferencia todo momento entre os "fortes" e os "fracos", e acusa o cristianismo, que ele detesta, por sua compaixão pelos fracos. Nietzsche é bastante contraditório, mas fundamentar o "princípio constitucional da isonomia" nele não dá. Mesmo que os doutos membros do MP soubessem escrever-lhe o nome.
A citação, ademais, possui outro sentido: não uma feliz constatação da igualdade entre os homens (Nietzsche não acreditava nisso, por sinal), mas bem outra coisa: é a fala da "populaça", que Nietzsche desprezava, contra os homens superiores.
A desleitura filosófica tem como referência uma edição de Assim falou Zaratustra pela Martin Claret. Denise Bottmann mostra a inacreditável semelhança da tradução feita não se sabe bem por quem (dois nomes se revezam para esse livro nas diferentes edições da M. Claret) com a de José Mendes de Souza: http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2011/11/zaratustra-martin-claret.html
Esse tipo de bibliografia, que merecia uma investigação, é a promovida pelo MP/SP. Atitude lamentável, e não só em termos intelectuais.
Da página 168 em diante, o MP/SP fundamenta o pedido aparentemente no fato de que não gosta de Lula, pois as razões são fracas: ele ter dado entrevista coletiva, ter conseguido medida liminar administrativa no Conselho Nacional do Ministério Público (para o MP/SP, essa medida ou o próprio Conselho eram ilícitos?), o telefonema flagrado involuntariamente por Jandira Feghali, ele não querer ser preso (motivo para prender quase toda humanidade) etc.
129) As atuais condutas do denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, que outrora chegou a emocionar o país ao tomar posse como Presidente da República em janeiro de 2003 (“o primeiro torneiro mecânico” a fazê-lo de forma honrosa e democrática), certamente deixariam Marx e Hegel envergonhados.A dupla Marx e Hegel é engraçada. No entanto, mesmo que os doutos membros do MP soubessem o nome do segundo violino, a citação é absurda. Creio que Lula foi sincero quando disse a Mino Carta "você sabe que eu nunca fui de esquerda". Nos tempos de ditadura militar, Lula fazia diferenças entre os "trabalhadores", que ele liderava, e os "comunistas", cujas causas eram outras. Que esses grupos (e mais outros) tenham se unido na fundação do PT só anunciava que as disputas de poder nesse partido seriam fortes - e levaram a expulsão de alguns de seus membros, ainda durante a ditadura, e a criação de outro partido, já no governo de Lula, o PSOL.
Se alguma sombra de socialismo tivesse ainda restado, as gestões de Lula e Dilma a teriam apagado de vez. Somente gente desinformada e/ou burra e/ou louca e/ou com morte cerebral ocorrida na época da Guerra Fria poderia ver nesses governos em prol da especulação financeira (nunca os bancos ganharam tanto, os governistas adoram propagandear), do agronegócio, contrários aos índios, quilombolas e extrativistas, uma "ditadura comunista". Aliás, uma estranha ditadura esta, de um partido que já teve diversos nomes presos...
Se Marx e Engels ficariam envergonhados seria com a política de conciliação de classes do lulismo, que está fazendo água sem parar. De qualquer forma, isso também não seria razão para prender ninguém, ao contrário do que o MP/SP parece pretender.
Li gente escrevendo que a peculiar cultura filosófica do MP/SP decorre da falta de filosofia nos concursos jurídicos. Vi um amigo falar que isso é a falta de filosofia nos cursos de Direito. Em certo sentido, acho que é bem o contrário: uma petição como aquela é representativa da introdução de filosofia nos cursos jurídicos. E também nos concursos. Depois de o MEC ter previsto, nas diretrizes curriculares do Direito, disciplinas como antropologia e filosofia, as editoras viram, claro, uma oportunidade de lucrar com mais livros didáticos. Porém, como introduzir essas disciplinas se quase ninguém do Direito fazia pesquisa nessas áreas? Se quase ninguém pesquisava, como achar professores para lecionar, senão em outras áreas?
Seria belo ver vários grupos de pesquisa com membros da filosofia e do direito trocando experiência e trabalhando juntos. Essa é a exceção, infelizmente. Se, em regra quase ninguém estudou a Teoria pura do Direito de Kelsen, apresentada por tantos pós-graduandos que tampouco a leram como a responsável por todo o conservadorismo do meio jurídico brasileiro, a noção de pureza, se entendida (fora dos parâmetros kelsenianos) como endogamia e corporativismo, é de fato interessante para caracterizar esse meio.
Na chamada educação jurídica, esse isolamento teórico das faculdades de direito (que, às vezes, se manifesta na exigência de diploma em direito para matérias como história, ciência política etc.) tem gerado as versões paralelas da filosofia que somente são encontradas nessas faculdades - em qualquer outro lugar, tais versões se dissolvem, não suportam o contato com o ar ou, simplesmente, com o pensamento. Cursos sobre Aristóteles que não citam o filósofo, versões de Hannah Arendt como se ela tivesse sido uma historiadora do direito internacional são exemplos desta subliteratura que denota como o meio jurídico é hostil à reflexão, e como, entre o prestígio e a inteligência, ele sacrifica sempre esta última.
Em outra nota deste blogue, escrevi sobre uma obra de "formação humanística" para concursos jurídicos e expliquei os princípios que animavam esse tipo de literatura:
- De preferência, ignorar a literatura primária; se vamos tratar de Platão, para que citar alguma obra de Platão? Assumamos que o que esses autores escrevem, no fundo, não interessa, e vamos direto para os resumos.
- Em relação aos comentadores, escolher também obras de divulgação, inclusive coleções de bolso - se forem sobre outro assunto, não há problema, tudo seria uma coisa só.
- Escolher pouquíssimos comentadores, afinal, tudo teria um sentido só, não existiriam divergências teóricas na recepção, por exemplo, de Montesquieu.
- Dar preferência a autores com formação em direito; afinal, eles dominariam todos os assuntos; seria tolo achar que algum filósofo teria algo a dizer sobre Hobbes.
- Citar apenas obras publicadas em português, pois nada de relevante se escreveu em outra língua (ao menos antes da tradução; faz-se uma pequena exceção para o espanhol, que possui a virtude de ser bem parecido).
Há livros para graduação que seguem tais diretrizes. Podem-se ler em cursos publicados de filosofia do direito, escritos por autores brasileiros, coisas deste tipo: "Heidegger jamais publicou comentários sobre a filosofia de Karl Marx, de quem foi contemporâneo."; "O Direito, de acordo com Karl Marx, deveria ser teoria fundamental para equacionar politicamente a sociedade conforme um modelo justo de distribuição de riquezas."; "Em 1983, [Habermas] reassumiu cátedra na Universidade de Frankfurt até aposentar-se, em 1994. Morreu em 2010."
Ou seja, considerar contemporâneos filósofos de séculos diferentes, achar que Marx dizia que o Direito (!!!) levaria à "justa distribuição de riquezas" e matar um filósofo que continua vivo no momento em que escrevo estas notas são ensinamentos que as maiores editoras jurídicas no Brasil (neste caso, a Saraiva) publicam na qualidade de livro didático. Ensinamentos provavelmente úteis para chegar às instâncias de poder no meio jurídico brasileiro.
que é bastante filosófico,ah,isto é,mas para mim LULA,e todo o PT,definitivamente,perderam o significado da sua IDEOLOGIA PARTIDÁRIA,é uma pena pois o PT sem sua IDEOLOGIA nao é nada,ou seja é apenas mais um partido de oportunistas,todos tentando se dar bem pisando até na propria MAE.
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